Lula, De Gaulle, Churchill e Getúlio: é difícil entender a força misteriosa que dotou esses homens de tamanha capacidade de sobreviver, mas apenas Perón escapou da segunda morte política CRÉDITO: KLEBER SALES_2022
A volta dos enterrados vivos
Como Getúlio Vargas e outros poucos estadistas, Lula ressuscitou para a vida política – e agora vai enfrentar a maldição do retorno ao poder
Lira Neto | Edição 196, Janeiro 2023
Quase ao final do discurso da vitória, diante das 58 mil pessoas que ocupavam os dois lados da Avenida Paulista, próximo ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), Lula olhou para trás, como se procurasse alguém. Logo tomou a mão de Rosângela Silva, a Janja, e a trouxe para o centro do palanque apinhado de correligionários, auxiliares e apoiadores. “Eu quase fui enterrado vivo nesse país”, disse Lula, com os cabelos desgrenhados e o suor manchando o peito da camisa jeans azul-escura e de mangas compridas dobradas no antebraço.
O desalinho era justificável. Faltavam poucos minutos para a meia-noite de 31 de outubro de 2022. Desde as 19h57, quando a Justiça Eleitoral confirmou o resultado das urnas, Lula não parou de receber congratulações e saudações efusivas. Acompanhara a apuração dos votos pela tevê, em casa, no bairro Alto de Pinheiros, na Zona Oeste da capital paulista. À saída, fora cercado por eleitores: homens, mulheres, jovens, velhos, pais e mães com crianças ao colo se acotovelavam para chegar perto dele. No empurra-empurra, todos quiseram tocá-lo, cumprimentá-lo, abraçá-lo e, se possível, celulares em punho, tirar uma selfie ao seu lado.
Lula entrou no automóvel preto e, com metade do corpo para fora do teto solar, mãos estendidas em direção às pessoas que se espremiam ao redor do veículo, continuou a acenar e a receber felicitações. O episódio se repetiu na chegada do carro ao hotel InterContinental, na Alameda Santos, onde fez o primeiro pronunciamento público após a divulgação oficial do resultado das urnas. Enfrentou novo turbilhão de apreço ao se dirigir para a grande comemoração na Paulista. Aos 77 anos, Lula estava eleito, pela terceira vez, presidente da República – fato inédito na história do país.
“Considero o momento que estou vivendo quase uma ressurreição. Eles pensavam que tinham me matado, eles pensaram que tinham acabado com a minha vida política”, discursou, de mãos dadas com Janja, que vestia um conjunto de calça e blusa vermelhas, a cor do PT. “Graças a Deus, eu estou aqui, firme e forte, amando outra vez e apaixonado pela minha mulher. É ela quem vai me dar forças para enfrentar todos os obstáculos.”
Lula tinha razão em se declarar, mais do que um sobrevivente, um ressuscitado. Muitos o consideraram um cadáver – moral e político – quando foi preso, em 7 de abril de 2018, ao cabo de dois anos de acusações de corrupção no âmbito da Operação Lava Jato, capitaneada pelo então juiz Sergio Moro. Após o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitar um pedido de habeas corpus, Moro decretara a prisão de Lula. Com 72 anos de idade, sua pena prevista era de doze anos e um mês de cadeia. “‘O cara’ acabou”, vaticinou a capa da revista IstoÉ quando da condenação em segunda instância, ironizando o epíteto – “o cara” – dirigido a Lula em 2009 pelo então presidente norte-americano Barack Obama, no intervalo de uma reunião de cúpula do G20 em Pittsburgh, nos Estados Unidos.
Após 580 dias encarcerado em uma cela da Superintendência Regional da Polícia Federal em Curitiba, Lula foi solto em 8 de novembro de 2019, quando o STF decidiu pela inconstitucionalidade da prisão de réus antes do julgamento em terceira instância. Em 15 de abril de 2021, o Supremo voltou a se debruçar sobre o caso específico de Lula e anulou, por completo, as penas que incidiam sobre ele. Moro terminou por ser declarado parcial na condução do caso. Lula estava livre para se candidatar novamente à Presidência. Contudo, além da humilhação da cadeia e da reputação abalada, sofrera reveses pessoais anteriores, a começar por um câncer na laringe, diagnosticado em 2011, e a morte, em fevereiro de 2017, da ex-primeira-dama Marisa Letícia, com quem estava casado havia 42 anos.
