Se Barack Obama ganhar em novembro, os Estados Unidos terão eleito um presidente negro muito antes do que Lobato previu em seu livro, que viaja no tempo até o ano de 2228. IMAGEM: BENÍCIO_2008
Visionário espiroqueta
No romance O Presidente Negro, a arte não imita a vida nem o marketing: o leitor sai em busca de Barack Obama, mas quem desponta é Hitler
Roberto Pompeu de Toledo | Edição 25, Outubro 2008
Uma mulher e um negro disputam a presidência dos Estados Unidos. Enfim as mulheres, ancestrais coadjuvantes do macho nas empreitadas que garantiram a hegemonia da espécie humana no planeta, levantam-se a ponto de reivindicar o primeiro plano no mais avançado e bem-sucedido dos países. Parece Hillary Clinton, não parece? A mulher fica no meio do caminho (continua parecendo Hillary), e vence o negro (parece Barack Obama, não parece?). Enfim um negro, representante da mais oprimida das gentes, sobrevivente de uma crônica de humilhação e escravização, alça-se a ponto de destronar o branco no mais poderoso de seus postos. Parece o panorama de hoje nos Estados Unidos, mas não é. É o enredo de O Presidente Negro, romance utópico-futurista de Monteiro Lobato escrito no distante ano de 1926, e ambientado no distante ano de 2228.
A obra de Monteiro Lobato, agora sob a guarda da editora Globo, começou a voltar no ano passado às livrarias, depois de longa ausência, provocada pelo litígio entre os herdeiros e a editora anterior, a Brasiliense. Os responsáveis pelo relançamento não resistiram em incluir O Presidente Negro entre os primeiros livros resgatados, senão do esquecimento, pelo menos do alcance dos leitores. Com um título desses, e um enredo desses, resistir quem há de? Eis uma ocasião em que a vida, se não imita a arte, pelo menos imita o marketing. O relançamento do livro foi, claro, cercado de sugestões de que, 82 anos atrás, Lobato previu os Estados Unidos de Barack Obama. Vai-se ler o livro e o que desponta é…
Pausa para necessárias expiações pessoais. O autor que vos fala lamenta o que vai dizer. Como muitos brasileiros, ele tem uma dívida de gratidão para com Lobato. Deve-lhe as horas de felicidade usufruídas na infância, na companhia da turma do Sítio do Picapau Amarelo. Deve-lhe em boa parte, pela descoberta, desde pequeno, de como pode ser prazerosa a companhia de um livro, o ter-se tornado um leitor. Ainda hoje, tem a convicção de que Monteiro Lobato não foi apenas o melhor escritor de livros para crianças do Brasil, mas um dos melhores do mundo.
Isso posto… Vai-se ler O Presidente Negro e o que desponta, em vez de Obama, é… Hitler! E não como denúncia, mas como exaltação de um dos traços mais característicos da doutrina nazista. Se Obama aponta para a afirmação dos negros, o romance de Lobato vai no sentido contrário. Em vez de celebrar a igualdade, ou, como quer o candidato à Casa Branca, a superação da questão racial, o que comemora são as teses raciais que, com a ascensão dos nazistas ao poder, sete anos depois de publicado o romance, triunfariam na Alemanha.
“Sabe o que ando gestando?”, pergunta Lobato, em julho de 1926, ao amigo Godofredo Rangel, com quem trocou cartas a vida inteira. “Um romance americano, isto é, editável nos EUA. Já comecei e caminha depressa. Meio à Wells, com visão de futuro.” O romance em questão era O Presidente Negro, que antes de consolidar-se com esse nome foi também chamado de O Choque das Raças e de O Raio Branco. O Wells citado é o inglês H. G. Wells, autor de A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos, que Lobato admirava.
Se há uma palavra para definir Lobato, é visionário. Se há outra, é espiroqueta. Visionário-espiroqueta dos maiores que já despontaram no cenário brasileiro, ele atravessou a vida com três obsessões, a saber, e não necessariamente nessa ordem: escrever, ficar rico e salvar o Brasil. Escritor não-beletrista, o que era novidade na época como continua mais ou menos a ser hoje, sua porção empresário caminhou todo o tempo parelha à do escritor, e numa como na outra se sobrepunham o visionário e o espiroqueta.
A porção empresário já imaginara coisas como criar um colégio modelo, nada inferior a Eton ou Cambridge, em sua cidade natal, Taubaté, no Vale do Paraíba paulista, ou construir em São Paulo um novo viaduto do Chá, sobre o qual se construiriam, de um lado e do outro, casas e lojas. No plano das efetivas realizações, já experimentara a glória de se ter transformado no mais interessante, imaginativo e audaz editor que o Brasil conhecera, com a criação da Monteiro Lobato e Cia. – editora que inovou em tudo, do cuidado que dispensava ao produto aos modos de comercializá-lo e às tiragens de 10 mil, 20 mil, ou mais exemplares, jamais sonhadas até então e raras ainda hoje. Foi bom enquanto durou. Fundada em 1920, em 1925 a editora foi à falência, vitimada pelo mesmo vírus que lhe garantira o estrondoso sucesso: o visionarismo espiroqueta de seu criador.
