Começo a chorar. Choro muito, como uma criança perdida no supermercado. Mais vômitos. Jorra. Eles têm de esvaziar o balde três ou quatro vezes. De onde está vindo tanto líquido? ILUSTRAÇÃO: ALLAN SIEBER_2007
Voluntário número 13
Bodes e baratos de um voluntário brasileiro que se entupiu de ayahuasca num hospital em Barcelona
Marcos Dávila | Edição 7, Abril 2007
O 24 de setembro é feriado em Barcelona, dia da Virgem da Mercê, padroeira da cidade. O metrô está aberto durante toda a madrugada. Depois da meia-noite, alguns ratos desavisados da mudança de horário saem de seus buracos e topam com os passageiros na estação. Cada qual com a sua surpresa, homens e ratos parecem esperar o mesmo trem.
O celular toca. É um velho amigo carioca, que vive em Barcelona faz quatro anos.
– Tenho um trabalhinho pra você. Já tomou ayahuasca?
Pausa. Não é o tipo de pergunta que se espera de uma proposta de emprego. Ayahuasca é uma bebida alucinógena usada por índios sul-americanos e por alguns grupos religiosos — o mais conhecido deles é o Santo Daime. Já havia experimentado a beberagem um ano antes, num ritual do Daime. Foram mais de oito horas de cantoria e viagens introspectivas, acompanhadas por violão e chocalhos.
– Já tomei, sim.
Ele continua. Ouço a proposta, admirado. Não se trata de rituais de xamanismo ou do Santo Daime. O trabalho é servir de voluntário numa pesquisa científica sobre os efeitos da ayahuasca no corpo humano. Coisa séria. O estudo é realizado no hospital Sant Pau, um dos mais conhecidos de Barcelona. E a paga é boa, melhor do que a de qualquer bico que já havia feito. Em um ano, não foram poucos: músico de rua, pintor de paredes, vendedor de loja de sapatos e caixa de sorveteria. Faço mentalmente a pergunta para lá de shakespeariana: “Sou um homem ou um rato?”.
– Pues, venga!
Ligo para o hospital. Um dos pesquisadores é brasileiro. Explica que para participar da pesquisa é preciso ter experiência prévia em “uso lúdico” de substâncias alucinógenas, como LSD, êxtase, cogumelos, ayahuasca e ecstasy, em pelo menos dez ocasiões. Já havia provado parte da lista e, em alguns casos, mais de dez vezes. Marcamos uma data. Devo procurar o CIM, o Centro de Investigação de Medicamentos. Conhecia bem o hospital. Além de estar a duas quadras de casa, faz parte da chamada ruta del modernismo. Fica numa das extremidades da avenida Gaudí. Na ponta oposta está a catedral da Sagrada Família, outro ícone arquitetônico da cidade. De um lado, a cura do corpo, do outro, a salvação da alma.
Não é difícil encontrar o CIM pelas ruelas do Sant Pau. Entre tantos edifícios modernistas cheios de cores e curvas, aparece no caminho um quadradão bege de dois andares. No primeiro, fica o departamento de psiquiatria. Mais um lance de escadas e chego ao Centro de Medicamentos. A recepcionista chama o pesquisador brasileiro, Rafael Guimarães dos Santos. Ele é biólogo e veio a Barcelona para desenvolver sua tese de doutorado, que tem supervisão do farmacêutico catalão Jordi Ribas. Desde 1999, Jordi coordena pesquisas a partir da administração do alucinógeno em voluntários saudáveis. O projeto, realizado pelo CIM, tem aprovação do comitê ético do hospital e da agência espanhola de medicamentos. A ayahuasca utilizada nos estudos vem do Brasil, doada por uma igreja do Santo Daime.
