ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Vilarejo olímpico
Por que uma cidadezinha mineira faz sucesso nas competições de matemática
Rafael Cariello | Edição 85, Outubro 2013
Uma estrada de terra poeirenta, quase cor de laranja, liga o núcleo urbano de Dores do Turvo, uma cidade de 4 500 habitantes na Zona da Mata mineira, ao sítio onde mora a pequena Dávila de Carvalho Meireles. Com um estojo na mão, vestindo calça jeans e uma camiseta preta, a adolescente de 14 anos e cabelos lisos amarrados num rabo de cavalo parecia despreocupada na manhã daquele sábado, o segundo de setembro, apesar da tarefa espinhosa que tinha pela frente.
Ela participaria, à tarde, da segunda fase da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, a Obmep. No ano anterior, Dávila havia sido a aluna de melhor desempenho na prova em Minas Gerais, e a segunda colocada em todo o país, entre os alunos do 6º e do 7º anos do ensino fundamental. A expectativa geral era de que repetisse o bom desempenho numa competição que, a cada ano, mobiliza quase 20 milhões de estudantes.
O concurso tem por objetivo estimular o interesse pela disciplina na rede pública. É organizado desde 2005 pelo Impa, o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, uma das principais instituições de pesquisa na área, em todo mundo, com sede no Rio de Janeiro.
Os pais de Dávila, como sempre, haviam acordado naquele dia antes de o sol nascer, a fim de recolher a primeira metade dos cerca de 200 litros de leite diários que sustentam a família. João Muniz Meireles, de 47 anos, trabalha também como pedreiro. Ele, a mulher e os dois filhos levam uma vida simples e confortável. Um gramado bem aparado cerca a casa térrea amarela, com portas e janelas de madeira.
Na cozinha, dona Vilma, mãe de Dávila, serviu bolo, café e queijo minas. Pouco antes do meio-dia, o pai apareceu de barba feita e camisa lavada. À mesa comprida, coberta com uma toalha de plástico, também se sentava Evandro Júnior Firmiano da Silva, de 13 anos. Em 2012, assim como Dávila, ele ganhou uma medalha de ouro na Obmep, distinção reservada aos 200 melhores alunos de mesmo nível escolar que concorreram com os dois. Dali a pouco, seu Muniz levaria a filha e o colega até a escola.
Evandro mede quase 1,70 metro. É negro, magro, mais tímido que a amiga, sério. Dávila é baixinha, branca, e sorri com frequência, levantando as sobrancelhas e abrindo os olhos, numa expressão de surpresa misturada à alegria. Juntos, ajudaram a colocar Dores do Turvo no mapa da educação do país.
Em 2012, a pequenina Escola Estadual Terezinha Pereira, onde estudam cerca de 500 alunos, conseguiu três medalhas de ouro na Obmep. Apenas outras nove instituições tiveram desempenho melhor – colégios militares, sobretudo, que escolhem seus alunos por meio de disputados processos seletivos. Quando se considera o resultado per capita, contudo – ou seja, as conquistas em relação ao número de alunos de cada escola –, a Terezinha Pereira tem o melhor desempenho do país, segundo um ranking elaborado pelo Impa.
Passava de uma da tarde quando seu Muniz entrou no Fiat Uno prata e tomou o caminho de 20 quilômetros até a cidade. No refeitório do colégio, o professor Geraldo Moreira já aguardava, ansioso, a chegada dos 36 alunos aprovados para a segunda fase da Obmep.
Moreira tem 54 anos e ensina matemática há 33. Fã, na juventude, de Raul Seixas e Rolling Stones, tem hoje os cabelos grisalhos nas têmporas e carrega óculos de leitura dependurados no pescoço. Formou-se numa faculdade particular de Ubá, a maior cidade da região. É apontado por colegas e pais de alunos como o responsável pelo desempenho extraordinário do vilarejo mineiro.
“Matemática é treino, é trabalho”, explicou Moreira. No mês anterior, ele havia oferecido aos alunos disputadas aulas extras, fora do horário regular. É tido como severo em sala. O ambiente de trabalho também importa, ele disse.
O professor chamou a atenção para o fato de que não apenas Dores do Turvo tem tido bons resultados na Obmep. Em 2012, várias pequenas cidades mineiras se destacaram na competição. O estado conquistou 152 medalhas de ouro no ano passado. O segundo lugar ficou com São Paulo, com 110, seguido pelo Rio, com 43.
“Minas tem muita cidade pequena”, ele disse. “Em todas tem escola. O povo fica por lá, até o fim do ensino médio. Como é uma escola por cidade, todas as classes sociais se misturam. Isso puxa o resultado de todo mundo para cima.”
A interessante hipótese do professor Geraldo Moreira já foi testada. O economista Naercio Menezes Filho publicou recentemente um estudo em que buscava identificar os principais fatores que afetam o desempenho escolar. De modo geral, ele descobriu, importam mais as características familiares dos estudantes, medidas sobretudo pela escolaridade da mãe, do que as do colégio, como o número de alunos por sala ou o acesso a computadores.
Havia ainda outro achado importante: mais do que a escolaridade da mãe, importa, para o desempenho do estudante, a escolaridade média de todas as mães da escola. Ou seja, a mãe dos outros importa tanto, ou mais, do que o próprio ambiente familiar para o aproveitamento de cada aluno.
Em seu estudo, o economista comenta que ainda não se sabe ao certo como funciona esse mecanismo. Especula que talvez a presença de alunos mais capazes, criados em meios mais favorecidos, motive tanto os professores quanto os colegas, elevando o rendimento geral.
Pode ser também que a autoestima de todos melhore, em escolas não segregadas. Em Dores do Turvo, os filhos das faxineiras do colégio e dos funcionários públicos da cidade estudam lado a lado.
Após três horas de uma prova cansativa, alunos, professores e a diretora da escola se reuniram no refeitório. Perguntei a Dávila se ela havia ido bem. “Bem mal”, ela respondeu, sorrindo. “Não estava fácil”, confirmou Evandro. Uma questão que conjugava geometria e equações de segundo grau foi apontada pelos alunos do ensino médio como a mais difícil da prova. Todos ficaram por ali, por quase uma hora depois de cumprida a obrigação do concurso, conversando. E se serviram de fartas porções de cachorro-quente, biscoito de polvilho e Coca-Cola. Dava para repetir umas três vezes. À vontade.