Eis que naquele ano de 1926, aos 44 anos, falido e endividado mas nunca desanimado, unem-se em Lobato o escritor e o empresário em mais uma visão luminosa, a visão das visões: conquistar o mercado americano. “Imagine se me sai um best-seller”, continuava, na mesma carta a Godofredo Rangel. “Um milhão de exemplares…” É com os dólares a atiçar-lhe a pena que escreve, em apenas três semanas, O Presidente Negro. Nessa época residia no Rio de Janeiro, para onde se retirara julgando dessa forma curar mais depressa as feridas do naufrágio da editora. O livro foi primeiro publicado em folhetins, entre setembro e outubro de 1926, pelo jornal A Manhã, de Mário Rodrigues, o pai de Mário Filho e de Nelson Rodrigues.
As crianças, em outras ocasiões tão bem-vindas, na audiência de uma história de Monteiro Lobato, já saíram da sala? E os multiculturalistas, os defensores da igualdade, os anti-racialistas, os militantes das minorias, os antifascistas e as donzelas? Então pode-se começar a contar a história de O Presidente Negro.
Um dia, ao subir a serra do Rio para Friburgo, o simplório vendedor Ayrton Lobo sofre um acidente de automóvel. É socorrido por um morador das proximidades, o professor Benson, homem de origem americana que o toma a seus cuidados e o abriga no castelo em que vivia. Sabe-se lá por que (o romance não perde tempo em destrinchar sutilezas psicológicas), o refinado e sábio Benson resolve confiar ao rústico hóspede o segredo de sua vida – o aparelho de enxergar o futuro, ou porviroscópio, que inventara e instalara, escondido e bem protegido de olhares intrusos, em seu castelo.
Lobato é muito bom para criar nomes. Se não tivesse chamado o Jeca Tatu de Jeca Tatu, é de duvidar que o personagem tivesse o mesmo sucesso. O Brasil ele chamou de “Botocúndia”, nome que foi parar no título de uma biografia relativamente recente, Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia, de Carmem Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta. O pó mágico com que Emília e o pessoal do Sítio do Picapau Amarelo viajam no tempo e no espaço é o pó de pirlimpimpim. “Porviroscópio” é fruto do mesmo dom para batizar os personagens ou objetos de sua criação.
O professor Benson tinha uma filha – e que filha! Miss Jane fez Ayrton Lobo atrapalhar-se e gaguejar, ao ser apresentado a ela. Cabelos louros, olhos azuis – a mais encantadora criatura com quem o pobre vendedor jamais deparara. Além disso, “finamente educada e generosa”; e, para culminar, sábia e inteligente como o pai. O contato com a ciência e a convivência com o homem superior que era o professor Benson afastaram dela “todas as preocupações de coquetismo, próprias da mulher comum”. Em suma, conclui Ayrton Lobo, num do vários ataques de misoginia que manifestará ao longo do livro, “de feminino só havia, em miss Jane, o aspecto”. Tanto quanto Benson, a filha vivia isolada no castelo, e tanto quanto ele passava os dias a pesquisar o tempo futuro.
Mal contara o seu segredo, mostrara ao hóspede sua fabulosa máquina e lhe explicara o complexo mecanismo, o professor Benson morre. Há personagens de romance fadados a morrer, como se sabe, e esse era um deles. Também já estava velhinho, coitado. Seu último e heróico gesto foi destruir a máquina do tempo, o maior dos engenhos jamais inventado. Ele temia que, caindo em mãos imprudentes, ela poderia causar grandes males.
Nobre professor Benson! Mas não se imagine que, com toda sua altaneria de espírito, se esquecesse das necessidades mais prementes. Além de se divertir com passeios pelo tempo futuro, usara a máquina, um par de vezes, para negociar com moedas, comprando, na baixa, francos e marcos que o porviroscópio lhe informara estarem por sofrer forte alta. Tampouco deixou a filha ao desamparo. Ao destruir a máquina, pôde fazê-lo com a tranqüilidade de quem possibilitara à herdeira copiar as cotações da Bolsa nos próximos cinqüenta anos. Filha alguma, em tempo algum, foi contemplada com legado mais valioso.
As crianças já saíram da sala? E os igualitaristas, os multiculturalistas, os anti-racialistas, as donzelas? O exposto até aqui não passou de esquentamento. Agora é que o jogo começa para valer, com a história do presidente negro propriamente dita, contada a Ayrton por miss Jane. O caso ocorre por ocasião da eleição do 88º presidente dos Estados Unidos, naquele ano de 2228, e impressionou a filha do professor Benson mais do que qualquer outro, em suas extensas pesquisas pelo futuro afora.
Um imprevisto veio a perturbar a campanha eleitoral americana de 2228: as mulheres decidiram apresentar candidatura própria. Elas haviam se deixado contaminar ao ponto do fanatismo pelas teorias do “sabinismo”, tal qual formuladas pela líder feminista Gloria Elvin. O “sabinismo” sustentava que a mulher não é a fêmea natural do homem, como a leoa é do leão ou a galinha do galo. Essa fêmea natural, o homem a repudiara em tempos remotíssimos e, para substituí-la, raptara a fêmea de outro mamífero, tal qual, na Antiguidade, os romanos raptaram as sabinas. Daí a mulher ser tão diferente do homem, com uma organização cerebral que privilegia a fantasia sobre a lógica, de forma que, para ela, nem sempre dois mais dois são quatro. Era hora de se proclamar sua independência do cruel raptor, e por isso lançaram a candidatura da bela Evelyn Astor em desafio à reeleição do ocupante da Casa Branca, o presidente Kerlog.
