ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Vou de escada
De Viena ao Rio de Janeiro, os melhores degraus do mundo
Bernardo Esteves | Edição 30, Março 2009
Procedimento de rotina num hospital do Rio de Janeiro: transferida para a maca, a paciente de 79 anos deixa o quarto e, através dos corredores, é empurrada até ao centro cirúrgico. Tudo vai bem, até ela se dar conta do que está a ponto de acontecer: “Alto lá!” Já sentada na maca, dona Maria Theresa espeta o dedo no ar: “De elevador eu não vou!”
Não houve enfermeiro que a convencesse a embarcar. A cirurgia só pôde ser realizada depois que a paciente recebeu autorização para descer da maca e, de touca e avental, completar o trajeto pela escada.
Maria Theresa Pauletto se lembra muito bem da última vez que pôs o pé num elevador. Sinônimo de racionalidade e conforto, a geringonça que revolucionou a paisagem urbana a partir do século XIX só lhe trouxe angústia e dissabor. A gota d’água foi uma ocorrência especialmente claustrofóbica por volta de 1970. Rodeada de estranhos, ela se apertava num cubículo quando, a meio caminho, perdeu o ar. Sua respiração travou. Fechou. Tamanho foi o horror que, na primeira parada, dona Maria Theresa saiu em disparada e irrompeu sem cerimônia no apartamento de uma desconhecida que trancava a porta de casa antes de sair. Entre tentar superar o trauma e fracassar na tentativa, ela preferiu cortar o mal pela raiz.
Pouco importa se o programa é uma recepção no Jockey Club ou um chá beneficente no Copacabana Palace: dona Maria Theresa se tornou impermeável à gentileza de ascensoristas, recepcionistas, porteiros e outros funcionários que insistem em arrastá-la para a cabinezinha. Igualmente sem alternativa, seu marido, médico aposentado da Aeronáutica, acostumou-se a separar-se da esposa no saguão para reencontrá-la no andar de destino uns minutos depois.
Desde que foi adotado, há quase quarenta anos, o parti-pris de dona Maria Theresa praticamente não sofreu abalos. Pelas contas, houve apenas quatro viagens nesse período, uma delas para subir a um jantar oferecido ao marido na Avenida Atlântica, na cobertura do então hotel Méridien. A concessão exigiu uma logística intrincada. “Houve toda uma negociação”, ela conta. “Eu era a única passageira e o elevador foi direto: 38 andares sem escalas.”
Seu feito mais recente teve lugar no ano passado, quando ela avançou, degrau por degrau, até o salão de festas do hotel Marina, no Leblon, para a comemoração dos cinquenta anos de formatura da turma do dr. Milton. “Ele não queria que eu subisse, mas eu ficaria com a moral abalada se voltasse para casa. E olha que era traje a rigor eu estava de longo e salto alto!” Chegou impecável ao topo dos 26 andares.
Sapatos de salto são incômodos, admite, mas não a fazem abrir mão de uma escada. O segredo da subida sem traumas está menos no calçado e mais no fôlego. “Você precisa subir sempre no mesmo passo, cadenciadamente. Eu não chego ofegante porque mantenho o ritmo e controlo a respiração.” Dona Maria Theresa fala com a autoridade de quem nunca se acidentou numa escada nem sentou no degrau para desafogar algum aperto no coração.
A fobia e a experiência fizeram dela uma perita em degraus. “Eu poderia ser assessora do Corpo de Bombeiros”, diz ela, que traz na ponta da língua a receita da escadaria ideal. “Precisa ter degraus baixos e de altura uniforme, senão cansa muito e dá insegurança. Sem falar em corrimão e iluminação – isso é o básico.”
Sua fórmula traduz empiricamente aspectos essenciais da norma NBR 9050, estabelecida em 2004 pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, a ABNT, para regulamentar acessos a prédios e equipamentos urbanos. O espelho, isto é, a altura do degrau, “deve ser inferior a 0,18 m e superior a 0,16 m”, prescreve a norma, e suas dimensões “devem ser constantes em toda a escada”.
Um detalhe foge à alçada da ABNT: “A escada perfeita não pode prescindir de um visual bonito”, afirma dona Maria Theresa. “Se eu fosse arquiteta, começaria todos os meus projetos pela escada.” Seu cânone inclui a escadaria do Hotel Imperial, em Viena, na qual a própria estátua do imperador Francisco José dá as boas-vindas aos que descansam entre os dois lances. Outro hit são as escadas duplas que se trançam em espiral no castelo de Chambord, na França, projeto que alguns atribuem ao gênio de Leonardo da Vinci.
O Rio também tem suas glórias. Segundo dona Maria Theresa, o antigo Ministério da Fazenda, na avenida Antônio Carlos, no Centro, possui “a escadaria mais suntuosa da cidade”. Outros dois exemplares que ela recomenda podem ser admirados no Centro Cultural Justiça Federal, na avenida Rio Branco, e na Casa de Arte e Cultura Julieta de Serpa, na Praia do Flamengo.
Foi também no centro da cidade, na rua da Quitanda, que dona Maria Theresa conheceu a pior escada de sua vida. “Os degraus eram altos e em leque, desses que afinam de um lado nas curvas. Obviamente não tinha iluminação, e que dirá corrimão.” Não era uma escada. Era uma ignomínia. Levava ao consultório do seu dentista.
Testemunha de importantes avanços arquitetônicos e legislativos, ela não acalenta saudosismos. “Antigamente as escadas começavam na garagem e você era obrigado a ir se escorando na parede, às vezes até nos degraus.” A universalização do corrimão representou para ela uma fabulosa conquista da civilização, mas o supremo avanço veio com os sensores fotoelétricos, que acendem e apagam as luzes ao detectar movimento e evitam que as pessoas rolem escada abaixo.
A paixão por escadas deu a dona Maria Theresa uma saúde de ferro. Amigos e amigas mais jovens que visitam sua casa, numa rua arborizada do Grajaú, queixam-se dos trinta degraus que separam o portão do primeiro piso. E são outros dezoito até o 2º andar, onde ficam os quartos.
Como nada é perfeito, o hábito saudável tem uma contrapartida. “Andar de escada faz bem para o coração, mas atrapalha os joelhos”, ela admite. Para amenizar problemas de articulação, os médicos lhe pedem que evite os degraus. Hoje ela ainda desobedece, mas um dia, imagina, terá de renunciar às suas convicções. Está começando a se preocupar.