Para defender seu mestrado no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Rafael dos Santos já havia pesquisado os efeitos da substância em membros do Santo Daime. Ele me conta detalhes sobre a ayahuasca. A bebida é produzida a partir do cozimento de talos macerados do cipó Banisteriopsis caapi e folhas do arbusto Psychotria viridis, encontrados na floresta amazônica. Mais de setenta grupos indígenas, espalhados pelo Brasil, Colômbia, Peru, Venezuela, Bolívia e Equador, tomam ayahuasca. O uso urbano da bebida foi difundido por grupos religiosos como o Santo Daime, o mais antigo, criado nos anos 20. No Brasil, o uso religioso da ayahuasca é legitimado juridicamente desde 1986. A partir da década de 1990, aumentou o número dos cultos que usam ayahuasca, nos Estados Unidos e em vários países da Europa, como a Espanha.
A experiência é dividida em três fases. Na primeira, passo o dia inteiro no hospital, onde sou submetido a diversas avaliações, depois de tomar cápsulas sem nenhuma substância ativa (placebo). Nas fases seguintes, as cápsulas podem ser tanto de ayahuasca como de placebo. É utilizado o procedimento duplo-cego, em que o voluntário, assim como o pesquisador envolvido diretamente no estudo, não sabe o que há dentro das cápsulas.
Para saber se estou apto a ser voluntário, é preciso passar por uma entrevista com uma psicóloga, e por um exame médico que inclui eletrocardiograma e teste de HIV, o que detecta a presença do vírus da Aids. Rafael Santos me apresenta a psicóloga, Eva Grasa. Vamos a uma sala mais reservada. Nome completo: Marcos Eduardo Dávila. A surpresa de sempre. É que normalmente me apresento como Peri, o apelido que me acompanha desde os tempos do ginásio — e que adotei como nome artístico, adicionando o Pane, da família da minha mãe. Peri Pane. Profissão: Marcos é o jornalista e Peri, músico. Não avanço no tema para não ser enquadrado em nenhum transtorno de personalidade.
A entrevista segue com perguntas como “quantos baseados já fumou na vida?”. Eva faz anotações em um caderno.
Vou falando. Conto que raramente fumo maconha. Nunca compro. Fumei tabaco por quinze anos e parei há dois. Não uso nenhum tipo de medicamento. Não gosto de tomar remédios. Faz um ano que não tomo nada, nem aspirina. Cerveja e vinho, socialmente. Sim, já me senti um pouco deprimido, quer dizer, triste. Não, nada que me impedisse de trabalhar, nem de sair de casa. Uma vez pensei que fosse morrer. Ou melhor, tive aquela breve certeza de que podemos morrer a qualquer momento. Essa sensação de fragilidade que se tem quando o avião sobrevoa o Atlântico e, mesmo estando exausto, não é possível dormir. Comecei a rever toda a minha vida, aquele “ser ou não ser” que surge ao redor dos trinta anos, e que alguns chamam de retorno de Saturno.
Meu coração acelera. É o desconforto de fazer tantas confissões por minuto. Sou normal? Eva parece satisfeita.
Me levam para conhecer o quarto onde estarei durante quase todo o tempo da experiência. Parece um pequeno estúdio de gravação de música. São dois ambientes, de três metros por dois cada, divididos por uma grande janela de vidro, como se fosse um aquário. De um lado, ficam os pesquisadores, do outro, o voluntário, sentado numa poltrona.
Passamos para os testes físicos, conduzidos por um enfermeiro numa espécie de ambulatório. É a sala principal do andar, um balcão cercado de nove camas com rodinhas e quatro banheiros sem trancas nas portas. Há também uma cozinha e um refeitório, interligado a uma sala com sofás para ver televisão, a “zona de descans“, como diz a placa em catalão. O lugar é iluminado, limpo e organizado. Com seis meses de funcionamento, é o prédio mais novo no hospital.
Recebo um formulário. Sexo? Masculino. Raça? Aí complica… Opções: negro, branco ou oriental. Tem nenhuma das anteriores? Já me confundiram com japonês. Olhos castanhos, ligeiramente puxados, e cabelo preto bem liso. Creio que herdei de antepassados indígenas do Peru. Mas também tem português no meio, italiano, espanhol. Sou, hum… Moreno? Não pode. O enfermeiro dá fim às minhas inquietações raciais.
