ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Volta ao mundo em 251m²
Esplendor e glória das artes plásticas e dos sistemas de segurança num condomínio fechado
João Moreira Salles e Roberto Kaz | Edição 5, Fevereiro 2007
“Os casais que escolheram a Península para viver são bem mais felizes do que o deus Apolo e a ninfa fugitiva.”
Quem o afirma, num bem acabado prospecto, são os incorporadores do maior e mais ambicioso lançamento imobiliário do Rio de Janeiro neste início de século. A referência ao mito de Daphne, a ninfa que preferiu se transformar em árvore a se entregar a Apolo, tem sua razão de ser. Existe uma famosa escultura de Apolo e Daphne do escultor e arquiteto Gianlorenzo Bernini, gênio do barroco italiano. Ela se encontra na Galleria Borghese, em Roma, mas também pode ser admirada, em tamanho natural, nos jardins da Península.
A Península ocupa uma área equivalente ao bairro do Leblon. Fica na Barra, às margens da lagoa da Tijuca. No momento, existem apenas seis prédios habitáveis. Ao cabo da incorporação, serão 65. Parece muito, mas não é. Apenas 8% da área total serão ocupados com edificações. O resto está destinado a parques, trilhas e espaços de lazer. Atendendo a diferentes orçamentos e estilos de vida, o preço dos apartamentos irá de 215 mil reais (dois quartos, 62m², edifício Via Bella) a 3,4 milhões (cobertura da Maison Grimaldi, 811m²).
O manguezal que margeia a lagoa foi recuperado. Foram reintroduzidas espécies da vegetação de restinga. O verde é belo e farto. O meio ambiente é um dos pontos altos no plano de venda, mas, pelos anúncios que têm aparecido nos jornais, não é o principal. A Península é, antes de tudo, uma experiência cultural.
O filme de uma incorporadora informa que “a Barra da Tijuca é o termômetro fashion do Rio de Janeiro. É onde as mais diversas tendências se manifestam na moda, no design e na cultura”. O fato de a palavra cultura vir acompanhada da imagem do Hard Rock Café é sintomático. A Península surge como tentativa de resposta à angústia de um bairro que muitos percebem como desprovido de alma.
Durante várias semanas, jornais do Rio publicaram o anúncio do condomínio Royal Green, na Península, com destaque para a declaração do decorador Gilmar Perez: “Como o espaço que decorei é enorme, dividi em três setores temáticos a coleção de obras de arte e peças de valor histórico que estou utilizando. Procurei dar um sentido global de ‘volta ao mundo’. A síntese é a tapeçaria utilizada na sala de jantar, que é ilustrada com cenas de personagens históricos como Napoleão Bonaparte e Confúcio, dentre outros. O espaço está imperdível”.
Os prédios do empreendimento têm nomes que evocam uma elegância mais européia do que americana. Será possível morar na Maison des Guelfes, na Maison Grimaldi e na Maison Charles Premier, no Font Vielle, no Poème e no Ambiance. Há, é claro, prédios de nomes mais afeitos à Barra, como Green Bay, e Green Garden. E exceções como Quintas do Lago. Quem batiza os prédios são as construtoras. A CHL, por exemplo, tem predileção por château.
Para visitar os apartamentos decorados, basta marcar hora. Durante a visita, o corretor descreve os benefícios que aguardam o futuro inquilino: “A Barra está sempre inovando. Agora eles estão vindo com o conceito de iHouse [i de innovative]. É uma casa inteligente. Você controla sua banheira pelo celular. É sexta-feira, você está na rua, estressado, parado no trânsito, então liga para casa, programa a hora de chegada e tempera a água pelo celular. Se a água está sendo temperada e você não quer que a empregada use a banheira, você habilita a função de reconhecimento da porta por impressão digital. Só você entra na suíte”. E se a empregada estiver limpando o banheiro na hora em que o proprietário habilitar a função? Todos os apartamentos são monitorados por câmeras. As imagens são enviadas para o laptop do proprietário. Apertando uma única tecla, será possível destrancar a doméstica. Alguns lançamentos da Península falam em smart shower, smart door, smart gate e smart hydro. Os sistemas de segurança são “inteligentes, com o mesmo software usado na Casa Branca”.
Nem só de tecnologia vive a Península. A empresa que concebeu e incorporou o conjunto é a Carvalho Hosken, do colecionador de artes Carlos Carvalho. Seu acervo é tão extenso que, conta-se, há galpões com centenas de obras espalhados pela cidade. Hosken teve a idéia de acrescentar prazer estético à aridez da experiência comercial: de um golpe, ocorreu-lhe usar parte do acervo para decorar seus estandes de venda. Primeiro o visitante atravessa portas imponentes, algumas delas ladeadas por dragões chineses. Uma vez dentro do hall dos prédios mais luxuosos, os corretores abaixam o tom de voz, em deferência. Vai-se então até o estande – na verdade, um apartamento decorado – que leva o nome de Vip Line. Até pouco tempo atrás, não se devia avançar imediatamente. Era preciso calçar pantufas. Carvalho tinha medo que seus tapetes delicados pudessem sofrer com a aspereza dos sapatos. Alguns clientes vestiam a pantufa na cabeça, como toucas cirúrgicas. Não sabiam bem o que fazer com elas. A obrigatoriedade de pantufas foi abandonada para evitar maiores constrangimentos.