“Eu sei que minha mulher, Marisa, morreu por causa da pressão”, disse. Em março de 2016, a residência do casal fora alvo de um mandado de busca e apreensão pela Polícia Federal, com Lula sendo levado, sob condução coercitiva, para prestar depoimento a Moro. Em setembro, Marisa tornou-se ré de duas ações penais, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Dali a quatro meses sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). “Dona Marisa morreu triste com a canalhice, a imbecilidade, a maldade que fizeram com ela”, observou Lula, no velório da esposa. “Descanse em paz, que seu Lulinha paz e amor vai continuar brigando.”
Enquanto esteve na prisão, Lula perdeu também o irmão Genival Inácio da Silva, o Vavá, de 79 anos, vítima de câncer no pulmão, e o neto Arthur, de apenas 7 anos, em decorrência de infecção bacteriana. “[Para] quem passou o que eu passei nos últimos anos, estar aqui agora é a certeza de que Deus existe”, disse Lula, emocionado, na solenidade de diplomação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 12 de dezembro passado.
A “ressurreição” de Lula é um evento surpreendente no cenário contemporâneo internacional, mas não único. Assim como ele, outros estadistas, depois de declarados zumbis políticos, retornaram ao poder por meio de consagradoras reviravoltas. O também brasileiro Getúlio Vargas, o britânico Winston Churchill, o francês Charles de Gaulle e o argentino Juan Domingo Perón são exemplos notórios de “enterrados vivos” que regressaram do mundo dos supostos defuntos morais para inscrever, como vitoriosos, seus respectivos nomes na história.
“Isso está mais parecido com uma ação de despejo que um golpe de Estado”, ironizou Getúlio Dornelles Vargas, ao ser comunicado pelos auxiliares, naquela manhã de 29 de outubro de 1945, que os generais do Exército haviam mandado cortar a luz, a água e o gás da residência oficial da Presidência da República, o Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, então capital federal. No poder havia quinze anos, desde a chamada Revolução de 30, Getúlio vinha enfrentando sucessivas pressões para se afastar do cargo.
A oposição liberal e as Forças Armadas desconfiavam das promessas de abertura do regime e do consequente fim do Estado Novo. A ditadura instituída por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937 suspendera as eleições presidenciais previstas para janeiro do ano seguinte, dissolvera os partidos políticos, exonerara os governadores, fechara o Congresso Nacional, rasgara a Constituição e impusera uma nova Carta Magna ao país, de caráter autoritário, escrita por Francisco Campos, o “Chico Ciência”, ministro da Justiça.
Getúlio encarnava uma série de contradições insolúveis. Depois de enviar soldados brasileiros para lutar ao lado das democracias contra o autoritarismo nazifascista na Segunda Guerra Mundial, ele próprio comandava um governo discricionário, nada democrático. Enquanto modernizava o Estado brasileiro por meio de novos órgãos de administração pública e concedia benefícios aos trabalhadores, mantinha acirrada censura à imprensa e absoluta tutela sobre os sindicatos.
Quando passou a encorajar o movimento queremista – “Queremos Getúlio” era a palavra de ordem dos manifestantes –, os adversários do governo interpretaram o fato como uma manobra para o presidente se perpetuar no poder, com novo cancelamento das eleições, remarcadas para dezembro de 1945. Mas o estopim que incendiou de vez os quartéis foi a nomeação do irmão, Benjamin Vargas, o Bejo, para o posto de chefe de polícia do Distrito Federal, cargo considerado estratégico para uma possível arregimentação de forças a favor do continuísmo. Os militares esbravejaram. Não admitiram a investidura de Bejo. “Se não tenho mais autoridade para nomear um chefe de polícia de minha confiança, não sou mais presidente da República”, reconheceu o ditador.