– Põe branco.
Lá vai o branco fazer xixi no potinho. Leva o branco para tirar sangue. Bota o branco na balança. Estou um pouco abaixo do peso. Sempre fui seco de carnes e enxuto de rosto. Explico que mudei minha dieta recentemente. Sou um (quase) vegetariano. Evito comer carnes desde que li o debate filosófico A Vida dos Animais, do escritor sul-africano J.M. Coetzee, e de assistir ao documentário A Carne é Fraca, do Instituto Nina Rosa, que revela a rotina grotesca dos criadouros. Seguimos com os exames. Tiro a camisa e me deito em uma das camas.
– Tienes un latido en la panza.
Latido? Sim, a batida do coração, em espanhol. Agora essa. Ele chama outra enfermeira para conferir o meu pulso deslocado. Ela encosta o estetoscópio e ouve claramente a batida do meu coração (na barriga!). Me tranqüiliza em seguida com um “isso é comum nas pessoas magras”. Vou para casa com o coração no estômago. Dois dias depois, recebo uma chamada confirmando minha participação no estudo. Sangue bom.
Às 6 e meia da manhã desligo o despertador e inicio a lenta despedida do ninho. O inverno chegou à Catalunha. Lá fora ainda está escuro. Tenho de chegar no hospital às 7 horas, em jejum. Pego uma sacola onde separei um pijama, escova e pasta de dentes, um livro e uma revista. O livro é o que estava na cabeceira: Relatos del Viejo Antonio, apanhado de lendas e histórias indígenas mexicanas recolhidas pelo Subcomandante Marcos, líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Com a vantagem de ser vizinho do hospital, chego antes das 7h. Minha primeira tarefa é dar uma amostra de urina, para provar que não tomei nenhuma droga nos últimos quinze dias, álcool incluído. Colocam um cateter no braço esquerdo, para tirar amostras de sangue várias vezes ao dia. No peito, colam três eletrodos, ligados a um pequeno aparelho que levo preso na cintura. É o Holter, que fará registros de eletrocardiograma durante 24 horas. Passamos para a sessão de peluqueria (“cabeleireiro”), como dizem no CIM. É quando fixam 19 eletrodos na minha cabeça, com auxílio de cola e um secador de cabelos. Cada eletrodo tem um cabo colorido com um plugue na ponta.
Estréio meu novo penteado no refeitório. São 9 e meia. Tomo um café da manhã rápido e frugal: iogurte, duas torradas e geléia de pêssego, ou presunto. Peço manteiga. Não pode, todos os alimentos são previamente estudados para não reagirem com o fármaco. Rejeito as fatias de presunto por conta da minha dieta quase vegetariana.
Vamos para o aquário. Eu, a psicóloga e o pesquisador brasileiro. Os dois irão monitorar meu cérebro durante todo o dia. Depois de sentar na poltrona, os cabos coloridos da minha cabeça são plugados na “matrix”, apelido que inventei para o aparelho à minha direita, que faz a conexão com o computador, do outro lado do vidro.
É hora de tomar as pílulas. São cápsulas bicolores, azul e verde. Normalmente, a ayahuasca é servida como uma infusão densa. No estudo, eles preferiram o formato das cápsulas, para que o placebo seja mais convincente. Seria mais difícil disfarçar o forte gosto da ayahuasca em seu estado líquido. Além disso, cai para cerca de 10% a probabilidade de vômito, comum nos rituais com a bebida. Uma das principais substâncias alucinógenas presente na ayahuasca é a N-dimetiltriptamina (DMT). A quantidade de DMT distribuída nas cápsulas é proporcional ao peso do voluntário: 0,75mg de DMT/kg. No meu caso, são treze cápsulas.
