Gandhi, sua governanta e Kallenbach. Os dois homens tiveram um relacionamento íntimo e ambíguo. Moraram juntos e trocaram cartas por muito tempo FOTO: VITHALBHAI JHAVERI_GANDHISERVE
“Você será sempre você e só você para mim”
Nova biografia descreve relação de amizade homoerótica entre Gandhi e o arquiteto alemão com quem ele viveu durante anos na África do Sul
Joseph Lelyveld | Edição 68, Maio 2012
O reverendo Doke, o primeiro dos muitos hagiógrafos de Gandhi, tirou em 1908 uma fotografia do pensativo advogado, enquanto ele se recuperava das agressões sofridas nas mãos dos patanes. Nessa foto ele mostra pouca semelhança com o Gandhi que o mundo viria a conhecer. Magro e descontraído, em trajes ocidentais, seus olhos têm uma expressão ensimesmada e contemplativa, e não bondosa ou viva como a do homem público de tanga que, pouco mais de dez anos depois, seria seguido por multidões na Índia. No entanto, ele já definira os componentes essenciais de seu pensamento e de sua estratégia de liderança. Com uma atitude ecumênica e aberta às religiões e às relações entre seitas de toda sorte, leal segundo seus princípios ao Império Britânico e aos valores inseridos no sistema jurídico inglês, porém agressivo na resistência a leis coloniais injustas que o sistema não raramente defendia, o Gandhi de Joanesburgo reivindicava agora o direito de obedecer, em todas as esferas da vida, a sua consciência: o que ele ora chamava de “voz interior”, ora simplesmente de “verdade”. No entanto, também era o Gandhiji ou o Gandhibhai – os sufixos indicam respeito por uma pessoa mais velha ou um líder, assim como o carinho que se sente por um parente ou amigo –, não fora ainda canonizado como um mahatma e continuava dedicado a sua autocriação, procurando o caminho para uma firme percepção de si mesmo e de sua missão. Ao se aproximar dos 40 anos, podemos inferir que, em seu espírito, a pessoa e a missão se sentiam incompletas.
O celibato, como disciplina espiritual, ocupava agora seus pensamentos na vida diária, mas ainda não era tema de discurso público; nas entrevistas com seu biógrafo batista, o assunto delicado do brahmacharya não era nunca abordado, ou assim o livro de Doke nos leva a crer. É provável que Gandhi, sempre um político, percebesse que esse era o lado menos atraente de sua doutrina em evolução. Ele conhecera a paixão sexual, mas jamais pudera tolerá-la ou, tendo feito a sua opção, simplesmente deixara a questão de lado. “Além de não representar uma necessidade, o casamento é, na realidade, um estorvo para o trabalho público e humanitário”, escreveria mais tarde. Quem houvesse caído na armadilha do casamento, como ele e Kasturba, poderia salvar-se vivendo junto castamente, como irmão e irmã. “Nenhum homem ou mulher que viva a vida física ou animal é capaz de compreender a espiritualidade ou a ética.”Gandhi gostava de crianças, mas via o parto como uma prova óbvia de um lapso moral. Com irritante regularidade, ele atazanava suas noras e outras pessoas próximas, recomendando-lhes que se emendassem e não fizessem mais aquilo.
Em seus primeiros anos em Joanesburgo, seu vegetarianismo ainda era uma questão de preferência moral, de higiene e de herança, mas, afora abster-se de carne e moer seus próprios cereais, ele não havia ainda imposto restrições severas a sua dieta, ainda não se convencera de que a repressão a um apetite dependia da repressão a outro, que a abstinência sexual e a dieta estavam ligadas de perto. Ainda bebia leite, apreciava pratos condimentados em ambientes festivos, mas em breve esses prazeres seriam bruscamente interrompidos. O vegetariano tentaria, durante algum tempo, consumir apenas frutas, pois concluíra que o leite, outros laticínios e a maioria dos condimentos tinham propriedades afrodisíacas; além disso, renunciaria ao sal, a alimentos preparados e a segundos pratos numa refeição, passando por fim a pesar o que ingeria e a mastigar bem cada bocado frugal de uma papa preparada e amassada com todo o cuidado (em geral, uma mistura feita de limão, mel, amêndoas, cereais e verduras com folhas), a fim de extrair o máximo de nutrientes do mínimo possível de comida. Com isso, a mastigação se tornou mais uma de suas várias causas e disciplinas secundárias.