A população americana nesse tempo, de 314 milhões de habitantes, compunha-se de 206 milhões de brancos e 108 milhões de negros. Os negros tornavam-se uma porção cada vez mais significativa da população, pela velocidade muito maior com que procriavam. Entre os brancos, as melhores estatísticas contabilizavam 51 milhões de votos para o Partido Masculino e 51,5 milhões para o Partido Feminino. Os negros dispunham de 54 milhões de votos, e seriam, portanto, os fiéis da balança. Os negros! O “único erro”, segundo miss Jane, na “feliz composição” em que se constituía a população dos Estados Unidos, “a feliz zona que desde o início atraiu os elementos mais eugênicos das melhores raças européias”.
O Lobato de O Presidente Negro está tão impregnado de “eugenia” quanto as personagens femininas do romance de “sabinismo”. A eugenia, a ciência, ou suposta ciência, da boa raça, vivia então grandes dias, no Brasil. Seus principais propugnadores, como Renato Kehl, presidente da Sociedade Eugênica de São Paulo, Artur Neiva e Belisário Pena, gozavam de audiência e prestígio. Lobato era amigo deles.
Em estado puro, a eugenia refere-se à qualidade das raças, seja pela origem genética, seja pelos aperfeiçoamentos possíveis. No Brasil, misturou-se com higiene e saneamento. Em 1918, Lobato publicou no jornal O Estado de S. Paulo uma série de artigos em que propugnava, com a combatividade de sempre, pelo saneamento nos municípios do interior e pela atenção à saúde das populações rurais. Por iniciativa da Sociedade Eugênica, os artigos foram reunidos em livro intitulado Problema Vital, prefaciado por Renato Kehl. Nessa fase, Lobato continha-se na faceta, digamos, benigna do eugenismo à brasileira – a faceta da higiene e da saúde. Em , pela voz de miss Jane, ele avança em sua faceta racial.
“Que você pensa do americano?”, pergunta miss Jane a Ayrton Lobo. Antes de avançar na história de 2228, ela sonda o interlocutor sobre os Estados Unidos do presente, ou seja, daquele ano de 1926. Ayrton, tolo como sempre, repete uma frase que ouvira do patrão: “Povo sem ideais, o mais materialão da terra.” Miss Jane, pacientemente, põe-se a contradizer o vendedor. Povo sem ideais, o americano? Muito pelo contrário, ele possui um “idealismo orgânico”, voltado para a prática e o progresso, ao contrário do idealismo furioso e utópico dos europeus. Veja-se o exemplo de Henry Ford. Ele sonha – “mas sonha a realidade do amanhã”. Esse espírito fez dos Estados Unidos a terra do progresso e do bem-estar, “um imenso foco luminoso num mundo de candeeiros de azeite e velas de sebo”. E não podia ser diferente, ensina miss Jane, pela qualidade eugênica de seu povo. À sorte de receber os melhores espécimes das raças européias, desde o Mayflower, vieram se somar as leis seletivas pelas quais só eram aceitos os imigrantes de boa qualidade. “Ficava a flor. O restolho voltava.”
“E o negro?”, atreve-se a perguntar Ayrton Lobo. A sociedade americana é também composta do negro. Miss Jane reconhece que o mar de acertos que beneficiou os americanos foi manchado pelo erro de ter ido buscar o negro na África, e Ayrton Lobo encontra aí uma rara ocasião de contrapor ao erro americano um acerto brasileiro. No Brasil, segundo ele, dentro de um ou dois séculos o negro terá desaparecido em virtude dos sucessivos cruzamentos com o branco. Já nos Estados Unidos o erro é impossível de ser corrigido. “Não acha que fomos felicíssimos em nossa solução?”, pergunta ele.
Não, miss Jane não acha. A miscigenação brasileira estragou as duas raças. “O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter.” Mas então miss Jane prefere a solução americana, que foi deixar as duas raças “se desenvolverem paralelas no mesmo território, separadas por uma barreira de ódio”?
Era o que miss Jane esperava para o xeque-mate no adversário: “Esse ódio foi a mais fecunda das profilaxias. Impediu que uma raça desnaturasse, descristalizasse a outra, e conservou ambas em estado de relativa pureza. (…) O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano.”
Pausa para as indagações que a esta altura se atropelam na mente do leitor. Quem é essa miss Jane? Deve-se tomar sua voz como a do próprio autor do livro? Por trás da formosa castelã de Friburgo, loura e de olhos azuis – ela própria o triunfo da eugenia, tal qual entendida por seus propugnadores – se esconderiam as idéias do baixinho, mirrado e moreno Lobato?
Pode-se garantir que sim. Depois dos contos da mocidade, escritos quando ainda não era famoso, no remanso de sua fazenda no Vale do Paraíba, Lobato nunca mais fez, na obra para adultos, uma literatura, por assim dizer, “literária”. Longe dele as preocupações com um entrecho bem urdido, um personagem bem construído. É sempre uma literatura de combate, de defesa de uma causa que julgava boa para o Brasil ou para a humanidade, e sua forma típica é o artigo de imprensa, que depois reunia em livros. O Presidente Negro tem a singularidade de ser um romance, e um romance armado na clave do humor (às vezes bem-sucedido, às vezes não) e da sátira, mas lá na música de fundo o que se ouve é a voz do autor, a esta altura inseparável das teses a que servia com fervor de profeta.
Os argumentos de miss Jane, como o do “ódio como a mais fecunda das profilaxias”, vêm com freqüência carregados como numa caricatura. Ela se permite uma liberdade retórica que o autor, sem a máscara de uma personagem de ficção, não se permitiria. Mas, no fundo, no fundo, não está dizendo coisa diferente do que o Lobato-ele-mesmo já dissera, ou viria a dizer.
