ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2019
“A vida, a humilhação, a gozação nas ruas”
Uma história da República chega ao fim
João Moreira Salles | Edição 151, Abril 2019
Na manhã do último dia 12 de março, em Brasília, Francenildo dos Santos Costa e Wlicio Chaveiro Nascimento entraram na sala da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Cliente e advogado estavam ali para ouvir o que diria a corte sobre a ação indenizatória que moviam contra a Caixa Econômica Federal e a Editora Globo por quebra de sigilo bancário e divulgação de matéria ofensiva. Desde o momento em que a CEF decidiu prestar um serviço a Antonio Palocci, violando o sigilo do correntista que identificara o então ministro da Fazenda como frequentador de uma festiva casa de exploradores de bingo, muito tempo se passara. Mais precisamente: 4 744 dias, ou 678 semanas, ou 12 anos, 11 meses e 24 dias.
O mundo era outro em 16 de março de 2006. Para circular de carro pela cidade sem veículo próprio, esticava-se a mão para um táxi – Uber, só dali a oito anos. Procurando namoro? O mais prático era perguntar aos conhecidos se sabiam de alguma pessoa jeitosa para apresentar – ou isso ou esperar sete anos pelo Tinder. Filho pequeno dando trabalho, Xuxa na Globo talvez resolvesse. Convinha, porém, não errar de canal, para não cair num noticioso violento sobre a Guerra do Iraque. A vida digital se desenrolava no Orkut, o filme mais rumoroso da temporada contava a história de dois caubóis apaixonados, Fernando Meirelles e seu Jardineiro Fiel acabavam de concorrer ao Oscar e o Capitão Nascimento era… nada, uma inexistência que só chegaria às telas em 2007. Se alguém por aqui ouvisse este estranho nome – Barack Obama –, pediria que o repetissem e ficaria em dúvida: parente de Osama? Não, jovem e discreto senador americano, esclarecimento que provavelmente levaria à pergunta: “E por que mesmo estamos falando dele?” iPhone, só dali a quinze meses. Twitter, Instagram, WhatsApp, Waze? Não, não, não e não.
Naquele mesmo mês de março de 2006, lá do espaço sideral, olhando-nos viver nossas vidas mais simples, flutuava o astronauta Marcos Pontes, e enquanto essas coisas todas aconteciam, ganhavam corpo, se disseminavam, cresciam e morriam, a existência de Francenildo se desmanchava, um pouco como a de Plutão, que naquele ano, rebaixado na hierarquia dos corpos celestes, deixaria de ser considerado planeta. Atirado no centro do maior escândalo da República de que se tinha notícia, o rapaz de 25 anos via suas conquistas na capital federal – um ofício, salário certo, dinheiro mensal para enviar à mãe no Piauí – serem desfeitas pelo jogo do poder, de cuja ferocidade nem desconfiava.
A Caixa quebrou seu sigilo, a revista Época publicou o extrato de sua conta e Francenildo teve sua honradez posta em questão. Havia lá uma soma incompatível com os rendimentos de um caseiro. Blogueiros governistas, senadores da República, gente graúda do Executivo, esses e muitos outros se apressaram em fazer coro sobre como aquele nordestino de ar frágil não passava de um velhaco que vendia sua palavra a quem se dispusesse a comprá-la. Francenildo perdeu o emprego no ato e nunca mais conseguiu uma carteira assinada.
Não havia velhacaria nenhuma, claro. O dinheiro viera do pai biológico, pequeno empresário de Teresina que nunca o reconhecera como filho de um relacionamento extraconjugal. Francenildo buscou uma aproximação, o pai por fim aquiesceu. Como primeiro gesto, fazia um depósito para ajudá-lo; pediu apenas uns meses para preparar a notícia em casa. Ao ser forçado a explicar publicamente a origem dos 24 990 reais em sua conta, Francenildo rompeu o segredo pactuado com o pai. O homem não o perdoou. Em 2013, última vez em que apareceu no Piauí para tentar reatar, o pai mandou chamar a polícia.
Desde aqueles acontecimentos, há treze anos, e até o fechamento desta edição, Francenildo não ouviu um só pedido de perdão da parte dos que o ofenderam.