A “frugalidade”, escreveria ele depois, era a norma ética pela qual a dieta deveria ser medida, de acordo com a “economia de Deus” e a interpretação do próprio Gandhi de um texto hinduísta, o Bhagavad Gita. Essa norma preconizava um perpétuo “jejum parcial”, que exigiria “uma luta implacável contra o hábito herdado ou adquirido de comer por prazer”. Implacável era bem a palavra. Uma refeição lauta, escreveu Gandhi, era “um crime contra Deus e o homem […] porque os comilões privam o próximo de sua porção”. Esse é o Gandhi de 1933, não o de 1906. Ainda estava por entrar em cena o residente de um ashram e o preconizador de regras, que acabaria por concluir que alimentos saborosos eram um convite à gula, que extrairia uma sardônica satisfação em ser retratado como novidadeiro e excêntrico, que se persuadiria, em suas refeições solitárias, de que menos é mais. Ele pode ter se sentido impelido a distanciar-se da mulher e dos filhos, mas era ainda um ser social na primeira fase do tempo que passou em Joanesburgo, quando, segundo consta, participava de piqueniques e andava de bicicleta.
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Em 1904, Gandhi conheceu Henry Polak, um jovem redator que trabalhava no jornal The Critic. O encontro se deu na casa de chá, vegetariana, de Ada Bissicks, na rua Rissik, defronte ao escritório de advocacia de Gandhi. Polak tinha acabado de completar 21 anos e aquele era seu primeiro ano na África do Sul. Ficara impressionado com uma carta que Gandhi enviara a um jornal, falando das deploráveis condições sanitárias de uma área habitada por indianos, onde grassara uma epidemia de peste. Conversaram sobre uma ampla diversidade de assuntos e logo descobriram que ambos reverenciavam Tolstói e admiravam as terapias naturais alemãs que envolviam aplicações de lama. Meses depois, Polak fez com que Gandhi se entusiasmasse também por John Ruskin, ao levar-lhe um exemplar da obra Unto This Last and Other Writings, que, lido de uma assentada num trem noturno, inspirou a ideia da criação da comunidade Phoenix. Trata-se de um momento de revelação que diz mais sobre Gandhi e seus reflexos de ativista do que sobre Ruskin. O escritor inglês condenava os valores deformados da sociedade industrial, que se concentra na formação de capital e desdenha o trabalho físico, porém nunca pensara que seu livro levaria à fundação de comunidades idealistas em áreas rurais. Apreensivo com os custos de manutenção do Indian Opinion [jornal fundado por Gandhi] em Durban, no mesmo instante Gandhi teve um estalo. Aplicando uma torção tolstoiana ao ideal exposto por Ruskin – uma agropecuária vigorosa –, ele encontrou a resposta capaz de resolver seu problema prático imediato: para salvar o jornal, ele o transferiria para uma comunidade rural autossuficiente. Naquele instante, Gandhi decidiu ser pai de toda uma comunidade – mais tarde seria pai de uma nação –, de modo que reuniu a sua volta uma família ampliada de seguidores, ocidentais e indianos, sobrinhos e primos e, por fim, a própria mulher e os filhos. Por isso, quando, dois anos depois, escreveu ao irmão falando de sua redefinição do termo “família”, tratava-se de um fato consumado. Esperava-se que os membros da comunidade exercessem uma dupla função: trabalhar como tipógrafos e produzir os próprios alimentos: a partir daí, o trabalho manual passou a ser a solução automática de Gandhi para diversos problemas, que iam da exploração colonial ao desemprego e a pobreza rurais. Ele o transformaria num imperativo moral.
Menos de um ano após ter conhecido Gandhi, Henry Polak foi morar com a família de Gandhi em Joanesburgo numa espaçosa casa alugada, com uma ampla varanda no 1º andar, em Troyeville, na época um elegante bairro de brancos, onde alguns vizinhos foram hostis à presença de uma família indiana, talvez a única num raio de quilômetros. A maioria dos indianos era forçada a residir em bairros específicos – prenúncio das cidades segregadas e “áreas grupais” da era do apartheid –, no outro lado da cidade. É digno de nota que o advogado não tenha se intimidado em ir morar no bairro, resolvendo se instalar entre brancos, numa casa apropriada, pelos padrões desses brancos, a sua posição profissional e sua renda. A casa de Gandhi ainda está de pé, numa Troyeville hoje racialmente não segregada, um tanto degradada, a meio quarteirão de outra casa, descendo a rua Albermarle, que erroneamente ostenta uma placa informando que foi nela que Gandhi residiu. Polak se casou na casa de Gandhi com uma gói inglesa, Millie Downs, no dia em que ela chegou à África do Sul, no fim de 1905, tendo Gandhi como padrinho. “A voz dele era suave, cantada, e de uma doçura quase juvenil”, disse Millie numa entrevista concedida à BBC, muitos anos mais tarde, lembrando suas primeiras impressões do Gandhi de Joanesburgo, que na mesma hora incluiu-a em sua família ampliada. Meses depois, Henry foi mandado a Durban para cuidar do Indian Opinion, até que Millie, que ele conheceranuma reunião da Sociedade Ética, em Londres, concluiu que estava farta de Phoenix e da dignidade do trabalho rural. A situação se inverteu mais tarde, em 1906, quando Gandhi, tendo se mudado de Troyeville, voltou sem a família para Joburg, vindo da frente de combate da chamada guerra contra os zulus, e foi morar com os Polak numa casinha mínima que ficava num bairro chamado Belleville West. Depois os Polak se mudaram para uma área chamada Highlands, levando consigo o reverenciado hóspede.