Na maior parte da vida – a exceção são os anos finais, por razões que se emaranham com sua defesa da pesquisa do petróleo no Brasil -, ele nutriu entusiasmada admiração pelos Estados Unidos. Numa carta de 1922, citada por seu biógrafo Edgard Cavalheiro, escrevia: “Que vontade de mudar de terra – ir viver num país vivo, como o dos americanos! Isto [o Brasil] não passa dum imenso tartarugal. Tudo se arrasta.” Em 1927, ano seguinte ao de O Presidente Negro, nomeado adido comercial em Nova York pelo presidente Washington Luís, realizaria o sonho de morar nos Estados Unidos. Escreveu então: “Sinto-me encantado com a América! O país com que sonhava. Eficiência! Galope! Futuro! Ninguém andando de costas.”
Uma das bases de sua admiração era Henry Ford. Lobato traduziu dois livros de Ford: Minha Vida e Minha Obra e Hoje e Amanhã. No prefácio do primeiro, afirma que, ao contrário dos pensadores como Rousseau e Marx, que imaginam “soluções teóricas, belas demais para serem exeqüíveis”, Ford “admite o homem como é, aceita o mundo como está, experimenta e deixa que os fatos tragam a solução rigorosamente lógica, natural e humana”. Em suma, Ford, “a mais lúcida e penetrante inteligência humana”, é o “idealista orgânico” – e aí temos, na pena de Lobato-ele-mesmo, a mesma expressão que porá na boca de miss Jane.
A argumentação da castelã de Friburgo toma a dianteira com relação a seu criador na defesa sem reservas nem escrúpulos da segregação racial, então sancionada por lei nos Estados Unidos. Mas, bem medidas as coisas, não é uma dianteira assim tão significativa. O mesmo tema, vamos encontrar em América, o livro que Lobato escreveria em 1930, durante seu período nova-iorquino. Embora não seja um romance, mas uma coleção de artigos/ensaios, a estrutura de América é parecida com a de O Presidente Negro. As diversas facetas da vida americana, e a comparação com o Brasil, são abordadas em forma de diálogo entre um inglês ficcional, mr. Slang, e o próprio Lobato. Mr. Slang, que, do alto de seu padrão civilizacional, tem um olho clínico para detectar as besteiras brasileiras, já tinha aparecido num livro anterior, Mr. Slang e o Brasil. Assim como miss Jane, ele faz o papel de sábio, cabendo a Lobato o de ingênuo, só um pouco menos tolo que Ayrton Lobo.
Num dos artigos de América, o tema é uma notícia de jornal, a do divórcio requerido por Berenice Seeney, de 25 anos, de seu marido, por ter descoberto que ele tinha sangue negro. Berenice via-se “posta no ostracismo por suas companheiras de escola e transformada numa pária social até na própria família”; por isso, não só pedia o divórcio como renunciava aos dois filhos do casal, entregando-os à guarda do marido. Segundo declarou ao juiz, ao casar-se não percebeu sinal de negritude no noivo; só cinco anos mais tarde, ao conhecer um parente dele, “veio a ter notícia da terrível coisa”. Dá-se então o seguinte diálogo entre Lobato e mr. Stanley:
“É demais, mr. Stanley!”, exclamei revoltado. “Renegar o marido, tão branco na aparência que só depois de cinco anos de convívio, e por acaso, ela soube que tinha nas veias uma remota gota de sangue africano, já era muito. Mas essa puritana da raça vai além – renega os próprios filhos. É odioso, não acha?”
“Não sei”, respondeu mr. Slang, que apesar de inglês participava bastante do preconceito racial americano. “Não sei se não será isto um instinto da raça que se defende. Cruel, confesso. Crudelíssimo, neste caso. Mas os altos interesses da raça não estarão acima dos pequenos interesses do indivíduo?”
Assim como em O Presidente Negro, Lobato não mostra a cara para defender a segregação racial. Recorre a mr. Slang, como antes tinha recorrido a miss Jane. Mas, num caso como no outro, a defesa vem na forma de uma lição do interlocutor sábio ao amigo ingênuo. Concluamos assim: não é que Lobato encarne propriamente o prosélito do sistema de segregação à americana, mas compreende as razões que levaram os Estados Unidos a adotá-lo e acha que teve papel decisivo na construção de uma sociedade inventiva e operosa como a americana.
Quanto à outra face da mesma questão – a condenação da miscigenação brasileira –, miss Jane não revela originalidade. Apenas filia-se a uma das duas correntes, ambas racistas, em que os intelectuais brasileiros da época se dividiam. A corrente de miss Jane é a mesma de Nina Rodrigues: a de que a mestiçagem produzia tipos fracos, indolentes e intelectualmente limitados. Ayrton Lobo faz-lhe o contraponto ao defender, como Sílvio Romero, a outra corrente – a de que a mestiçagem era boa porque levaria ao “branqueamento”. De tanto copularmos livremente, com solene desprezo pela fronteira das raças, acabaríamos, todos os brasileiros, graças ao gene mais forte da raça branca, alvos como o alemão.