A sessão do STJ estava marcada para as 10 horas. Às 9h15, sentados lado a lado na segunda fileira da sala de julgamento, Francenildo e Wlicio cochichavam. “Será que esse trem acaba hoje?”, pergunta o primeiro, no terno largo que alugara para o dia. “Com a Caixa, acaba”, responde Wlicio. “Cê tá confiante assim, é? Eu não. Já prometeram tanta coisa…” Não reclamava dos tempos do processo. Era só realismo: “A gente precisa da Justiça e ela por enquanto tá funcionando. Aquele boato de que Justiça demora, isso eu já sabia. É muito difícil a Justiça andar ligeiro pra alguém da minha classe. Do meu ponto de vista, tá andando.”
Um advogado da Caixa se aproxima para cumprimentar Francenildo, que, tímido, estende-lhe a mão. À pergunta sobre a posição da CEF, responde: “Em princípio, não vamos recorrer.” Já haviam sido derrotados em duas instâncias para barrar o pagamento da indenização estipulada em 400 mil reais. A Editora Globo também havia sofrido duas derrotas na Justiça comum.
O homem se acomoda do lado oposto da fileira e logo se juntam a ele outros três advogados. “A equipe deles tá montada”, comenta Francenildo, esticando o olho na direção do quarteto. “A nossa também”, diz Wlicio, enlaçando os ombros de seu cliente. Os dois formam uma dupla improvável, o caseiro no centro de um terremoto nacional e o advogado que só cuidava de pequenas causas cíveis. Em 2011, Francenildo teve uma menina. Batizou-a de Amanda, nome da filha de Wlicio.
Às 10h05, quando os cinco ministros entram no plenário, todos os presentes se levantam. O presidente da turma, ministro Moura Ribeiro, toma o microfone: “Sob a proteção do manto de Nossa Senhora, dou início à sessão.” Os trabalhos correrão ligeiros, de modo que às 10h35 o terceiro caso da pauta entra em julgamento. Moura Ribeiro lê com dificuldade o nome de Wlicio – pronuncia-se Ulíssio. De beca, o advogado se perfila com o representante da Caixa diante dos ministros. Na véspera, treinara a sustentação oral em que defenderia a confirmação da sentença contra a CEF e a manutenção da Editora Globo como partícipe do delito, visto que, sem a publicidade dada pela revista Época, seu cliente não teria sofrido o linchamento que quase o destruiu.
Mas não houve oportunidade para um só data venia. Em 5 minutos e 47 segundos, a 3ª Turma absolveu a Globo e reiterou a condenação da Caixa. A única dúvida, dirimida ali mesmo, disse respeito aos cálculos de correção dos 400 mil. Esse valor deverá ser corrigido monetariamente a partir da publicação do acórdão, enquanto juros de 1% ao mês fluirão desde “o fato danoso”, isto é, desde a violação do sigilo, em 2006 – cerca de 1 milhão de reais, soma que cliente e advogado dividirão equitativamente. É um valor alto para os padrões brasileiros de processos por dano moral.
Já fora da sala, Wlicio pergunta se Francenildo compreendeu. “Mais ou menos”, ele diz, e logo se corrige: “Entendi foi nada.” Não pede explicações, porque para ele o essencial é ter havido um desfecho. Liga para Teresina: “Mãe, acho que o pesadelo tá acabando.” Ela recomenda que tenha cuidado. “Preocupação de mãe. Ela acha que eu corro algum perigo. Eu digo que não, mas lá ela tá só, né?” Não falaram de dinheiro.
Algo dentro de Francenildo não encontra expressão. Ele vai e volta pelos corredores de mármore, a respiração difícil. “É, parece que agora a justiça foi feita”, diz por fim. E logo, encabulado, engole o soluço. “A vida, a humilhação, a gozação nas ruas…”, tenta explicar. “Tá tudo explodindo aqui dentro”, diz, batendo as mãos no peito. Wlicio tenta animá-lo: “É vitória, Nildo!” Francenildo balança a cabeça: “Vitória de choro não existe. Só existe vitória de alegria. Não vim aqui pra ganhar, vim pra ver o fim. Bagunçaram a minha vida. Eu não queria derrotar ninguém. Falei meu lado e ele falou o dele” – referia-se a Antonio Palocci. “Hoje ele está como eu.”