CRÉDITO: EDSON IKÊ_2022
Você já foi meu filho, agora pertence ao tempo
Moisés Alves | Edição 193, Outubro 2022
MÃE
não sou irrecuperável
como uma búfala velha
sou búfala na cabeça
mas minha voz é de mãe
crio esses bichos
para desmontar guerras
não sou preta
mas minha língua
e a terra de onde
extraí meus filhos
e eles são muito pretos
peguei cor quando me rocei na terra
a loucura que fizeram pra mim
veio dos jardins ocupados
de pobreza
a pobreza é fábrica
de barões e baronesas
onde encontrei um dia
alguém mãe alguém pai
que me seguraram até o meio
foi assim
uma cama de capim
é pasto onde meu cansaço
bem gordo se deita
tenho uma barriga grande
deve haver um ritmo
um abuso um ovo
aqui
fico em silêncio
como a morte
encaro-a de perto
ela tenta te ver
não deixo moisés
sobretudo depois
da festa e dos eletrochoques
fico bem excitada
depois das colisões
e os sinais que recebo
mereço fazer festa
minha mãe está desesperada
quer ser mãe de uma árvore
de uma nesga de mar na areia
você já foi meu filho
agora pertence ao tempo
dei banana-d’água
para que eles herdassem
a sabedoria da bananeira
peguei cor quando um vento me soprou
não sou de outro buraco
vim desse apareci antes
num relâmpago
fiquei careca
eu sou irrecuperável
como sua avó e a mãe dela
e as balas num órgão
e as doenças que os homens
desencavaram nas florestas
eu não tenho jeito
MORDIDA
você já mordeu
o cru do amor
suas partículas radioativas
o cítrico a leveza disso?
o amor é composto
de partes duríssimas
violentíssimas
que não se pode dispensá-las
com o risco do amor
ficar bastante pobre
o amor é um cão
em cólera
numa rua
à meia-noite
diante de você
e a existência de um osso
o osso dispara entre os seus dentes
e os dentes do cão
um confronto
é lógico
que você quer todo o fogo
e vestígios de terra cravejados
naquela coisa
você então avança
o pequeno bicho que somos
eu e o cão
diante do osso
é uma humilhação
é o osso que tem mais fome
mais poder de colonizar
as formas todas
o cão me morde
fica doido
por isso que mostro
por tudo que deixo
em estado de desaparição
eu mordo
eu arranho o cão
também sou raivoso
tenho um cão
apavorado diante
da alegria de um pedaço
de perna
não sei
e tenho certa pressa em saber
quem é o cão
eu
o pavor
o osso
o pedaço alegre de perna
desse poema
é só isso que resta
de um encontro e outro
um resto
precioso
pode ser
numa exata camada da língua
que você captura o doce
ou a ferida
estou escrevendo
com alguma coisa bem doce
encostada em minha boca
talvez um grito
entre um beijo
e outro
o poema antes
não era isso
o poema antes do osso
antes do começo
era outro