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Quando a chegada de um bebê tornou o espaço na residência dos Polak exíguo demais para as modestas necessidades de Gandhi, ele foi morar com o arquiteto Hermann Kallenbach – uma situação que se tornou, pode-se afirmar, o relacionamento mais íntimo, e o mais ambíguo, de sua vida.
“Eles formavam um casal”, disse Tridip Suhrud, especialista em Gandhi, quando me encontrei com ele em Gandhinagar, capital de Guzerate. Essa é uma forma sucinta de resumir o óbvio – Kallenbach comentou mais tarde que tinham vivido juntos “quase na mesma cama” –, mas que espécie de casal formavam? Gandhi fez questão de destruir o que chamou de “lógicas e encantadoras mensagens de amor” de Kallenbach para ele, por julgar estar respeitando o desejo do amigo de que elas não fossem vistas por outros olhos. Mas o arquiteto guardou todas as mensagens de Gandhi – e décadas depois de sua morte e da de Gandhi, seus descendentes decidiram vendê-las em hasta pública. Só então os Arquivos Nacionais da Índia adquiriram as cartas, que por fim foram publicadas. Foi tarde demais para que o psicanalista Erik Erikson as levasse em conta, e os estudos mais recentes sobre Gandhi tendem a encará-las com cautela, quando chegam a considerá-las. Um respeitado especialista em Gandhi classificou o relacionamento como “claramente homoerótico”, e não como homossexual, pretendendo com essa escolha de palavras descrever uma intensa atração mútua, e nada mais. As conclusões correntes na pequena comunidade indiana da África do Sul, passadas de boca a boca, eram, às vezes, menos sutis. Não era segredo na época, ou depois, que Gandhi, após abandonar a mulher, tinha ido viver com um homem.
Numa época em que o conceito de amor platônico tem pouca credibilidade, detalhes do relacionamento e trechos de cartas, bem selecionados, podem ser dispostos de forma a levar a uma conclusão. Kallenbach, criado e educado na Prússia Oriental, foi, durante toda a vida, solteiro, ginasta e fisiculturista, “tendo recebido treinamento físico das mãos de Sandow”, como o próprio Gandhi um dia declarou com orgulho. Estava se referindo a Eugen Sandow, atleta ainda respeitado como “o pai do moderno fisiculturismo”, contemporâneo de Kallenbach na então Königsberg (hoje a cidade de Kaliningrado, num enclave russo no Báltico, entre a Polônia e a Lituânia). Gandhi interessou-se a vida inteira pela fisiologia, sobretudo no que dizia respeito aos apetites, mas nunca, nem é preciso dizer, pelo fisiculturismo. Seu torso esguio – dependendo de seus jejuns, ele pesava de 48 a 53,5 quilos, não chegando a 1,70 metro – acabou sendo mais conhecido que o de Sandow. Mas em seu auge foi esse atleta supermusculoso que se tornou o astro internacional, o precursor de Charles Atlas e Arnold Schwarzenegger – uma verdadeira celebridade, o suficiente para aparecer várias vezes no pensamento de Leopold Bloom, o protagonista do Ulisses, de Joyce.
Filho de um comerciante de madeiras, Kallenbach servira durante um ano no Exército alemão, e depois disso se formara em arquitetura em Stuttgart, antes de chegar a Joanesburgo, em 1895, aos 24 anos. Assim, já fazia quase uma década que morava na África do Sul quando Sandow, que fora descoberto por Flo Ziegfeld e transformado em estrela internacional, levou seu número, uma espécie de striptease masculino, a Joanesburgo, em 1904. É difícil imaginar Kallenbach, que ainda não conhecia Gandhi, perdendo a oportunidade de reaproximar-se de seu concidadão de Königsberg.
