Andréa Beltrão e Lee Thalor: insinuação de que a professora e o filho retomarão a vida sem abalos ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE
Violência e tranquilidade
Ao recriar os ataques do PCC, Salve Geral primeiro causa impacto e depois apazigua
Eduardo Escorel | Edição 37, Outubro 2009
Escolhido pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, Salve Geral, dirigido por Sérgio Rezende, será visto, em Los Angeles, pela comissão que escolhe os filmes que concorrerão, em 2010, ao Oscar de melhor filme produzido fora dos Estados Unidos que não seja falado em inglês. No Brasil, teve a sua estreia marcada para o dia seguinte ao início do julgamento dos líderes do Primeiro Comando da Capital, o PCC, acusados de serem os mandantes do assassinato do juiz corregedor de Presidente Prudente, ocorrido em 2003. Intencional ou não, a coincidência da estreia com o julgamento deverá ajudar a promover o filme, servindo de pretexto para reportagens como a publicada, no início de setembro, em O Estado de São Paulo. Assinada por Bruno Paes Manso, a matéria dá conta das premonições do promotor encarregado da acusação e de um sargento da reserva da Polícia Militar. Sem ter visto Salve Geral, o promotor levanta a suspeita de que os líderes do PCC serão apresentados como “personagens míticos”. O sargento, baseado apenas no trailer, sustenta que o filme “faz a defesa dos bandidos” e será “a revanche do crime”.
Até o momento, os produtores e o diretor de Salve Geral têm evitado, ao que parece deliberadamente, alimentar esse debate baseado em conjecturas. Profissionais experientes, devem estar inquietos com a possibilidade de os espectadores estarem saturados de violência e, ao contrário do que anuncia a manchete do Estado, não quererem reviver, “com julgamento e filme sobre facção”, os ataques atribuídos ao PCC.
Qualquer que seja a influência da polêmica na bilheteria de Salve Geral, o fato de o filme ser criticado sem ter sido visto evidencia a leviandade dos que, aparentemente, se propõem a debater questões sociais que extrapolam o âmbito cinematográfico. Um cineasta com a carreira de Sérgio Rezende não pode ser acusado de “ingenuidade”, muito menos de ser “partidário do crime”, conforme a conjectura feita por Luiz Carlos Merten no Estado.
Salve Geral, ao contrário, merece crédito prévio, lastreado na filmografia do diretor e na ambição de buscar uma plateia ampla, tratando de assunto da atualidade – aspecto que ganha especial relevância em meio aos subprodutos da televisão e comédias grosseiras que predominam entre os sucessos recentes do cinema brasileiro. Concebido a quente, o filme chega às telas antes de os acusados de envolvimento nos fatos que inspiraram o roteiro terem seu destino definido.
Ao tratar de eventos atuais e controversos, Salve Geral pode ter provocado expectativas equivocadas. Uma análise mais objetiva do filme, porém, atenua seu teor polêmico. O roteiro, de Sérgio Rezende e Patrícia Andrade, é estruturado em torno dos personagens centrais de uma professora de piano, Lúcia (Andréa Beltrão), e seu filho Rafa (Lee Thalor). Os episódios, desde o assassinato do juiz-corregedor ao acordo que pôs fim aos ataques a delegacias, agências bancárias e às rebeliões nos presídios, servem, na verdade, de pano de fundo para a via-crúcis da mãe que percorre o submundo em busca de salvação para o filho. O tema central do filme não é o PCC, mas a impossibilidade que haveria, nos dias que correm, de se permanecer alheio à violência, à criminalidade e à corrupção.
É inegável que o filme não tem o menor pudor em fazer um espetáculo da violência. Pegas, tiros, celas superlotadas, assassinatos, agentes penitenciários jogados do alto de um presídio, ônibus e lojas incendiadas pontuam a narrativa.
Salve Geral parece querer aproveitar o vácuo do sucesso de Carandiru, de 2003, dirigido por Hector Babenco. São filmes que procuram causar impacto cuidando, ao mesmo tempo, de apaziguar o espectador. Depois do massacre dos presos, a implosão dos pavilhões, na sequência final de Carandiru, permitia ao público sair da projeção com o sentimento de que o inferno carcerário tinha sido extinto.
Salve Geral põe em evidência que as condições degradantes dos presídios persistem. A professora de piano e o filho se envolvem na rebelião que leva a mais de 100 mortes, matam duas pessoas, cometem diversos delitos, além de a mãe corromper um juiz e um policial. Na sequência final, o filho pergunta para onde estão indo. Lúcia responde que não sabe. A frase seguinte encerra o filme. Rafa diz à mãe que está com fome. Fica insinuado que poderão retomar suas vidas sem maiores abalos. Salve Geral primeiro oferece doses pesadas de violência, depois procura tranquilizar o espectador.
Os filmes anteriores de Sérgio Rezende atestam acuidade para escolher assuntos de interesse geral, além de competência para dirigir cenas de ação, envolvendo, muitas vezes, grandes grupos de pessoas. Costumam dar destaque a personagens isolados, procurando estabelecer, através deles, um elo de identificação para o espectador. É marcante a opção reiterada por fórmulas narrativas consagradas, assim como por um modelo de produção que parece ter exaurido sua potencialidade inventiva. Salve Geral não foge a essas regras. O alto custo de produção da maioria dos filmes de Sérgio Rezende talvez o tenha levado a assumir uma postura em que a busca de eficiência artesanal se sobrepõe à inquietação criativa. Filmes mais pessoais, como Quase Nada, de 2000, tem sido exceção em sua trajetória.
Lendo a sinopse de Salve Geral, dificilmente se poderá evitar a sensação de já ter visto o filme muitas vezes. Por mais benfeito que seja, não resulta insatisfatória essa repetição de personagens e situações padronizados? A insistência em seguir um modelo de cinema institucionalizado não terá induzido as críticas antecipadas que, de certa maneira, atiraram sem ver e acertaram no que não viram?
Há, de fato, uma certa disparidade entre os personagens dos presos, de um lado, e, de outro, os da direção carcerária, dos policiais e da Secretaria de Segurança. Mas, ao contrário da suposição de que haja intenção de “fazer a defesa dos bandidos”, essa diferença talvez resulte apenas da qualidade do atores, muito superior ao interpretarem personagens populares. Representar a classe dominante sem ser caricatural é uma limitação raras vezes superada no cinema brasileiro. Por essa via, Salve Geral pode mesmo sugerir uma visão unilateral dos envolvidos no confronto.
Dispondo de meios técnicos e recursos financeiros muito inferiores, tendo sido gravado pela diretora sozinha, o documentário Entre a Luz e a Sombra, de 2007, dirigido por Luciana Burlamaqui, exibido em festivais, mas ainda inédito no circuito comercial, é mais revelador do que Salve Geral sobre a inquietação e o medo que tomaram conta da cidade de São Paulo durante a rebelião do PCC. A versão documental resulta menos assertiva ao preservar a incerteza sobre o que está ocorrendo e seus possíveis desdobramentos, enquanto o tratamento ficcional assume os fatos como prontos e acabados, tendendo a eliminar qualquer ambiguidade.
Leia Mais