ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Vingança peluda não é solução
O marketing cinematográfico a serviço das plateias brasileiras
Mariana Filgueiras | Edição 42, Março 2010
Passava das nove da noite, a reunião já durava mais de quatro horas e cinco funcionários do marketing da distribuidora Focus Filmes penavam para encontrar uma boa saída em português para The Ugly Duckling and Me!, título de uma animação europeia sobre um patinho que, certo dia, vai-se saber por quê, acorda, olha para um rato e grita: “Papai!” A fita estrearia no Brasil em poucos dias e aquela segunda-feira era a data limite para a decisão. A tradução literal, “O Patinho Feio e Eu!”, estava descartada, pois chamar o herói de “feio” poderia espantar espectadores.
A coisa não ia. Entediado, o engravatado responsável pelo slide show abriu o programa de mensagem instantânea e pôs-se a conferir se alguém pensava nele: “Ainda está no trabalho?”, perguntavam de lá. “Putz, a coisa tá feia!”, respondeu o entediado de cá. Um colega que se ocupava em mastigar a tampa da caneta foi o primeiro a perceber o deslize: a conversa particular estava sendo projetada na parede. Como, àquela altura, qualquer interrupção do estupor era bem-vinda, ele largou o que estava fazendo e repetiu em voz alta: “Putz, a coisa tá feia!”
Silêncio na sala. Um profissional de marketing olhou para outro profissional de marketing e este para um terceiro, que devolveu o olhar. Sim, sim… Por cansaço ou por acaso, ou ainda por que o patinho era mesmo muito feio, o fato é que baixou um consenso imediato. Uma rápida consulta para saber se a diretoria considerava “putz” um palavrão – não, não considerava, ótimo – e deu-se a missão por cumprida. O patinho com voz de Márcio Garcia (o ator) estava liberado para as crianças do Brasil.
“Ficamos duas semanas em reuniões e o título apareceu assim…”, comentou a gerente de marketing Renata Ishihama, oito anos dedicados a titular lançamentos estrangeiros no Brasil. Engana-se quem pensa que a tarefa é deixada a tradutores de legenda – a raça não passa nem perto da sala de reuniões. Quem determina que Four Christhmases vire Surpresas do Amor e não “Quatro Natais” é o departamento de marketing das distribuidoras, um conjunto de cinco a doze almas cujo prazo para dar vazão à criatividade varia de 48 horas a noventa dias.
Muitas vezes as coitadas nem assistem às películas. “Não dá tempo”, explica a gerente da Europa Filmes, Mônica Alpha. “Temos de começar a preparar o material de divulgação muito antes de o filme chegar para nós. Trabalhamos com uma sinopse traduzida e algumas palavras-chave.” Foi assim com Million Dollar Baby, Oscar de melhor filme em 2005. Além do título original, eles tinham as palavras “luta” e “vitória”. Ideias como “Em Busca da Vitória” e “Lutando pela Vitória” entraram no páreo, mas tiveram vida curta. Uma fina psicologia decretou a vitória de Menina de Ouro: “A sua filha, a sua mãe ou a sua namorada podem ser a menina de ouro pra você”, ensina Mônica. “As expressões populares ampliam o público espectador.”
A cartilha do que funciona ou não reflete os avanços da ciência do marketing. Quantos animais/pessoas/profissões/façanhas não foram “da pesada” nos anos 80? As gírias, um grande sucesso daqueles tempos, hoje são tão passées quanto os cabelos de Farrah Fawcett. Como atestam lançamentos recentes, foram destronadas pelas tais “expressões populares”, que habitualmente também respondem pelo nome de lugar-comum. Zack and Miri Make a Porno virou Pagando Bem, que Mal Tem? My Life in Ruins virou Falando Grego. Num elegante jogo de palavras com a campanha do Ministério da Saúde, The Hangover [“A ressaca”] transformou-se em Se Beber, Não Case, solução que deve ter feito o aglomerado de almas soltar foguete.
Mas esses são exemplos, digamos, mais elaborados. Um veio popularesco não pode ser ignorado, e nele a rainha do tiro-e-queda é a solicitadíssima “deu a louca”, à qual nada e ninguém está imune. Em 2005, Deu a Louca na Chapeuzinho. Em 2006, Deu a Louca na Cinderela. Em 2007, hospício geral, pois Deu a Louca em Hollywood. Não há perdão sequer para diretores que se dão ao respeito. É o caso do dramaturgo e diretor independente americano David Mamet. No longínquo ano 2000, o seu State and Main (nomes de duas ruas) – uma comédia-cabeça sobre os estragos desencadeados por uma equipe de filmagem numa pequena cidade americana –, foi brindado com o título de Deu a Louca nos Astros. O século XVII não conheceu departamentos de marketing, caso contrário Hamlet nos teria chegado como Deu a Louca na Dinamarca.
Da lista do que não funciona constam gírias regionais (“arretado”, “trilegal” e assemelhados), títulos excessivamente longos (por comerem segundos preciosos das campanhas de rádio e TV), palavras pejorativas, escatológicas ou malditas (na distribuidora Europa, filme nenhum leva “maldição” no título) e aquelas que, aos olhos dos especialistas, “não dizem nada”. É o caso de Motherhood, que estreou em janeiro. O marketing da Paris Filmes, concluindo que traduzir por “Maternidade” seria abstrato demais, tascou-lhe um parente próximo do “deu a louca”, o quase tão popular “em apuros”. Ficou Uma Mãe em Apuros.
Nome próprio também pode comprometer. Ponyo, animação infantil do diretor japonês Hayao Miyazaki, com estreia marcada para abril, recebeu em inglês o título Ponyo on the Cliff by the Sea, algo como “Ponyo na Falésia do Mar”. A gerente de marketing da Playarte, Eliete Moraes, certamente suspirou fundo. “Fizemos uma pesquisa e constatamos que ninguém sabia o que era ‘falésia’, então optamos por Uma Amizade que Vem do Mar.”
Em casos muito desesperadores, as melhores práticas do marketing recomendam um tagline, o nome que eles dão para o subtítulo. Dizem que salva bilheteria. Nas asas dos taglines, Taxi Driver, de Martin Scorcese, renasceu, um tanto reiterativo, como Taxi Driver – Motorista de Táxi. Be Kind, Rewind, de Michel Gondry, inspirou um requintado trocadilho: Rebobine, Por Favor – Uma Loucadora Muito Louca.
A estratégia é adotada principalmente quando o diretor desautoriza mudanças no título, como faz Woody Allen, um chato, embora se deva dispensar alguma compaixão a um mortal que viu o seu Annie Hall transfigurar-se em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Para lançar Match Point, a distribuidora arriscou um Ponto Final – Match Point. Deu certo. Os filmes de Allen alcançam em média 250 mil espectadores. Esse fez 498 mil. Foi um dos campeões de bilheteria de 2005 no Brasil.
“Mudamos todos os títulos que, por qualquer razão, sejam difíceis de compreender ou de pronunciar na bilheteria ou na locadora”, diz Mônica Alpha. Vez por outra, admita-se, é a coisa sensata a fazer. Tome-se um filme como Furry Vengeance, que estreará em maio. Imagine-se o esforço do rapaz ao explicar aos pais da moça por que está tão animado em levá-la para ver Vingança Peluda.
Não, melhor não inventar. Deu a Louca nos Bichos e não se fala mais nisso.