Se não enamorado, Gandhi sentiu-se claramente atraído pelo arquiteto. Numa carta escrita em Londres, em 1909, ele diz: “Seu retrato (o único) está no aparador da lareira, em meu quarto. A lareira fica diante da cama.” Algodão e vaselina, diz ele a seguir, “sempre me lembram você”. A intenção, ele prossegue, “é mostrar, a você e a mim, o quanto você tomou posse de meu corpo. Isso é escravidão com vingança”. Devemos entender a palavra “posse” ou a referência à vaselina, na época, tal como hoje, um petrolato com muitas serventias corriqueiras? As conjecturas mais plausíveis são que, no quarto de hotel em Londres, a vaselina podia estar relacionada a clisteres, a que ele recorria com regularidade, ou pode, de outra forma, prenunciar o entusiasmo de Gandhi, na velhice, por massagens, que se tornariam uma parte bem conhecida da rotina diária de seus ashrams indianos, despertando futricas que nunca cessaram de todo depois que se soube que ele em geral queria que fossem feitas pelas mulheres de seu círculo.
Dois anos depois, Gandhi redigiu um pacto, entre sério e brincalhão, para ser assinado pelo amigo, usando os apelidos carinhosos e as saudações epistolares que, quase com certeza, foram criadas por ele, sem dúvida o mais gaiato e espirituoso dos dois. Kallenbach, dois anos mais jovem que Gandhi, passou a atender pela alcunha de “Câmara Baixa”, no sentido parlamentar (uma alusão jocosa, ao que parece, a seu papel como fonte de verbas). Gandhi é “Câmara Alta” (e, como tal, tinha a prerrogativa de vetar gastos excessivos). Câmara Baixa pode opinar sobre questões de forma física e todas as demais que estejam relacionadas com a fazenda Tolstói, a comunidade por eles criada. Já Câmara Alta incumbe-se de lucubrar ideias profundas, idealizar estratégias e guiar o desenvolvimento moral de seu companheiro nesse tocante relacionamento bicameral. No pacto, datado de 29 de julho de 1911, véspera de uma viagem que Kallenbach faria à Europa, Câmara Alta faz Câmara Baixa prometer “não contrair nenhum compromisso nupcial em sua ausência” nem “olhar com lascívia para nenhuma mulher”. Em seguida, as duas instâncias legislativas penhoram mutuamente “mais amor, e mais amor ainda […] um amor tal que, esperam, o mundo jamais viu”. A essa altura, subtraídos os tempos das penas de prisão de Gandhi em 1908 e da viagem a Londres em 1909, os dois estavam juntos havia mais de três anos.
Cumpre não esquecer que só dispomos das cartas de Gandhi (todas elas iniciadas por “Caro Câmara Baixa”). Portanto, é Gandhi que proporciona o tom brincalhão que poderia ser facilmente atribuído a um amante, sobretudo se deixarmos de lado o que mais as cartas contêm e seu contexto mais amplo. Aqui a interpretação pode avançar por dois caminhos. Podemos nos entregar a especulações ou examinar com mais atenção o que os dois homens realmente dizem nesse período sobre seus esforços para reprimir os impulsos sexuais.
Uma carta de 1908, de Kallenbach para seu irmão Simon, na Alemanha, pouco depois de Gandhi ter-se mudado para sua casa, mostra que ele já se encontrava sob a influência do hóspede havia algum tempo. “Nos últimos dois anos, deixei de comer carne; e no ano passado também não toquei mais em peixe”, ele escreve, “e durante os últimos dezoito meses renunciei a minha vida sexual. […] Mudei a minha vida cotidiana a fim de simplificá-la.” Mais tarde é Kallenbach quem chama a atenção de Gandhi para a tendência insidiosa que tem o leite de intensificar a excitação. Sempre extremista no tocante a experiências dietéticas, Gandhi estende a proibição ao chocolate. “Eu vejo a morte nos achocolatados”, diz ele a Polak, que nessa época não estava envolvido nas experiências alimentícias a que Kallenbach se submetia prontamente. Poucos alimentos eram tão “calóricos”, no sentido de excitar apetites ilícitos. Gandhi manda a Kallenbach versos sobre a ojeriza a “prazeres corporais”. Segundo essa mensagem, temos corpos para aprender “autocontrole”.