De fato, o golpe já estava consumado. Os generais comandados por Pedro Aurélio de Góis Monteiro, ministro da Guerra, ordenaram o envio de tropas para a ocupação das principais ruas e avenidas do Rio de Janeiro. Prédios públicos da capital foram cercados por homens de farda, coturno e armas pesadas. Uma unidade motorizada invadiu os jardins do palácio e apontou os canhões para a fachada do edifício. Acossado, Getúlio pediu 48 horas para abandonar o local. Precisava embalar objetos pessoais, encaixotar livros e selecionar papéis particulares. “Entrei para o governo por uma revolução, saí por uma quartelada”, queixava-se.
Pelas praças públicas do Rio, bustos de bronze erigidos em sua homenagem eram arrancados dos pedestais e jogados à sarjeta. “O triste fim de Policarpo Vargas”, anunciou o título do editorial estampado na primeira página do carioca O Jornal, assinado pelo dono da publicação, Assis Chateaubriand, o Chatô. Era uma referência sarcástica ao título do romance de Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma. “O organismo, onde vivia o piolho queremista, já era cadáver, sem sangue portanto para o alimentar”, sentenciava o texto. O ditador enxotado do palácio aos 63 anos, segundo Chatô, seria apenas “um modelo roto, descarnado, roído por bichos”.
No dia 1º de novembro, um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) decolou do Aeroporto Santos Dumont, no Rio, com destino a São Borja, terra natal de Getúlio, no Rio Grande do Sul. Sobre o passageiro ainda pairavam as ameaças de cadeia ou extradição. Recolher-se ao interior gaúcho, sumir da cena pública, seria uma forma de atenuar as suspeições que recaíam contra si. Com o avião da FAB cruzando os céus, o sobrinho Serafim Dornelles, o único apoiador que o acompanhou no voo, perguntou ao tio sobre o que pretendia fazer com os anos de velhice que ainda lhe restavam.
Getúlio acendeu um charuto da marca Poock, de fabricação rio-grandense, soltou uma lenta baforada e, depois de estudado silêncio, comentou: “Deves ter ouvido que a política se assemelha a um jogo de xadrez. Indiscutivelmente, em alguns pontos se assemelham. Por exemplo, eu sou uma pedra que foi movida da posição que ocupava. E eles pensam que vou permanecer onde me colocaram. É o grande erro deles. Não sabem que vamos começar um novo jogo – e com todas as pedras de volta ao tabuleiro.”
O primeiro-ministro britânico Winston Churchill acompanhou o resultado final das eleições nacionais de 1945 bebendo uísque, fumando charutos e envergando o siren suit, macacão de campanha que ele inventara e ajudara a popularizar ao longo da Segunda Guerra Mundial. Inspirado no vestuário de pedreiros, operários, pilotos e mecânicos, a roupa folgada, com cinto largo, fecho vertical de zíper, bolsos laterais nas pernas e à altura do peito, tinha sido concebida para ser vestida em um átimo por sobre as ceroulas, ao se pular da cama, tão logo fossem ouvidas as sirenes de alerta dos ataques aéreos.
Mas os perigos mais cruciais da guerra já haviam cessado dois meses antes, no início de maio, quando os Aliados receberam as declarações de rendição da Itália e da Alemanha. Em abril, o corpo do italiano Benito Mussolini fora pendurado em um poste, de cabeça para baixo, na Praça de Loreto, em Milão. Dois dias depois, Adolf Hitler enfiara uma bala na própria cabeça em seu bunker, em Berlim. Churchill tinha sido peça fundamental na vitória contra o nazifascismo. Sob o seu comando, com o reforço decisivo dos Estados Unidos, a Inglaterra bloqueara o avanço das tropas alemãs no teatro de operações da Europa Ocidental.
Ao assumir o cargo de primeiro-ministro em maio de 1940, com o continente conflagrado, Churchill proferira na Câmara dos Comuns, uma das duas casas do Parlamento britânico, o discurso que se tornou célebre: “Não tenho nada a oferecer além de sangue, labuta, lágrimas e suor.” A habilidade política e o poder de oratória que lhe eram característicos o capacitaram, em momento assim tão dramático, a coordenar um governo de coalizão e a mobilizar a opinião pública britânica, enquanto Londres era alvo de bombardeios sistemáticos da Luftwaffe, a Força Aérea nazista.