No primeiro dia, não há nenhuma substância alucinógena dentro das cápsulas. Mas são treze, e odeio tomar pílulas. Elas sempre param na garganta. Engulo uma a uma, com pequenos tragos de água. Como era de se esperar, não bate nada. Só um sono violento, que vai me acompanhar durante todo o tedioso dia-placebo. Cochilo durante os registros do eletroencefalograma e, mais de uma vez, a psicóloga Eva bate no vidro do aquário para me acordar. O eletro se repete várias vezes. É muito simples. Basta ficar três minutos de olhos fechados no escuro. Enquanto isso, eles analisam minhas ondas cerebrais no computador.
Há duas provas de atenção visual. Botam um pequeno monitor na minha frente. Primeiro aparece um tabuleiro xadrez, branco e preto, com um ponto azul no centro. Os quadrados mudam de branco para preto, alternadamente. Tenho de fixar a atenção no pontinho azul por alguns segundos. A imagem é tosca, me lembra os primeiros computadores que vi na infância, com letras verdes luminosas. Apelido a prova de “Atari”.
O próximo teste tem imagens “neutras, agradáveis e muito agradáveis”, avisa Eva. É uma seqüência de fotos. Só posso piscar entre uma imagem e outra, quando a tela fica cinza por alguns segundos. Começa. Um bebê, um homem alimentando uma girafa (neutra?), uma máquina de lavar, uma lâmpada. Cena erótica de sexo oral, não é explícita, mas deve ser considerada “muito agradável”. E se eu tiver uma ereção, aparece no computador? Um astronauta, uma vaca, cogumelos, pôr-do-sol, outra mulher, com os peitos de fora. Não posso piscar. Impossível não lembrar de A Laranja Mecânica. Espero que não toquem a Nona, de Beethoven. Um martelo, um caminhão, mais mulheres peladas, flores, um casal andando a cavalo numa praia deserta. Será a cena final de Planeta dos Macacos?
De meia em meia hora, passo pelas mesmas etapas. Uma máquina, no meu lado esquerdo, mede a pressão arterial. Um enfermeiro tira minha temperatura. Há também a pupilometria, feita com uma câmera fotográfica especial, que mede o diâmetro da minha pupila. Passo o dia à base de torradas com geléia de pêssego. Faço uma refeição de verdade somente às 8 da noite. Peixe com legumes, nada mal. No refeitório, divido a mesa com voluntários de outro estudo. Um deles trouxe um playstation para passar o tempo. A televisão está ligada num desenho da Pantera Cor-de-rosa. O tema de Henry Mancini dá um tom pitoresco ao nosso jantar.
Sete dias depois, volto ao hospital. Xixi no potinho, veia aberta, Holter no peito e peluqueria. No café da manhã, abro uma exceção (da qual me arrependo mais tarde) e traço as fatias de presunto. Tenho medo de passar fome, como no dia-placebo. O voluntário número 13 está pronto. 11h. Recebo as treze cápsulas. Coloco a primeira na boca. Que girem a roleta! Xi, o gosto é bem diferente do placebo.
Espero a onda que vai me levar. Calmaria no horizonte. De meia em meia hora, devo preencher um pequeno questionário para avaliar a intensidade, entre mínimo e máximo, dos seguintes itens: “efeitos psicológicos”, “efeitos físicos”, “efeitos visuais”, “efeitos sonoros”, “estou mareado”, “gosta do fármaco?”. Nos primeiros vinte minutos, dou “mínimo” para quase tudo. Meus arrotos, no entanto, deixam claro que o acaso havia me presenteado com ayahuasca.
Devagarzinho, uma moleza sobe pela espinha. A fala fica débil. A audição parece o mais agudo dos sentidos. Conforme o corpo relaxa, é difícil encontrar uma posição confortável. Meu quadril desliza, vou afundando até quase sair da poltrona. Volto para trás. Essa seqüência de movimentos se repete várias vezes. A mente acelera, o número de sinapses entra em progressão geométrica. Apagam a luz. É hora dos três minutos de eletro. Fecho os olhos. No escuro, a viagem é outra. Surgem imagens bem definidas, como no cinema. Visualizo os monstros mecânicos do Matrix em miniatura. Eles mexem na minha cabeça. Sinto os eletrodos se movendo debaixo do meu cabelo. Começo a me sentir enjoado. Tento mudar de canal interno e esquecer o filme.