O arquiteto judeu de Kaliningrado, junto ao Báltico, e o advogado baneane de Porbandar, à beira do mar da Arábia, primeiro moraram juntos em Orchards, um dos subúrbios mais antigos do norte de Joanesburgo, numa casa chamada Kraal, palavra holandesa que originalmente significava domicílio, mas que hoje designa um tipo de aldeia rural africana ou curral de gado. A ideia básica do projeto era também africana. Kallenbach partiu do rondavel – uma estrutura circular de grossas paredes de barro, às vezes caiadas, com telhado cônico de palha – para desenhar a casa da rua Pine, número 15, onde morou com Gandhi um ano e meio. A casa ainda existe (e foi comprada há pouco tempo por uma empresa francesa que planeja transformá-la em atração turística, mais um museu Gandhi). Na verdade, são dois rondavels, habilmente reunidos atrás de uma cerca alta com um letreiro hoje onipresente nos muros e cercas dos subúrbios da Zona Norte da cidade, advertindo intrusos quanto a uma “reação armada”. O aviso, claro está, não é gandhiano. Quando Gandhi descobriu que, depois da agressão dos patanes, Kallenbach se autonomeara seu guarda-costas e passara a andar armado, insistiu que ele se livrasse do revólver.
Os dois mudaram-se depois para o bairro de Linksfield, onde Kallenbach estava construindo uma casa maior, chamada Mountain View, sobre a qual Gandhi nutria previsíveis pressentimentos. Uma de suas missões nesse período consistia em treinar o companheiro na disciplina da abnegação. Instava-o a desfazer-se de um carro novo e a cumprir o voto de pobreza que ambos tinham feito, reduzindo seus gastos pessoais. “Espero que dessa vez não tenhamos simplicidade aristocrática, mas simplicidade simples”, ele escreveu antes que a obra da casa nova começasse. Durante algum tempo, em 1910, eles moraram numa barraca, no canteiro de obras. O que ele realmente desejava, percebe-se, é que Kallenbach fechasse seu estúdio de arquitetura, da mesma forma como ele estava se preparando para abandonar a advocacia, e voltasse com ele para uma vida de trabalho comunal em Phoenix. “Ao que tudo indica”, escreveu Gandhi, esperançoso, num perfil laudatório de seu companheiro no Indian Opinion, “o senhor Kallenbach aos poucos deixará seu trabalho como arquiteto para viver em pobreza completa.”
Kallenbach diz-se tentado, mas ainda não compra de todo a ideia. O escritório continua aberto e ativo. Em certo momento, ele concorre a licitações simultâneas de projetos de uma nova sinagoga, de um templo da Ciência Cristã e de outro da Igreja Ortodoxa grega. O terreno da fazenda Tolstói, com seus 445 hectares, que Kallenbach comprou, foi a maneira de um grande gastador provar que falava sério a respeito de pobreza voluntária. Ele e Gandhi escrevem a Tolstói, na época moribundo, para lhe falar de seus planos. A fazenda resolve uma necessidade imediata de Gandhi. Ele agora tem um lugar onde alojar as famílias de resistentes passivos que foram presos por participar da enfraquecida campanha de satyagraha, e também treinar novos resistentes. Além disso, era um lugar onde ele podia testar os preceitos pedagógicos e microeconômicos que havia acabado de expor no mais importante trabalho de argumentação que escreveria, o panfleto Hind Swaraj. O título significa “Autogoverno indiano” ou, mais livremente, “A liberdade da Índia”. Gandhi escreveu-o rapidamente, em dez dias, ao retornar à África do Sul em 1909 no navio Kildonan Castle, depois de mais uma tentativa inútil de pressionar o governo britânico.
Na forma de um diálogo socrático, esse livrinho originalíssimo sintetiza seu desencanto com o sistema imperial, o Ocidente em geral e as modernas sociedades industriais em toda parte, sua rejeição da violência como tática política e também sua apreciação romântica da aldeia indiana, da qual tinha, até então, pouca experiência de primeira mão. Sua rejeição global dos costumes modernos incluía a medicina ocidental, os advogados (como ele), as estradas de ferro (que usaria pelo resto da vida) e a política parlamentar (que os nacionalistas indianos desejavam para o país). A complicada e eclética origem desse pensamento é coroada por uma descoberta surpreendente: sua inspiração imediata não veio de Tolstói ou de Ruskin, e sim do prolífico literato anglo-católico G. K. Chesterton, que numa coluna do Illustrated London News, que Gandhi viu por acaso em Londres, perguntava o que diria um verdadeiro nacionalista indiano,“um indiano autêntico”, a um imperialista que tentasse implantar instituições e maneiras de pensar ao estilo britânico no Raj.