“Essa vitória é de vocês”, disse Churchill, na sacada de um prédio na praça do Parlamento, em 8 de maio de 1945, o Dia da Vitória. “Não, ela é sua!”, respondeu a multidão, em uníssono. Churchill desfilou em carro aberto, foi aplaudido de pé na Câmara, saudado pelos deputados com o acenar de lenços e chuva de papéis. No Palácio de Buckingham, posou para os fotógrafos ao lado da família real, incensado na condição de herói supremo do Império Britânico.
A despeito de tamanha glória, naquelas eleições de julho, mal finalizado o pesadelo da guerra em território europeu, ele não podia ser considerado o favorito nas urnas. Líder do Partido Conservador, ele assistia apreensivo à ascensão do Partido Trabalhista, que prometia reerguer a nação – traumatizada pelo racionamento de comida, pelas baixas humanas e pela destruição dos ataques aéreos –, com base em investimentos em prol de um Estado de bem-estar social: construção de moradias, subsídios familiares, seguros emergenciais, nacionalização de empresas estrangeiras. Anticomunista ferrenho, Churchill acusava os adversários de quererem transformar Londres em um satélite de Moscou.
Nas dependências das Churchill War Rooms, quartel-general subterrâneo que servira de sede provisória ao governo britânico no auge do conflito – mais precisamente na Sala dos Mapas, em cujas paredes os comandantes militares afixavam alfinetes em painéis cartográficos para representar a localização das tropas durante a guerra –, um quadro reunia os votos apurados nos distritos eleitorais, à medida que as informações chegavam pelo teletipo. A eleição acontecera no dia 5, mas apenas no dia 26 os sufrágios puderam ser totalizados. Os números finais apontaram a vitória categórica dos trabalhistas, que obtiveram a maioria, ao conquistar 393 dos assentos no Parlamento, contra 213 dos conservadores e 34 dos partidos menores.
À noite, um abatido Churchill rumou ao Palácio de Buckingham para apresentar sua demissão a George vi. O rei, a título de consolo, queixou-se da ingratidão dos britânicos para com o herói de guerra. Na manhã seguinte, Churchill foi até o número 10 da Downing Street, a residência oficial do primeiro-ministro, esvaziou a escrivaninha e se despediu de funcionários e assessores. Disse-lhes que sua vida, dali por diante, não se resumiria à ociosidade, mesmo tendo ele 70 anos. Pretendia escrever livros históricos sobre a Segunda Guerra (já publicara uma série de cinco volumes sobre a Primeira), pintar quadros (era um de seus principais hobbies) e voltar ao Parlamento (desde sua primeira eleição em 1901 tivera consecutivos mandatos). Entretanto, jamais retornaria àquela cadeira da Downing Street. “Nunca mais vou me sentar nela”, lamentou.
Em pleno domingo, 20 de janeiro de 1946, os integrantes do Conselho de Ministros da França foram surpreendidos pela convocação extraordinária do presidente da República, Charles de Gaulle. Estavam sendo chamados a comparecer, com urgência, ao gabinete presidencial. Haveria uma reunião a portas fechadas. Não lhes foi comunicado o assunto a ser tratado – e nenhum deles fazia a mais remota ideia da pauta a ser discutida. Ao chegarem ao local, De Gaulle pediu que não se sentassem à mesa de trabalho, mas que se juntassem a ele, próximo à lareira. Tinha algo a lhes dizer, mas seria rápido. “Estou pedindo demissão do cargo”, anunciou. “Em caráter irrevogável.”
Dito isso, apertou a mão de cada um dos presentes, deixou a sala, saiu pela porta principal do palácio, embarcou no automóvel que o aguardava e foi embora, sem dar maiores explicações. Decidiu não voltar para a casa onde estava morando, uma mansão em Neuilly-sur-Seine, nos arredores de Paris – a sua residência original, em Colombey-les-Deux-Églises, tinha sido queimada e saqueada na Segunda Guerra, depois de servir como caserna para as tropas alemãs durante a ocupação da França. Preferiu se instalar em um antigo pavilhão de caça do século XVII, a cerca de 25 km da capital, para fugir à curiosidade pública e ao assédio de políticos e jornalistas. Mas deixou uma recomendação ao ajudante de ordens, que continuaria a lhe prestar serviços, cuidando da correspondência: “Nas cartas, não dê a impressão de que fui embora para sempre. Dê respostas neutras.”