Os “altos interesses da raça” a que se refere mr. Slang estarão presentes com toda a força durante o transe sofrido pela sociedade americana naquelas eleições de 2228, tal qual visto por miss Jane no porviroscópio. Tanto o Partido Masculino quanto o Partido Feminino cortejavam o grande líder dos negros, Jim Roy, “um homem de imenso valor”. Graças a seu gênio e sua sagacidade, Jim Roy conseguira reunir todos os negros sob seu comando. “Sempre sábias e construtoras”, explica miss Jane, “suas instruções desciam com autoridade de dogmas sobre todas as cédulas da Associação Negra e as faziam moverem-se como puros autônomos.” Conseguir seu voto era conseguir o voto da população negra em peso.
Jim Roy, entenda-se, não era um negro que reconheceríamos como tal. Assim como o geral da população americana chamada de “negra”, tinha a pele esbranquiçada. “A ciência havia resolvido o caso da cor pela destruição do pigmento”, explica miss Jane. Mas o cabelo continuava duro e crespo, e a hostilidade dos brancos era ainda maior: “Não lhes podiam perdoar aquela camuflagem de despigmentação.” Para resolver o conflito entre os dois grupos havia duas teses concorrentes. Uma era a da divisão do país, ficando o sul com os negros e o norte com os brancos. Era a proposta de Jim Roy. Outra, dos brancos, era deportar os negros para o vale do Amazonas. (Por falar em Amazonas, explique-se que o Brasil de 2228 é um outro Brasil. O país cindira-se em dois. Um, espraiado ao longo da grande região industrial surgida nas duas margens do rio Paraná, juntara o sul do Brasil com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Era próspero e branco. O outro, ao norte, era uma república tropical de sangue contaminado e sacudida por crônicas convulsões.)
Chega enfim o dia da eleição. O voto, em 2228, era transmitido por “radiação”. Sem sair de casa, os eleitores transmitiam sua preferência a uma central em Washington que processava a apuração de forma instantânea. Do mesmo modo, os líderes políticos transmitiam pelo rádio as instruções a seus liderados. Jim Roy manteve-se em silêncio até o último momento. O presidente Kerlog confiava no seu apoio por uma questão de solidariedade masculina. A desafiante Evelyn, por considerá-lo um aliado contra o opressor comum. Eis que, na hora de transmitir as instruções à enorme massa de liderados, Jim Roy instruiu-os a descarregar seus votos em… nele mesmo! Em Jim Roy! A divisão dos brancos abrira uma brecha para o impensável – os Estados Unidos teriam agora um presidente negro.
O ano de 2228 está ainda a 220 anos de distância. Se Barack Obama ganhar em novembro, os Estados Unidos terão eleito um presidente negro muito antes do que Lobato previu. Obama surge apenas 82 anos – um nada, em tempo histórico – depois que O Presidente Negro foi escrito. Registre-se, em favor dos Estados Unidos, que a máquina do tempo andou muito mais depressa, na vida real, do que no porviroscópio do professor Benson. Ainda fica faltando aos americanos elegerem uma mulher. Com Hillary Clinton fora do jogo, ao sexo feminino resta uma eventual vice-presidência, no caso de sair vitoriosa a chapa John McCain/Sarah Palin. Não há consolo para as mulheres tampouco no romance de Lobato. Também nele elas perdem – e recebem a derrota de um modo a deixar tanto a feminista do livro, a criadora do “sabinismo”, como as de hoje, vermelhas de raiva.
Imagine-se Hillary Clinton desfazendo-se, chorosa, dobrada de arrependimento, a procurar os braços de Bill, depois de derrotada, e confessando ter cometido enorme erro ao ousar desafiar o macho. Pois foi isso que Evelyn Astor e todas as outras fizeram. Voltaram correndo para os namorados e os maridinhos, ansiosas por perdão e reconciliação. Evelyn Astor fez um sentido discurso: “Divorciamo-nos dele [do macho], declaramos-lhe guerra, difamamo-lo, e a paixão nos cegou a ponto de não vermos o polvo que espiava a brecha a fim de envolver o Capitólio em seus tentáculos.”
Menos mal porque foi uma derrocada feita de graça e beleza. Não havia mais feiúra (pelo menos entre os brancos) em 2228, assim como não havia mais deficientes físicos, nem loucos, nem prostitutas, nem tarados. O Código da Raça, “o mais alto monumento da sabedoria humana”, resolvera esse problema ao impor severas limitações ao direito de procriar. Só quem passasse por testes minuciosos, e ao final deles apresentasse “a série completa de requisitos que a eugenia impunha”, recebia do Ministério da Seleção Artificial o “brevê de pai autorizado”.
(Quando tomou conhecimento dessa regra, Ayrton Lobo, encantado, desabafou: “Parece incrível, miss Jane, que ainda hoje tenha o direito de ser pai quem quer. Morféticos há ali na roça que botam no mundo anualmente pequeninos lázaros. E ninguém vê, ninguém diz nada, todos acham que está tudo direito…”)
Último aviso: as crianças já saíram da sala? E os campeões da justiça, os baluartes da igualdade racial? Os mais revoltados já acionaram o Tribunal Penal Internacional? Engana-se quem pensa que a raça branca, tão orgulhosa de si mesma e consciente de seus naturais direitos, ia-se conformar com a situação. Uma reunião do Ministério foi convocada. Concordou-se que o problema transcendia a política, para atingir o campo da raça. “Acima das leis políticas vejo a lei suprema da Raça Branca”, disse um ministro. “Acima da Constituição vejo o Sangue Ariano.” Resolveu-se convocar a Convenção da Raça Branca. Era o jeito de levar a questão para sua justa e insigne esfera.