“A vida é muito curta; um homem tem de viver de alguma forma e morrer em algum lugar”, declara o indiano, autêntico ao escritor britânico em resposta a essa pergunta retórica. “O nível de conforto físico que um camponês obtém em vossa melhor República não é muito maior do que o meu. Se não gostais de nosso tipo de conforto espiritual, nunca pedimos que gostásseis. Ide, e deixai-nos com ele.” Em Hind Swaraj, o personagem habitado por Gandhi, chamado “o Editor”, se apresenta como esse indiano autêntico. Chesterton não deu ideias novas a Gandhi, mas lhe mostrou de que forma as ideias que ele próprio vinha reunindo podiam definir uma persona. O que ele faz nessas páginas, em breve fará na vida; o Editor se tornará o Mahatma, que doze anos depois, em sua primeira campanha de não cooperação na Índia, traduzirá em ação um dos temas do panfleto. “Os ingleses não conquistaram a Índia”, diz o Editor. “Nós a demos a eles.” Sua resposta é “deixar de desempenhar o papel de subjugados”. Isso é mais do que um prenúncio das posteriores campanhas de Gandhi. É uma declaração do tema básico delas.
Ainda que Hind Swaraj tenha sido escrito enquanto ele viajava para a Cidade do Cabo, depois de uma missão malograda em Londres em defesa dos direitos indianos no Transvaal, as palavras “África do Sul” em nenhum momento aparecem no panfleto. Em espírito, ele já começara a se repatriar para a Índia, onde a obra foi de imediato declarada subversiva e proibida. Na verdade, ela era mais subversiva em relação ao movimento independentista indiano anterior a Gandhi, com sua liderança anglicizada e seus valores importados, do que em relação ao regime colonial britânico. “Não conhecemos aqueles em nome de quem falamos, nem eles nos conhecem”, afirmava com ousadia seu autor, que passara na Índia menos de cinco dos últimos vinte anos, criando implicitamente um desafio para si mesmo. Contudo, sua crítica pode ser também aplicada, de modo geral, ao movimento que ele liderou na África do Sul, sobretudo em Natal. Uma parte clara do intuito da fazenda Tolstói era permitir a Gandhi e a Kallenbach – a primeira pessoa a ver o manuscrito de Hind Swaraj – fecharem o abismo social entre os indianos que Gandhi enfim havia reconhecido. Seis meses após sua volta de Londres, Gandhi redige o primeiro de seus contratos informais com Kallenbach, definindo o que equivale a uma lei básica para a nova comunidade. “O objetivo primordial da ida para a fazenda no que se refere a K. e G.”, decreta esse documento, “é se transformarem em camponeses industriosos.” Quase um ano depois, em maio de 1911, quando a fazenda estava em pleno funcionamento, Gandhi diz a Polak: “Eu gostaria de escapar ao olhar público […] enterrar-me na fazenda e dedicar minha atenção à lavoura e ao magistério.”A lavoura o leva a reconhecer as aptidões dos africanos e indianos, como as dos trabalhadores sob contrato, que cultivam a terra. “Eles são mais úteis do que qualquer um de nós”, ele escreve no Indian Opinion, comparando de forma explícita os trabalhadores do campo e uma segunda geração de trabalhadores administrativos indianos que começava a criticar sua liderança. “Se as notáveis raças nativas parassem de trabalhar por uma semana, é provável que passássemos fome.”
Mas é à escola em que ele leciona seis tardes e todas as noites, a cada semana, que ele devota a maior parte de sua energia no segundo semestre de 1911. “Essa é minha ocupação predominante”, escreve a Kallenbach em 9 de setembro. O número de inscritos é pequeno. Gandhi impõe um requisito dietético que contribui para mantê-lo baixo. Os alunos devem se comprometer com uma dieta sem sal, pois ele descobrira que o sal “nos faz comer mais e desperta os sentidos”. Duas décadas depois, numa espantosa mostra de flexibilidade ideológica, ele afirmaria que o sal era uma das necessidades básicas da vida, tornando-o o foco de seu mais bem-sucedido exercício de não violência militante, a Marcha do Sal, em 1930. Ao abrandar suas restrições ao sal na fazenda Tolstói, autorizando seu uso na dieta em pequenas quantidades, o número de alunos sobe para 25, sendo oito deles, como registra Gandhi com orgulho, muçulmanos. O currículo inclui um curso de produção de sandálias. Gandhi enviara Kallenbach a um mosteiro trapista perto de Phoenix para aprender o ofício; o arquiteto depois o ensinou ao advogado, que o ensinou aos estudantes. Não demorou para que fabricassem cinquenta pares, um dos quais ele mandou para seu adversário político, Jan Smuts.