A notícia da renúncia causou espanto em todo o país. De Gaulle estava no poder havia cerca de um ano e meio. Ascendera ao cargo como herói nacional. Militar de carreira, ele combatera na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, tendo liderado em 1940 um dos primeiros contra-ataques à ofensiva alemã em território francês. Pela façanha, foi promovido, por mérito, ao generalato. A título de reconhecimento adicional, lhe atribuíram o cargo de subsecretário de Estado. Porém, não demorou para os alemães redobrarem a carga e, por fim, invadirem o país. De Gaulle refugiou-se na Inglaterra e, de lá, organizou as forças da Resistência francesa contra os nazistas, enquanto constituiu uma espécie de governo paralelo no exílio, denominado França Livre. “O que quer que aconteça, a chama da resistência não deve apagar, não se apagará”, proclamou aos compatriotas, em mensagem transmitida de Londres pela BBC.
Após quatro longos anos de ocupação, os franceses começaram a recuperar a liberdade em 6 de junho de 1944, o Dia D, com o desembarque de mais de 130 mil soldados aliados na Normandia, no noroeste do país, junto ao Canal da Mancha. Uma semana depois, De Gaulle pôde retornar à França, a bordo de um destróier. Em terra firme, subiu em um jipe de campanha e seguiu para Bayeux, a primeira cidade liberada do domínio de Hitler. Quando entrou na zona urbana fazendo o “v” da vitória, populares atiraram flores sobre o carro, correndo para abraçá-lo. Em agosto, com Paris enfim recuperada da mão dos invasores, foi aclamado chefe de governo. Desfilou então de uniforme militar em carro aberto pela Avenida Champs-Élysées, aplaudido por cerca de 1 milhão de pessoas, a maior multidão até então reunida nas ruas da cidade.
Os problemas começaram quando De Gaulle se viu diante da tarefa de reconstruir um país devastado. Para tanto, acreditava ser necessário implantar um governo forte e centralizado, superior aos humores da política, aos interesses dos partidos e às negociações parlamentares. Tal desejo colidiu com a aspiração nacional de retorno à normalidade democrática, o que implicava a restauração dos mecanismos de representação popular. Foi necessário eleger uma Assembleia Constituinte, pelo voto direto dos cidadãos. Os debates em torno da nova Carta caminharam para a concessão de amplos poderes ao Parlamento, contrariando as aspirações autocráticas do general. “O que queremos, um governo que governe ou uma assembleia onipotente que forma um governo para cumprir as suas vontades?”, inquiria.
Diante da dificuldade de montar um regime à sua imagem e semelhança, De Gaulle passou a aventar a hipótese de renúncia. Quando enfim anunciou a decisão de largar tudo e ir embora do palácio, os ministros se entreolharam em silêncio. Alguns desconfiaram que ele estivesse blefando, no intuito de provocar uma comoção popular, uma maré de protestos, qualquer fato capaz de pressionar a classe política e ensejar sua volta triunfal ao cargo. Mas nada disso aconteceu. Ninguém protestou, ninguém saiu às ruas. Ao contrário do que ele talvez calculara, nem mesmo os ministros entregaram os cargos em solidariedade. Em carta ao filho Philippe, De Gaulle escreveu: “A onda de baixeza continua a se propagar. Nada nem ninguém poderia impedi-la. Eu não gostaria, por preço algum, de me deixar sujar por essa enchente. Mas eu acredito no refluxo que, mais cedo ou mais tarde, irá desocupar margens sobre as quais se poderá edificar novamente.”