– Relaxe o maxilar.
É a voz de Eva, do outro lado do vidro. Uau, estou com as mandíbulas totalmente travadas. Como ela sabia? Finalmente, acabam os três minutos. Hora de tirar o sangue. Fico meio apreensivo. Viro o rosto e a coisa flui. Mentalizo: sai sanguinho, sai sanguinho… Mede pressão, xixi no potinho, termômetro debaixo do braço. Na minha inquietude corporal, acabo quebrando o termômetro. Trazem outro. Entra e sai de enfermeiros. Falo em português com Rafael Santos e em espanhol com os demais. Entre eles, falam catalão e espanhol, sempre baixinho, como se estivéssemos numa igreja. Todo esse latim se mistura. Parece que ligaram um efeito de eco no meu ouvido.
É a vez do Atari. Estou com medo de passar mal. Já senti vontade de vomitar. Para minha surpresa, não tenho nenhum problema com o xadrez maluco e a seqüência de imagens à la Laranja mecânica. A onda baixa. Assobio e faço barulhinhos estalando a língua no céu da boca. É como se estivesse dentro de uma gruta. O pesquisador brasileiro assume o comando das operações. Como velhos amigos, conversamos sobre rock dos anos 60. Ele curte Cream. Não paro de pensar nas capas psicodélicas do grupo inglês. Devo ser mesmo um bicho grilo anacrônico, incorrigível. Cream, essa é a palavra! Cream, fico repetindo. Enquanto papeamos, ele executa as tarefas, pressão, temperatura. Acho tudo engraçado. Ele diz que, quando toma ayahuasca, vê as coisas com uma textura plástica. É isso! Plástico, essa é a palavra! Caio na gargalhada. Ele está usando uma camiseta com uma pintura do cipó. Sua mulher que fez. Ela é arquiteta, ele me diz.
– E a sua mulher, o que faz?
Não quero entrar numa conversa burocrática, então respondo a primeira coisa que me vem à cabeça:
– Ela faz um cuscuz maravilhoso.
– É mesmo?
– Podes crer.
– Sabe, eu não gosto muito de cuscuz.
– Sério?!
– Gosto, mas não é assim… grande coisa.
Então vem a piada pronta:
– É que você nunca comeu o cuscuz da minha mulher…
E quá, quá, quá, quá! Ficamos duas horas falando sobre cuscuz. Ele gosta de comer cuscuz com geléia. Geléia, essa é a palavra! Não consigo parar de rir, as lágrimas escorrem pelos cantos dos olhos e embaçam a lente da câmera da pupilometria. Enfim, ele consegue medir o diâmetro da minha pupila. Está quase um centímetro maior. Ele mostra a foto digital na tela da câmera. É impressionante. Fecho os olhos e visualizo astronautas com roupas fluorescentes, mexendo na minha cabeça. Chego à conclusão de que somos macacos astronautas. Vejo vacas com corpo de gente, como nas propagandas de iogurte para crianças. Elas têm o corpo azul e rosa, rebolam, estão numa fábrica de produtos lácteos. Tenho vontade de mugir. Então começo, baixinho: “muuuuu”… Percebo que estou passando dos limites. O estômago começa a revirar. A ânsia de vômito vem mais forte. Há um balde ao lado do meu pé. É para isso mesmo. Sei que posso vomitar, mas a instrução é tentar segurar ao máximo, pois os pesquisadores precisam dos dados da quantidade de DMT no meu sangue.
– Rafael, estou passando mal. Acho que vou vomitar.
– Contar uma piada ajuda?
Ele conta piadas de pintinho.
– Sabe a do pintinho caipira? Pirrr.
É a primeira de uma série de piadas sem graça das mais engraçadas. Salvo pelos pintinhos.
– Sabe a do pintinho de um pé só? Foi ciscar, caiu.