A fazenda Tolstói, na qual Gandhi atuava como mestre-escola e diretor médico, tornou-se por algum tempo a razão de sua vida; a campanha de satyagraha contra as leis racistas no Transvaal, cada vez mais fraca, foi relegada a um segundo plano. Gandhi levou avante uma desordenada negociação com Smuts, que agora acumulava os ministérios da Defesa e das Minas no novo governo da União, mas sua atenção maior se concentrava na elaboração de um currículo que utilizasse línguas e textos indianos, bem como dietas e terapias naturais, as alternativas saudáveis à agressiva medicina ocidental. Kallenbach se envolvia mais nessas “experiências” do que soldados políticos como Thambi Naidoo e Polak, que viviam casamentos convencionais. Sua dedicação aos valores de Gandhi, à medida que se desenvolviam, parecia irrestrita, e não seletiva. Era mais que um acólito, menos que um igual. Nunca, ao que saibamos, ele representou um desafio intelectual ao explorador espiritual que se tornou seu companheiro.
O acordo original especificava que K. moraria separado dos colonos e que G. passaria a maior parte do tempo com ele. A sra. Gandhi muda-se então de Phoenix para a fazenda Tolstói, onde fica por mais de um ano. Não está claro que efeito isso teve. A essa altura, fazia mais de cinco anos que Ba e seu marido dormiam em aposentos separados. Na fazenda Tolstói, dormiam em varandas separadas, cada qual cercado por alunos da escola de Gandhi.
O que é fácil passar despercebido, nos relatos da vida de Gandhi na fazenda Tolstói, é o quanto seus sentimentos em relação a Kallenbach se tornaram um fator importante na mudança interior pela qual ele estava passando. Ele não só se empenha em reformar o companheiro, como se esforça por tornar permanente a ligação entre eles. O arquiteto hesita. Durante sua estada na fazenda, com Gandhi, também se tornou sionista e um judeu mais praticante; leva Gandhi à sinagoga na Páscoa e o apresenta ao matzá, ou pão ázimo. Durante algumas semanas estuda o híndi, como preparativo de uma mudança para a Índia; em outras, quando reflete sobre o tempo que Gandhi poderá lhe dedicar num futuro ainda inimaginável na Índia, estuda hebraico, preparando-se para uma nova vida na Palestina. No dia a dia, o melhor indicador do inconstante estado de espírito do arquiteto é a língua que estuda, híndi ou hebraico. Mostra desconsolo, se não ciúme, se Gandhi dispensa admiração e tempo a outra pessoa. Persistente, Gandhi aceita tudo isso durante mais de dois anos, buscando sempre preservar a ligação.
Os altos e baixos de Kallenbach podem ser acompanhados num livro de registros contábeis e anotações que ele manteve em 1912 e 1913 e que pode ser consultado no arquivo do ashram Sabarmati, de Gandhi, em Ahmedabad. Tanto por economia quanto para manter a forma física, Kallenbach e Gandhi faziam sempre a pé os 34 quilômetros que levavam da fazenda, perto de uma parada de trem chamada Lawley, ao Centro de Joanesburgo, atravessando uma grande área de veldt, ou savana africana, que bem depois, na era do apartheid, transformou-se no enorme aglomerado de bairros negros chamado Soweto. Kallenbach sempre anotava o tempo do percurso. Se ele e Gandhi caminhavam juntos, muitas vezes saindo às quatro da manhã, levavam pouco mais de cinco horas e meia para chegar a seus respectivos escritórios no Centro de Joanesburgo; quando sozinho, normalmente Kallenbach reduzia esse tempo em uma hora. Em todas as menções nessas páginas, Gandhi não é Câmara Alta, e sim “senhor Gandhi”. A formalidade parece admitir que o relacionamento entre ambos, como quer que seja entendido, não era de iguais.
Hoje em dia, Lawley ainda é uma parada de trem. Junto dela estende-se uma favela de chapas corrugadas e casebres de barro que se comprimem em praticamente todos os cantos de uma antiga fazenda de brancos. Quando se tentou restaurar a fazenda Tolstói e levantar ali um monumento, os moradores da favela sem demora deixaram o lugar absolutamente nu. Estive ali em 2008 e não havia mais nem mesmo um letreiro. Tudo o que restava eram uns bancos tortos de tijolos, os alicerces de uma casa velha, as moradias bem cercadas de alguns brancos que trabalham numa olaria próxima, eucaliptos queimados e umas poucas árvores frutíferas, talvez progênie das vintenas delas que Kallenbach plantou há um século, e, por fim, uma vista de uma Joanesburgo que Gandhi dificilmente reconheceria, depois dos bairros negros e das barragens de lodo resultantes da mineração.