Um temporal desabou naquela noite sobre a cidade de Buenos Aires, alagando ruas e atravancando o trânsito. Nas primeiras horas da manhã, um Cadillac preto, de para-choques prateados e pneus de bandas brancas, brecou diante da entrada do cais do porto. À frente, uma grande poça impedia que seguisse adiante. O automóvel deu marcha a ré, tomou distância de alguns metros, parou por alguns segundos, engatou a primeira e então avançou, a toda velocidade. A manobra foi em vão. A área alagada era mais extensa e profunda do que parecia ao primeiro cálculo. A água entrou no motor e o carro engasgou. Vestido com uma capa impermeável, o condutor abriu a porta, desceu, maldisse a situação e olhou em volta. Viu um ônibus estacionado, com o motorista dormindo ao volante.
Ele caminhou até lá e acordou o homem, que foi arrancado do sono por uma voz que lhe soou familiar. Quando abriu os olhos, o dorminhoco deve ter imaginado que ainda sonhava. Estava ali, bem diante dele, encharcado da cabeça aos pés, ninguém menos que o presidente da República, Juan Domingo Perón. Pedia-lhe para que o ajudasse, por obséquio, a empurrar o Cadillac para fora da poça. Ainda atônito, o sujeito providenciou uma corda grossa e a amarrou entre os chassis do ônibus e do carro, rebocando o automóvel presidencial até próximo ao ancoradouro, onde estava atracada uma canhoneira de bandeira paraguaia.
Perón agradeceu a ajuda, pegou uma pequena maleta que trazia no carro e subiu a bordo. Não levava muita bagagem, apenas poucas mudas de roupa: camisas, calças e meias. Havia também alguma quantia de dinheiro em espécie, pesos argentinos e dólares norte-americanos. Por último, um retrato de Evita Perón, sua mulher, falecida três anos antes, e uma imagem da Virgem de Luján, padroeira do país. No convés, o capitão já esperava pelo passageiro, imediatamente levado para a cabine principal da canhoneira. Conforme as instruções do embaixador do Paraguai, a missão consistia em abrigar Perón ali, até instruções posteriores. Caso alguém se aproximasse do navio, deveria abrir fogo.
Minutos depois, uma lancha a motor parou ao lado do navio e conduziu Perón até o ponto onde o aguardava um hidroavião bimotor Catalina. Com dificuldades de manobrar sobre águas revoltas devido ao mau tempo, o aparelho adernou por cerca de 2 km e, enfim, conseguiu alçar voo em direção a Assunção. Dois aviões serviram-lhe de escolta durante o trajeto. Em um deles, o copiloto era Alfredo Stroessner, o presidente do Paraguai. Ele próprio fizera questão de resgatar o colega argentino dos golpistas que estavam prestes a tomar o poder em Buenos Aires e implantar uma ditadura militar – embora ele próprio, Stroessner, tivesse chegado ao poder em seu país por vias idênticas.
A fuga rocambolesca, seguida do exílio, parecia significar o fim melancólico da biografia política de Perón. Ele fora alçado à Presidência após vencer as eleições nacionais em 1946, sob a promessa de promover “justiça social e independência econômica”, plataforma apoiada por uma caleidoscópica combinação de forças que incluíam desde sindicalistas e jovens intelectuais a conservadores nacionalistas – todos reunidos depois da vitória em uma única legenda, o Partido Peronista. Contudo, já na campanha, o emergente peronismo enfrentara uma oposição radical, caracterizada por animosidades da imprensa, provocações públicas de militantes adversários e tentativas de atentado.
Eleito com maioria no Parlamento, Perón partiu para o contra-ataque. Articulou o controle dos meios de comunicação e buscou neutralizar os oponentes. Infligiu censura à imprensa, determinou prisões arbitrárias de inimigos e impôs aposentadoria compulsória de membros da Suprema Corte. Ao mesmo tempo, inflou a popularidade ao instaurar medidas de redistribuição de renda, aumento de salários e benesses trabalhistas. Para completar, sancionou o sufrágio feminino, estabelecendo o direito de igualdade política entre homens e mulheres.
Em 1949, conseguiu aprovar uma reforma constitucional que permitiu o mecanismo da reeleição – e, claro, sua imediata recandidatura. Eva Perón, a Evita, fundadora do Partido Peronista Feminino, foi lançada candidata a vice-presidente na chapa encabeçada pelo marido. Mas ela própria viu-se obrigada a recuar do propósito. Na verdade, estava doente, com um câncer no colo do útero, tendo se submetido a uma histerectomia.