Não acho graça. A piada me lembra meu primo Sacha, que anda de cadeira de rodas. Temos quase a mesma idade. Recordo da gente na infância, de como ele tinha de ficar de fora de muitas brincadeiras. As lágrimas mudam de sentido. Fico murmurando “Sacha, Sacha…”, peço perdão. Uma tristeza puxa a outra. Lembro de uma amiga que foi abandonada pelo marido. Aonde vai o amor quando acaba? Essa pergunta fica martelando, martelando, e nada de resposta. Enxugo as lágrimas e, aos poucos, me sinto melhor, num estado de serenidade, quase meditativo.
Hora da bóia. Me desplugam da “matrix”. Vou sozinho para o refeitório. Desisto do presunto. Abro o pacotinho das torradas e tento comer uma beirinha. Não consigo, falta apetite. Colocam sobre a mesa um questionário de mais de 160 perguntas, para que eu responda enquanto como. Então, uma voz anuncia a melhor surpresa do dia: “alguém veio te visitar”. É minha mulher. Ela ilumina o ambiente com seu sorriso lindo de sempre. Traz uma flor improvisada, que ela mesma fez com cartolina. Estou no céu. Conto minha dúvida sobre o fim do amor. Ela tenta me ajudar.
– Ué, quando acaba, acaba. Não vai para lugar nenhum.
Dou minhas torradas para ela, que se diverte com a batelada de perguntas que tenho para responder. É só fazer “x”, falso e verdadeiro, múltipla escolha, mas mal tenho forças para segurar a caneta. “Você se sente mais popular?” (risos), “está relaxado?”, “está feliz?”, “gostaria de ficar nesse estado para sempre?”, “tem algum tipo de alucinação?”, “vê desenhos geométricos?”, “é difícil responder este questionário?”. Sem dúvida.
Fim da hora do almoço. Devo voltar ao aquário. Minha mulher vai embora e leva meu ânimo. Sinto o cansaço de mais de quatro horas de estado alterado. Não passa… Os pesquisadores pedem mais agilidade nas respostas, estamos atrasados. O clima fica um pouco tenso. Só posso tomar a segunda dose depois de terminar o questionário. 140, 141, 142, não tem fim. Melhor assim, não tenho a menor vontade de tomar mais nada. Já estou legal. 15h. Rafael e Eva entram no aquário. Estou na última página. Tenho de tomar a segunda dose, se não a história acaba ali. Continuo ou não? Eles reafirmam que há liberdade para sair do estudo a qualquer momento sem dar nenhuma explicação. A opção é minha. Respiro fundo.
– Pues, venga!
Rafael traz mais treze cápsulas. Basta pôr a primeira na mão e meu mais novo olfato de sommelier deflagra: é ayahuasca. Levo mais tempo para engolir. Medo. Três minutos no escuro. O medo mata o amor. A pergunta não pára de martelar. Aonde vai o amor quando acaba? Lembro de uma das lendas mexicanas do livro do viejo Antonio. A história das perguntas. Um deus com duas caras que quer saber qual é a origem do mundo. Uma faz uma pergunta, e a outra responde com outra pergunta. E assim o deus começa a se movimentar. A pergunta move. Tudo fica claro. Não sei aonde vai o amor quando acaba, mas, seguramente, onde ele acaba começa o ódio. É isso, o deus de duas caras, a cobra que morde o próprio rabo. Amor e ódio. Lembro das imagens do conflito de Oaxaca, que estavam em todos os noticiários naquela semana. Minha mente se transforma num pára-raio de desgraças. Sinto uma conexão com o universo, e a coisa está mal. Bombas sobre o Líbano, negociações com o ETA. São os três minutos mais longos da minha vida.
– Me mareo, me mareo.
– Não dá para falar agora.
– Conta uma piada, pelo amor de Deus!
Silêncio. Alcanço o balde a tempo e vomito pela primeira vez. Tento me acalmar. Rafael está do meu lado. Vamos tentar o eletro de novo. Ele volta para o computador. Tudo escuro. Parece que estou afundando numa areia movediça.