No estande do edifício Grand Royal, coluna 2, condomínio Royal Green (251m², quatro suítes, dois andares e elevador interno), 1,2 milhão de reais a unidade, o visitante é recebido pela estudante de história da arte Joanna Barbosa. Sua função é cuidar do acervo e fornecer explicações sobre as obras. Todo apartamento decorado na Península tem um estudante de arte ou museólogo de plantão. O estande do Grand Royal é o apartamento decorado por Gilmar Perez, aquele ao qual ele atribuiu o sentido global de volta ao mundo. No total, foram postas ali dentro 85 obras de arte.
Os cômodos são temáticos. Na entrada, as pinturas, solenes, retratam personagens da história do Brasil: o Barão e a Baronesa de Mauá, D. João VI e D. Pedro I. Na sala de estar, as litogravuras mostram a invasão holandesa em Pernambuco. Estão acompanhadas pelo O Elmo de Rembrandt (“Uma réplica”, apressa-se em explicar Joanna Barbosa). Na sala de jantar, ela mostra a tapeçaria que Gilmar Perez julga ser a síntese de seu esforço criativo. Vemos não só Napoleão e Confúcio, mas também várias outras personalidades da história mundial, nenhuma delas identificada pelos circunstantes. Na sala de TV, o tema é África; no escritório, Japão; no quarto do casal, Rússia, representada por ícones e imagens de patriarcas da Igreja Ortodoxa.
O acervo é eclético. Nos estandes do edifício Maison Grimaldi (403m², 1,6 milhão de reais) encontramos três retratos do Barão de Itararé, feitos por Guignard, Portinari e Pancetti, todos originais. Entre dois apartamentos decorados, presos ao teto, réplicas dos anjos que Ceschiatti esculpiu para a Catedral de Brasília. No estande do Bernini (duplex, 310m², 1,4 milhão de reais), podia-se ver um lago ao cair da tarde, Les nénuphars, de 1928, óleo do francês Henry Biva; uma paisagem acadêmica do francês Rigolot (cujo nome não pôde ser achado em nenhum dos 34 volumes do Grove, o mais completo e fidedigno dicionário enciclopédico de arte do mundo); uma cena de interior com alaúde, partitura e cãozinho, escola italiana, século XVII, de Evaristo Baschenis; um crepúsculo com cascata, escola inglesa, de Hefsley (outro artista que escapou às obsessões do Grove).
Numa Vejinha Rio de maio do ano passado, Carlos Carvalho aparece segurando um dos quadros de sua coleção particular. Um breve texto explica o novo conceito de apartamentos decorados com obras originais. A matéria ocupa a parte de baixo de uma página da revista. Já a parte superior traz uma foto de Estela Pereira, a musa da Playboy para o mês da Copa. A moça, que para a ocasião vestiu quase nada, vem acompanhada da frase “Pedala, Estela”. A revista, aberta na página de Carvalho, pode ser vista em todos os apartamentos do roteiro de visitação. Diante das circunstâncias, os decoradores foram obrigados a desenvolver certas estratégias: num apartamento, a moça desaparece sob uma salva de prata inglesa, deixando apenas Carlos Carvalho à mostra; em outro, a solução foi soterrar Estela Pereira embaixo de um vaso Murano.
A visita se encerra com um passeio pelos parques e trilhas do empreendimento. Como a área é extensa, faz-se o percurso a bordo de um carrinho de golfe. Entra-se pela linda trilha ecológica de 3 400 metros que margeia a lagoa. Ao longo do passeio, há um jardim zen, dois espaços-piquenique, sete recantos literários e o famoso jardim das esculturas.
O escultor e leiloeiro Evandro Carneiro, curador da coleção de esculturas da Península, é responsável pela escolha tanto das réplicas clássicas como das obras contemporâneas que integram o acervo. Conforme a literatura disponível, vemos que ali estão representados o expressionismo figurativo de Agostinelli, as ressonâncias cósmicas de Vlavianos, a mãe primordial de Sonia Ebling, o africanismo construtivo de Emanoel Araújo, os espaços imprevistos de Ascânio MMM e o expressionismo maciço de Caciporé Torres, além das Três Graças (Aglaia, Eufrosina e Tália), de bancos trabalhados artisticamente, de “virgens vestais” e de um gazebo de mármore sustentado por cariátides, “a evocar o tempo das ninfas e faunos em pleno século XXI”.
Ao longo do passeio, o visitante que seguir com atenção o prospecto-catálogo entrará em contato com Zeus, Hera, Gaia, Fídias, Péricles, Weissmann, Eros, Urano, Adão, Eva, Zéfiro, Max Bill, Platão e Frederico Morais – todos com um código numérico em suas bases. A Península promete que em breve seus parques serão “um dos mais notáveis patrimônios culturais da arte brasileira”
Documentarista, é fundador da piauí. Dirigiu No Intenso Agora, Santiago, Entreatos, Notícias de uma Guerra Particular e Nelson Freire. É autor de Arrabalde: Em Busca da Amazônia (Companhia das Letras)
É jornalista e redator do Piauí Herald. É autor do Livro dos Bichos, pela Companhia das Letras