Em 11 de novembro de 1951, Perón foi reeleito com 63,5% dos votos, contra os 32,3% do principal adversário, Ricardo Balbín, da União Cívica Radical. Evita morreu em julho do ano seguinte, pesando apenas 37 kg e sofrendo fortes dores decorrentes de uma metástase. Além da perda da esposa, Perón foi confrontado, ao longo do segundo mandato, por recorrentes ensaios de golpes, quarteladas e ataques terroristas. A maioria deles organizados pela União Cívica Radical, com aberto apoio de setores das Forças Armadas e alas da Igreja Católica. Na manhã de 16 de junho de 1955, recebeu a informação de que a aviação naval havia se sublevado e que havia uma movimentação incomum nos quartéis.
Naquele dia estava marcada uma concentração popular a seu favor na Praça de Maio, diante da Casa Rosada, sede da Presidência da República. Às 12h40, começou o ataque, com aviões despejando bombas sobre a praça e o prédio do governo. A primeira delas atingiu um ônibus lotado de crianças. Todas morreram. No chão, tropas rebeldes investiram contra o alvo central, a Casa Rosada, para tomar o edifício e capturar o presidente, vivo ou morto. Forças legalistas, convocadas em caráter de emergência, conseguiram debelar o assalto, depois de horas de tiroteio. O saldo final foi de 355 mortos e 600 feridos. Perón escapou ileso. Ao primeiro sinal de alarme, conseguira sair do local e se refugiar no Ministério do Exército, que continuava leal ao presidente.
Em 16 de setembro, um novo levante iniciado em Córdoba espalhou a insurreição para outras cidades. Depois da noite de chuva intensa, Perón pediu ao mordomo que lhe preparasse uma pequena mala e deixasse o Cadillac pronto para partir. Tomou então o volante do automóvel e rumou em direção ao cais do porto, à espera do hidroavião que o conduziria a Assunção. “Os que sobem pelo sangue, com sangue caem”, declarou ao correspondente da United Press na capital paraguaia. Ao repórter, disse acreditar que aquele não era o fim do peronismo – e muito menos dos peronistas. “Eu deixei a eles uma doutrina, uma mística e uma organização. Eles vão saber usá-las quando chegar a hora.”
Lula, Getúlio, Churchill, De Gaulle, Perón. Líderes carismáticos e populares, cada um a seu modo e a seu tempo, experimentaram o fel da derrota e da desonra, em instantes traumáticos de suas respectivas trajetórias. Controversos, amados e odiados em igual intensidade e medida, todos eles renasceriam dos escombros da anunciada ruína política. Saberiam transformar o desastre em triunfo, para desforra dos admiradores e contrariedade dos que quiseram enterrá-los vivos, por entendê-los mortos antes da hora.
Getúlio regressou ao poder em 31 de janeiro de 1951, aos 68 anos, após vencer as eleições de outubro do ano anterior, meia década depois de ter sido derrubado pelo golpe militar. “Ele voltará”, apregoavam os panfletos de campanha. Bota o retrato do velho outra vez/bota no mesmo lugar/o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar, dizia a letra da marchinha carnavalesca de Haroldo Lobo e Marino Pinto, convertida em um dos mais famosos jingles políticos do país.
No mesmo ano, na Inglaterra, Churchill reassumiu o posto de primeiro-ministro, a um mês de completar 77 anos, com a apertada vitória dos conservadores sobre os trabalhistas nas eleições parlamentares. “Muita gente diz que eu deveria ter me aposentado depois da guerra e me tornado uma espécie de estadista ancião, mas como eu poderia?”, indagou. “Lutei durante toda a minha vida e não posso desistir de lutar agora.”
Em maio de 1958, De Gaulle, aos 67 anos, convocou uma coletiva em Paris. Centenas de jornalistas se amontoaram para ouvi-lo. Desde a renúncia, doze anos antes, o sistema parlamentarista da França vivia grave instabilidade política, com a derrubada sucessiva de 23 gabinetes. O país, dividido em torno da independência da Argélia, então colônia francesa, não conseguia organizar um governo duradouro. De Gaulle comunicou aos repórteres que tinha sido chamado para pôr fim ao impasse. “A crise nacional, extremamente grave, pode ser o início de uma ressurreição”, declarou. Em 1º de junho, fez o discurso de posse como primeiro-ministro.