– Rafael, dá a tua mão.
– O quê?
– Cara, dá a tua mão. É sério.
Ele volta, acende a luz e se agacha perto de mim. Seguro a sua mão. É um alívio poder tocar outra pessoa. O contato humano me traz de volta. Começo a chorar. Choro como uma criança perdida no supermercado. Mais vômitos. Jorra. Eles têm de esvaziar o balde três ou quatro vezes. De onde vem tanto líquido? Não comi quase nada o dia inteiro e só tomei dois copos de água. Faço um esforço para não lembrar das fatias de porco cozido do café da manhã. Meu olfato está tão aguçado que, quando tenho de preencher o questionário de mínimo e máximo (no qual avalio quase todos os efeitos no máximo), posso sentir de longe o cheiro da tinta da caneta.
Rafael faz menção de iniciar a prova de atenção visual. Olho para o monitor do “Atari”, no canto do quarto, e digo que não dá. Ele não insiste. Máquinas, elas não sossegam. Mede pressão. Escuto o barulho dos escapamentos dos carros lá fora. Tira sangue. Imagino a fumaça. Vira uma sinfonia maluca. Também somos máquinas. The Man Machine, era isso que o Kraftwerk queria nos avisar? Plástico por todos os lados, o saco de lixo, os copos de água, a embalagem das torradas, tudo é feito de plástico. Perfume. Querem nos enganar com perfume para não mexer na merda. O homem é podre. Começo a vomitar de novo.
– Me ajuda, Rafael.
– Mas o que posso fazer para te ajudar? Você sabe que a substância tem um tempo de ação, vai passar. É preciso ter paciência.
– Me ajuda.
– O que posso fazer para te ajudar?
– Chama minha mulher.
– O que é isso? Tem certeza? Esquece a pesquisa. O importante agora é você ficar bem.
Parece que vou perder a razão de tanta lucidez. Enlouqueci? Jogo a toalha. Como vou voltar para casa assim?
– Chama minha mulher.
– Pensa bem. Tem certeza?
Sobe um calor infernal. Nunca havia sentido isso antes. Minha pele queima. Lembro do apocalipse. A próxima vez que Deus destruir a terra será com fogo, minha formação cristã se mistura com imagens da destruição do World Trade Center e dos bombardeios no Iraque. Labaredas, bombeiros, corpos carbonizados. Tiro os sapatos e as meias num movimento brusco.
– Vou tirar a roupa.
– Calma, Peri. Você está num hospital, tem enfermeiras aí.
Chego a abaixar um pouco a calça, mas me dou conta de que estou cheio de cabos pelo corpo, a veia aberta.
– Acho que vou morrer.
– Vai nada. Já ligamos o ar condicionado.
Começa a esfriar. Estou esgotado. Entram muitos enfermeiros na sala. A luz da luminária fica intensa. Parece que estou dentro de uma foto feita num dia de sol, com o diafragma totalmente aberto. Tudo é vaidade. O que levamos dessa vida, afinal? Caixão não tem gaveta. Querem me transferir para uma cama no ambulatório. Tentam me levantar da poltrona, mas não consigo me mover. Então, eles puxam a poltrona daqui e dali e a transformam num tipo de cama. Está muito frio e branco. Eles não param de reclinar o assento, perguntam se estou cômodo. Não falo mais nada. Tenho aflição de perder meu corpo físico, um medo terrível da imobilidade. Paletó de madeira. Imagino que todos aqueles enfermeiros estão me velando. Busco a imagem da minha avó, que morreu quando eu era criança. A lembrança não ajuda, estou só. Nascemos e morremos sós.