Os convencionais eram apenas seis pessoas, a elite da elite da elite da sociedade, representando, cada um, a corporação da qual era o líder inconteste – a indústria, o comércio, as finanças, a arte, as ciências e as letras. Desde logo estava afastada a hipótese de golpe de Estado. Nem mesmo num momento de crucial emergência como esse, a sacrossanta Constituição de 441 anos de idade poderia ser violada. Mas também ficou decidido que de modo algum o comando do país seria entregue aos negros. Como contornar o dilema? O presidente Kerlog ficou de pensar. Ao despedir-se, o representante da Ciência, John Dudley, um velhinho de olhar muito vivo e alegre, autor de 72 invenções, disse enigmaticamente que, caso não ocorresse a Kerlog nenhuma solução, quem sabe ele pudesse ajudar.
Dez dias depois, Kerlog pedia socorro a Dudley. O velhinho sorridente apareceu então com um novo fruto de sua miraculosa mente, sua 73ª e insuperável invenção – nada menos do que uma loção “descarapinhadora”, à base de poderosos raios ômega. Os negros, como se recorda, já tinham conquistado o branqueamento da pele, mas os cabelos continuavam grossos e crespos. A loção os presenteava com melenas finas e sedosas. O presidente, ao conhecer o alcance do produto, apoiou seu imediato lançamento no mercado, e seguiu-se o previsível e estrondoso sucesso: “Cem milhões de criaturas reviraram para o céu os olhos agradecidos. Os negros chegaram a tomar-se de puro êxtase.” Ninguém mais pensava em política, entre os liderados de Jim Roy. As negras, sobretudo, viviam uma felicidade jamais sonhada. Passavam o dia ao espelho, “penteando-se e despenteando-se gostosamente”. Até Jim Roy aderiu ao descarapinhamento. Só que…
Infernal velhinho de olhar vivo e alegre! Os raios ômega da loção de Dudley tinham um duplo efeito: ao mesmo tempo em que alisavam os cabelos, esterilizavam o usuário. Eis que os brancos da América, de um só golpe, e sem derramar uma única gota de sangue, faziam desaparecer do horizonte toda a comunidade rival. Para completar o happy end, Lobato faz com que Jim Roy morra, de modo mal explicado, mas em todo caso necessário, no próprio dia de sua posse. Foram convocadas novas eleições, vencidas por Kerlog. Um ministro comentou, rendendo homenagem ao velhinho esperto: “Só o ariano é grande e Dudley é o seu profeta.”
Lobato citou os livros H. G. Wells como fonte de inspiração para seu romance futurista. Ainda estavam por aparecer dois romances de uma família mais próxima de O Presidente Negro: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. O primeiro é de 1932; o segundo, de 1948, e ambos descrevem sociedades futuras depuradas de imperfeições por experimentos sociais e avanços científicos. Nos dois casos, os heróis são indivíduos solitários que se colocam contra o corrente ao se dar conta do que o sistema tem de injusto e opressivo. No livro de Lobato, o herói é o velhinho Dudley, situado na mais alta cúpula do sistema e que opera para que ele conserve suas virtudes. Enquanto em Huxley e em Orwell os heróis são massacrados pelo sistema, em Lobato as ameaças ao sistema é que são massacradas pelo herói. Em Lobato, o herói é o genocida.
Infernal Lobato! Uma nota em A Manhã, anunciando a publicação, em folhetins, de O Presidente Negro, afirmava que o romance “sairá em cinco línguas simultaneamente” e adiantava: “É um hino à Eugenia, às leis espartanas revividas na América, e é um brado d’armas em prol do princípio mágico que está fazendo da América do Norte um mundo dentro do mundo – a Eficiência.” Às vésperas da publicação da história em livro, Lobato redige ele mesmo uma circular aos livreiros, chamando a atenção para “o novo livro de Monteiro Lobato (…), escrito para um grande editor de Nova York – o qual prevê para a obra um grande sucesso de livraria nos EUA”. Além da “alta intensidade dramática”, o livro é descrito como “semeador das mais altas idéias da Eugenia”.
Tanto a nota de A Manhã como a circular aos livreiros continham propaganda enganosa. O livro não seria lançado simultaneamente em cinco línguas, nem fora escrito para um editor de Nova York. Mas eis que tanto um texto como o outro ressaltam, como ponto forte da obra, a exaltação à eugenia, cuja letra inicial é sempre escrita com maiúscula. É a evidência, se é que ainda era necessária mais uma evidência, de que miss Jane não estava sozinha no êxtase eugênico que a assola. A compartilhar com ela do mesmo entusiasmo estava o autor do livro.
No Natal de 1926, O Presidente Negro foi lançado em livro no Brasil, com tiragem de 16 mil exemplares, mas a cabeça de Lobato estava no mercado americano. “Minhas esperanças estão todas na América”, escrevia ele ao cunhado, o também escritor Heitor de Morais. “Mas O Choque [O Choque das Raças, o outro nome do livro] só em fins de janeiro será traduzido para o inglês, de modo que só lá para o segundo semestre verei dólares. Mas os verei, e à beça, já não resta a menor dúvida.” Lobato envia a versão em inglês que providenciara para o romance a meia dúzia de editores americanos. Em maio de 1927, muda-se para Nova York, e agora vai cuidar do projeto mais de perto. Tem ainda outro plano, mais um dos mirabolantes planos que nunca lhe faltam: fundar uma editora nos Estados Unidos. Já escolheu o nome: Tupy Publishing Company.