Na Argentina, em 1973, uma decisão prévia do governo militar impediu a candidatura de Perón nas eleições presidenciais, marcadas para março. Depois de retornar do exílio no ano anterior – tendo vivido no Paraguai, Panamá, na Nicarágua, Venezuela, República Dominicana e Espanha –, ele optou por apoiar o aliado Hector Cámpora, que venceu o pleito por 49,5% dos votos. O derrotado, Ricardo Balbín, da União Cívica Radical, com 21,3% do eleitorado, dispensou o segundo turno previsto na legislação eleitoral. Cámpora, por sua vez, renunciou quatro meses depois, para que os argentinos voltassem às urnas, dessa vez sem vetos ou proibições de candidaturas. Balbín concorreu novamente, mas foi batido por Perón, que obteve 62% dos sufrágios. Seria presidente pela terceira vez, aos 78 anos de idade.
Difícil entender como nasce e onde habita a força misteriosa que dotou esses homens de uma inacreditável capacidade de sobrevivência, a ponto de se converterem, ainda em vida, em quase lendas. Uma análise tão preliminar quanto simplista poderia evocar a eficácia da propaganda, a astúcia política, a vontade de poder, a habilidade maquiavélica para explicar o presumido milagre da permanência. Por outro viés, talvez haja a tentação de atribuir a preservação da imagem desses líderes ao caráter ingênuo das massas, ao ilusionismo que embaça e debilita as consciências coletivas, à conjecturada vocação de servidão voluntária dos povos. Pode haver um pouco de tudo isso em jogo. Mas as perguntas e os enigmas tendem a seguir irresolúveis. Em algum lugar entre o talento da sedução, o reconhecimento sincero e o desejo de identificação com o herói deve residir alguma possível resposta. “A verdade do general está em sua lenda”, dizia um dos ministros de De Gaulle. “Gosto mais de ser interpretado do que me explicar”, escreveu Getúlio em seu diário.
Entretanto, se é fato que Getúlio, Churchill, De Gaulle e Perón “ressuscitaram” após penosa queda, não é menos verdade que os três primeiros parecem não ter escapado a um tipo peculiar de sina e maldição: a da segunda morte política. Getúlio, submetido a pressões e a uma campanha de difamação pública sem precedentes, optou pelo suicídio, em 1954, aos 72 anos. No ano seguinte, depois de sofrer um derrame cerebral, Churchill, aos 80, pediu demissão do cargo de primeiro-ministro e continuou na Câmara, com menor expressão, falecendo em 1965. Em Paris, em 1969, derrotado em um plebiscito por meio do qual tencionava novamente obter amplos poderes perante o Parlamento, De Gaulle renunciou pela segunda vez, aos 79 anos. O terceiro mandato de Perón durou apenas nove meses: ele morreu no exercício do cargo, em julho de 1974, também com 79 anos de idade.
Lula parece disposto a quebrar o trágico retrospecto e, enfim, transmutar para o mundo da política a promessa bíblica, citada no livro do Apocalipse, de que “aquele que vencer não receberá o dano da segunda morte”. Em 2018, antes de se entregar à polícia, discursando em um caminhão em frente à sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, ele já havia proclamado, imodesto: “Eu não sou um ser humano, sou uma ideia. E não adianta tentar acabar com as ideias.”
A despeito do que venha a acontecer nos próximos anos no Brasil, Lula, sendo bem ou malsucedido em seu terceiro governo – previsto para acabar quando ele terá alcançado os 81 anos de idade –, já garantiu um lugar de destaque nos livros de história. Assim como Getúlio, Churchill, De Gaulle ou Perón, sua memória deverá continuar, para sempre, em permanente disputa. Muitos seguirão admirando-o; outros tantos, demonizando-o. Mas o mais provável é que ninguém jamais conseguirá permanecer indiferente a uma das trajetórias públicas mais impressionantes da história política mundial.
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