Quando ali viveram, Gandhi e Kallenbach continuaram a fazer suas experiências dietéticas, reduzindo a ingestão diária de alimentos, em certo período, a uma só refeição vespertina, medida com cuidado. E a cada mês ou mais ou menos isso, Kallenbach fazia referência a mais uma “longa discussão” com o sr. Gandhi. Não há uma palavra sobre os pormenores, mas às vezes essas conversas provocavam, por parte de Kallenbach, a resolução de acelerar seus estudos de híndi e de tomar uma decisão sobre o abandono de sua profissão. E então uma outra pessoa entrava em cena, competindo pela atenção de seu companheiro, e ele era tomado por uma nova onda de dúvidas. A anotação mais pessoal e curiosa em seu diário ocorre em 27 de agosto de 1913, oito meses depois de Gandhi voltar enfim para a comunidade Phoenix. A fazenda Tolstói foi fechada, Kallenbach retornou para Mountain View, e Gandhi, numa visita, hospedou-se na casa dele. Sonja Schlesin, uma judia do círculo de Gandhi em Joanesburgo, sua secretária, moça cheia de vida, apareceu na casa. Há quem creia que foi Kallenbach quem apresentou Sonja, dezessete anos mais nova do que ele, a Gandhi, em 1905. Suas famílias tinham sido amigas na Europa. Mas Kallenbach passara a achar que ela ocupava demasiado o tempo de Gandhi e, em certo sentido, a via como uma rival. “Devido à ida da senhorita Schlesin a Mountain View, fui a pé, sozinho, para o escritório”, escreveu Kallenbach. “Discussões sobre ela levaram o senhor Gandhi a fazer o voto. Foi um dia penosíssimo para mim.”
Se esse texto fosse uma antiga inscrição cuneiforme, com certeza não seria mais difícil de decifrar. Estará ele aludindo ao voto de brahmacharya de Gandhi ou ao voto recente que provocara um jejum no mês anterior por causa de certos atos carnais que tinham vindo à tona em Phoenix? (No entender de Gandhi, não existiam brincadeiras sexuais inocentes. Antes ele se queixara de um caso de “coqueteria excessiva” em Phoenix.) Nenhum desses dois votos parece ser o que Kallenbach tinha em mente. É provável que estivesse se referindo a um voto de que só ele e G. tinham conhecimento. O contexto é obscuro, mas os sentimentos de Kallenbach, uma vez na vida, saltam da página. Rivalidades e ciúmes desse tipo se tornariam corriqueiros mais tarde no círculo de Gandhi. Mas Kallenbach é especial. Ao se mudar de Joburg, Gandhi parece tê-lo deixado para trás, ter-se livrado dele. Na verdade, tomou essa atitude no começo de 1913, presumindo que o amigo dileto o seguiria em breve. Notando que Kallenbach estava “em cima do muro”, ele lhe pede, num tom ao mesmo tempo lisonjeiro e passivo-agressivo, que “pense na vida em comum que temos vivido”. Mas a indicação mais clara de seus sentimentos é a seguinte: ao arrumar suas próprias coisas que deveriam ser enviadas a Phoenix, ele também arrumou e despachou os livros e instrumentos de Kallenbach. Câmara Alta fica magoado quando Câmara Baixa pede que eles lhe sejam devolvidos. Mesmo assim, não desiste.
Como veremos, isso não é o fim. Kallenbach mergulha na última e maior campanha de satyagraha de Gandhi na África do Sul, e depois dá mostras de recuar de novo, incomodado com o apego de Gandhi a um clérigo britânico, Charles F. Andrews. “Embora eu ame e tenha quase adoração por Andrews”, Gandhi escreve, “eu não trocaria você por ele. Você continua a ser o mais querido e mais próximo a mim. […] Eu sei que em minha viagem solitária pelo mundo você será o último a me dizer adeus (ou não dirá isso nunca). Que direito eu tinha de esperar tanto de você?”
Tanto o quê, é o que tentamos descobrir. A resposta só pode ser amor, devoção, apoio incondicional. Nas palavras de Gandhi, Kallenbach era “homem de sentimentos fortes, amplas afinidades e uma simplicidade infantil”. Em outra ocasião, queixou-se da “sensibilidade mórbida” do amigo, referindo-se, ao que parece, a seus ciúmes e também a sua suscetibilidade a outras influências. Três meses antes de deixar a África do Sul, Gandhi mais uma vez garante a sua alma gêmea: “Você será sempre você e só você para mim. Eu lhe disse que você terá de me abandonar, e não eu a você.” Enfim, Kallenbach sucumbe. Viaja com Gandhi quando este deixa o país, com a intenção, logo frustrada, de acompanhá-lo até a Índia.
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