Passam-se os meses e nenhuma resposta dos editores americanos. Enfim, no final do ano, William David Pall, diretor da agência literária californiana Palmer, digna-se a mandar-lhe uma resposta. Pall começa pelas qualidades que vê na obra, “de interesse acima da média”, mas ressalva que, “infelizmente, o enredo central é baseado em um assunto particularmente difícil de se abordar neste país”. A carta prossegue num tom de lição de moral do americano curtido nas realidades do país ao americanófilo ingênuo:
Estivesse o senhor lidando com a invasão de uma nação estrangeira, ou raça, a reação seria bem diferente; mas o negro é um cidadão americano, uma parte integrante da vida nacional, e sugerir seu extermínio por meio da sabedoria e da capacidade superior da raça branca levaria a uma dissensão tão violenta no espírito dos leitores quanto faria um conflito entre dois partidos políticos, ou duas religiões, em que um extirparia o outro.
Ainda restava uma esperança – usar do próprio mal-estar que O Presidente Negro poderia causar como combustível para o sucesso. “Um escândalo literário equivale no mínimo a 2 milhões de dólares para o autor”, escrevia agora Lobato a outro amigo. Contava que um “editor judeu” entusiasmara-se pelo livro e lhe sugerira que enxertasse nele “mais matéria de exasperação”; o tal judeu imaginava que, com uma dose extra de veneno, o livro conseguiria uma proibição policial – “o que vale 1 milhão de dólares”. Proibido nos Estados Unidos, o livro sairia na Inglaterra e voltaria contrabandeado “com o uísque e outras implicâncias dos puritanos”.
A perseguição policial foi outro sonho frustrado. Como poderia ter acontecido, se não aconteceu nem o livro? Não houve editor americano que se aventurasse a publicá-lo, nem passou de projeto abortado a Tupy Company, que o poderia ter publicado sob os auspícios do próprio autor. Na carta de 5 de setembro de 1927 a Godofredo Rangel, Lobato entrega os pontos:
Meu romance não encontra editor. Falhou a Tupy Company. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue-frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão tarde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.
A eugenia que tanto entusiasmo causou no autor de O Presidente Negrosurgiu de uma costela das teorias de Charles Darwin sobre a origem das espécies. De uma costela torta, diga-se, pois Darwin jamais sugeriu que a seleção natural pudesse servir de inspiração para uma seleção artificial destinada a melhorar a raça humana. Mas de uma costela próxima, pois o criador das modernas teorias eugênicas e, inclusive, inventor do termo eugenia (do grego eu, bom, + genia, raça, tronco, família) foi um primo de Darwin, Francis Galton.
As teorias de Galton obtiveram nos Estados Unidos vitórias que vão além da segregação dos negros e da proibição dos casamentos inter-raciais. Entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, vários estados americanos adotaram leis de esterilização ou proibição de casamentos a pessoas portadoras de doenças como esquizofrenia e epilepsia. São também de inspiração eugenista as leis que, nos anos 1920, apresentaram barreiras à imigração de pessoas que não fossem da raça considerada a mais saudável e capaz, isto é, as populações do norte da Europa. A entrada de pessoas oriundas do sul europeu, como os italianos, passou a ser controlada, e a de asiáticos, como japoneses e chineses, praticamente cessou.
A próxima, e apoteótica, entrada da eugenia na vida de um povo ocorreu na Alemanha de Hitler. As esterilizações em pessoas consideradas física ou mentalmente ineptas somaram centenas de milhares, e não se ficou nisso – a eutanásia também foi instituída como remédio para livrar a sociedade de tipos considerados disgênicos, entre os quais os homossexuais. “Raças inferiores”, como judeus e ciganos, não apenas eram proibidas de conviver com os sacrossantos arianos – deveriam ser eliminadas. Também foi em nome de um ideal eugênico que se permitiram as pesquisas genéticas realizadas em campos de concentração pelo doutor Joseph Mengele.
Quando Monteiro Lobato escreveu O Presidente Negro, Hitler já cruzava a esquina da história, o Mein Kampf debaixo do braço. Mas O.K., a tomada do poder ainda estava a sete anos de distância, e o mundo ainda não prestava muita atenção nele. Nos primeiros anos dos nazistas no poder ainda não dava para antever a que levariam as idéias eugênicas contempladas no ideário de seus líderes. Mas em 1946, um ano depois da derrota da Alemanha na guerra, já dava. Os testemunhos, os processos, os arquivos do governo alemão e o estouro dos campos de concentração traziam mais e mais evidências da barbárie a que arrastara o delírio eugênico do regime. Políticas eugenistas, desde então, ficaram indelevelmente ligadas ao nazismo.
Lobato, no entanto, não repudiou o seu livro. Ao contrário, incluiu-o nas “Obras Completas” que começaram a ser publicadas naquele ano, mesmo tendo concebido para O Presidente Negro um desfecho que superava Hitler – uma perfeita e acabada Endlösung, ou solução final, para o “problema negro”, contra uma Endlösung apenas parcial, no caso do Füher, para o “problema judeu”, interrompida que foi pela debacle do regime.
Obras completas são obras completas, se dirá. Não. Ao organizá-las, Lobato deixou de lado obras anteriores, escritas tanto para crianças quanto para adultos. O fato de não ter percebido o nexo entre a eugenia tão louvada em O Presidente Negro e a barbárie nazista, ou não lhe ter dado maior significado, torna-se ainda mais intrigante quando se tem em conta que ele foi um devoto da causa antifascista, tanto no front externo, ao pôr-se ao lado dos aliados em artigos, cartas e entrevistas, quanto no interno, no combate ao Estado Novo. Em 1941, passou três meses preso, pelo efeito combinado de suas denúncias contra a política petrolífera do governo e uma entrevista à BBC em que fazia críticas ao regime varguista.