Desperto do transe com um médico ao lado. Ele me dá um remédio para “acalmar o estômago”. Conversamos sobre a nossa cegueira coletiva por idéias de sucesso individual. Já posso levantar. Ele me ajuda a caminhar até uma das camas do ambulatório. 20h. Estou de volta ao que chamamos de realidade, esse “minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida”, como descreve Aldous Huxley em As Portas da Percepção, de 1956. No relato de sua primeira viagem de mescalina (um alucinógeno derivado do cacto peiote), o escritor inglês defende a idéia de que, normalmente, o nosso cérebro age como uma válvula redutora da torrente de informações do mundo exterior e interior. Sem essa redução, chegaríamos a um estado de onisciência. Os alucinógenos podem desativar esse filtro do ego por um tempo. Abertas as “portas da percepção”, Huxley não dá muita importância às visões desenhadas pela imaginação (no meu caso, vacas, explosões e astronautas) e se deixa levar pela sensação do que chama de “presente perpétuo criado por um apocalipse em contínua transformação”. Esse nível de percepção, no entanto, não se ajusta ao mundo prático da sobrevivência.
Adormeço no meu diminuto infinito e desperto com a voz de Rafael Santos. Falamos sobre o que aconteceu no dia e até ficamos de marcar um cuscuz. Ele diz que, durante meu “branco”, tentou falar comigo e eu não respondia. Segundo ele, posso ter passado por uma “near death experience“. Ou talvez tenha apenas dormido um pouco, cansado de tanto refluxo — foram 40 minutos de vômitos e lágrimas, o auge da bad trip.
Ele também me conta o significado da palavra ayahuasca. É um termo quéchua, língua falada nos altiplanos andinos, cuja etimologia é aya (alma, espírito morto) e waska (corda, trepadeira), em referência ao cipó que é usado na preparação da bebida. Poderia ser entendida como “trepadeira das almas”. Ou “trepadeira dos mortos”.
Um texto de informação ao voluntário, que recebi no primeiro dia, indicava os possíveis efeitos adversos associados ao consumo de alucinógenos. Entre eles estava el mal viaje, com “transtorno de ansiedade e possível quadro psicótico com despersonalização”. Mudanças na percepção visual, olfativa, táctil e auditiva e alterações de tempo também estavam previstos no informativo, assim como, no da ayahuasca, a probabilidade de náuseas e vômitos.
No dia seguinte, passo por uma entrevista com uma das enfermeiras e avalio, afinal, que a experiência foi positiva. Estou disposto a tomar a próxima dose, dali a duas semanas. Depois de alguns dias, recebo um e-mail do Rafael. Ele diz que minha participação no estudo foi cancelada. Como vomitei demais, não há como aproveitar minhas amostras de sangue.
Na data marcada para buscar meu cheque, conheço Jordi Ribas, o coordenador do projeto. Ele lamenta minha saída do estudo. O objetivo específico da pesquisa que participei, diz ele, é descobrir se, depois de tomar a segunda dose da ayahuasca, os efeitos são mais fortes ou mais fracos. Ou seja, se o fármaco causa ou não tolerância. Não há nenhuma pretensão em averiguar um possível uso terapêutico. Ele começou a pesquisar o alucinógeno porque estava interessado no seu mecanismo de ação no sistema nervoso central. Em 2003, defendeu a tese “Human Pharmacology of Ayahuasca” na Universidade Autônoma de Barcelona. Em um dos estudos, uma análise tomográfica mostrou que o alucinógeno ativa áreas do cérebro ligadas ao processamento de informações emocionais, como o sistema límbico. Daí se pode deduzir a presença de fortes mudanças emocionais nos voluntários. Uma diminuição das chamadas ondas lentas, delta e teta, provoca um efeito estimulante da atividade cerebral, o que aumenta a velocidade do pensamento. Segundo ele, a experiência também tem um “componente estressante”, com o aumento da liberação de cortisol. Geralmente, os efeitos duram de quatro a seis horas.
Duas horas da manhã. Um rato tenta cruzar a fronteira do apartamento de um amigo para roubar pão. Ele vive no bairro Gótico, no centro de Barcelona, e explica que há muitos deles nessa região.
– É incrível. Eles conseguem passar por debaixo da porta. É como se não tivessem esqueleto.
Ele quer ser o próximo voluntário.