Lobato era homem de grandes paixões e grandes arrebatamentos. A temporada nos Estados Unidos ensinou-lhe que sem petróleo e sem ferro um país não poderia desabrochar para a era industrial, e a partir de então tornou-se o apóstolo obcecado do investimento em siderurgia e da pesquisa de petróleo no Brasil, o mais obcecado de quantos já pisaram o território nacional. O mesmo entusiasmo antes o arrastara para a saúde pública e, no degrau seguinte, para a eugenia. Em sua alma sempre pronta para o arrebatamento, houve lugar mesmo para o espiritismo, por ele abraçado nos anos finais, depois de ter passado a vida inteira indiferente ou hostil às religiões.
Nesse vai-para-cá-e-vai-para-lá, ao sabor de uma biruta movida a ventos freqüentemente contraditórios, há aspectos simpáticos. Um é a pregação do petróleo. Outro é não ter ficado na pregação e constituído uma empresa de prospecção. Lobato foi um raro intelectual que metia a mão na massa. Também foi um raro intelectual que, em vez de contestá-lo, trabalhou com o ânimo de desenvolver o capitalismo brasileiro. Enfim, foi um raro escritor que, como observa o biógrafo Edgard Cavalheiro, ao mesmo tempo em que não tinha vergonha de ser homem de negócios, tinha vergonha de aceitar uma sinecura do Estado. Chegou a ser convidado por Getúlio Vargas para diversas missões, inclusive a chefia de um ministério da Propaganda. Não aceitou.
A natureza espiroqueta levou-o a protagonizar grandes momentos. Depois de algumas semanas na prisão, ao receber a notícia de que seria solto, batucou uma carta ao presidente do Conselho Nacional do Petróleo, general Horta Barbosa, a quem atribuía a denúncia formulada ao Tribunal de Segurança Nacional, dizendo-se “profundamente reconhecido” pelos “deliciosos e inesquecíveis dias passados na Casa de Detenção”. Fora do “tumulto humano e das mil distrações” do mundo, ganhou a ocasião, com que “sempre havia sonhado”, de “meditar sobre o livro de Walter Pitkin, A Short Introduction to the History of the Human Stupidity“. Resultado: a sentença de soltura foi revogada, e ganhou mais algumas semanas de xadrez.
Havia em Lobato um “endiabrado saci”, segundo Edgard Cavalheiro. Ele próprio afirmava: “Sou visceralmente imprudente e os anos não têm me modificado nisso. Os homens prudentes não sabem as delícias da imprudência.” Quando errava a mão, errava feio, e o primeiro erro estava justamente no texto em que irrompeu como um foguete na cena literária: “Velha Praga”, o artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em que apresentava a figura do Jeca Tatu. Depois de descrever o “parasita”, o “piolho”, que queima as matas, destrói as plantações e reduz à inutilidade “a mais ubertosa região”, ele prosseguia: “Esse funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças.” O caboclo, o Jeca Tatu, este ser cujo “grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforço”, era o culpado! Lobato nessa época batia-se contra as dificuldades de tocar para frente a fazenda de Taubaté que herdara do avô. E tinha achado um responsável para seus males, o Jeca preso ao “vazio de sua vida semi-selvagem”.
“Velha Praga” é de 1914. Quatro anos depois, Lobato descobriria a saúde pública, no livro Saneamento do Brasil, de Belisário Pena, e voltaria ao Jeca para produzir um mea-culpa: “Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não.” A rigor o problema ainda era tratado pela rama, mas já estava melhor. Pelo menos a culpa passara do Jeca para os bichos que habitavam sua barriga. Enfim, em 1947, um ano antes de morrer, publica um panfleto em que o caboclo, agora chamado de Zé Brasil, era descrito como vítima de uma estrutura social perversa.
Para a professora da Unicamp Marisa Lajolo, uma especialista em Monteiro Lobato, o criador do Jeca Tatu “parece ter percorrido quase todas as posições ideológicas disponíveis em seu tempo”. No tempo de “Zé Brasil” ele se dizia socialista e mostrava-se solidário com Luís Carlos Prestes, a quem enviara uma saudação gravada por ocasião do comício comunista de julho de 1945, no estádio do Pacaembu. Na ziguezagueante trajetória ideológica de Lobato houve lugar até para Perón, a quem homenageou com o livro A Nova Argentina, escrito durante o período em que morou em Buenos Aires, em 1946.
Em O Presidente Negro, concluída a operação de esterilização dos negros, o governo americano divulga uma nota, dando conta de seu procedimento:
O governo americano vem dar conta ao povo do golpe de força a que foi arrastado em cumprimento da suprema deliberação dos chefes da raça branca, reunidos em palácio no dia 7 de maio de 2228. (…) O governo procurou agir de modo a evitar perturbações na vida nacional; estava em estudos da matéria quando John Dudley apareceu com a revelação da virtude dupla dos raios ômega. Adotado esse maravilhoso processo, operou-se a esterilização dos homens pigmentados pelo único meio talvez em condições de não acarretar para o país um desastre. O problema negro da América está resolvido da melhor forma para a raça superior, detentora do cetro supremo da realeza humana.
John Dudley acabaria homenageado com uma estátua em praça pública.