ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
A voz da ex-invisível
A carioca que se tornou vice-primeira-dama da Pensilvânia
João Batista Jr. | Edição 180, Setembro 2021
Quando o político John Fetterman, do Partido Democrata, venceu em 2018 as eleições para vice-governador da Pensilvânia, sua mulher tomou uma decisão. A carioca Gisele Barreto Fetterman resolveu dizer ao marido que preferia não se mudar para a residência oficial, pois achava o lugar impessoal demais. Além disso, se a família permanecesse em sua própria casa, o estado poderia economizar boa parte dos 450 mil dólares gastos anualmente na manutenção da residência oficial de três andares e 2,4 mil m2. O vice-governador, a mulher e os três filhos – Grace, Karl e August – continuaram a viver em sua casa na cidade de Braddock, a vinte minutos da capital.
A decisão causou estranheza entre os pensilvanianos, mas outra proposta de Gisele teve impacto ainda maior. No verão de 2019, ela resolveu liberar a piscina de 110 m2 da residência oficial para crianças e adolescentes carentes aprenderem a nadar. Houve uma grita no Partido Republicano, mas a iniciativa, feita com o apoio de creches e entidades assistenciais, vingou. “Acesso à piscina nos Estados Unidos, sobretudo no verão, é um dos reflexos da diferença de classes. Os mais simples não têm esse prazer”, diz ela. Desde então, centenas de crianças fazem uso da piscina sempre que chega o verão.
A atividade de Gisele como vice-primeira-dama está longe de passar em branco, e nem sempre é vista com bons olhos. Em 2018, Scott Wagner, o rival republicano de John Fetterman na corrida para o governo do estado, disse que a mulher do seu concorrente era uma “ilegal”, ou seja, uma pessoa que vive nos Estados Unidos sem ter autorização. Não era verdade, pois Gisele tem cidadania norte-americana desde 2009. A fala de Wagner, contudo, serviu para atiçar os fanáticos do ex-presidente, que a perturbam até hoje. Ao menos uma vez por semana, ela recebe uma carta dizendo para que volte ao seu país de origem. Também a insultam, chamando-a de “macaca”. Quando recebe alguma ameaça, Gisele a encaminha ao Departamento de Segurança Pública do estado.
Em outubro do ano passado, a brasileira de pele amendoada e cabelos encaracolados ganhou as manchetes dos Estados Unidos e do mundo ao ser alvo de ataques racistas quando comprava kiwi em um mercado. “Ali está aquela negra casada com Fetterman. Você não pertence a este país. Ninguém te quer aqui”, disse uma mulher de meia-idade, que a chamou de “ladra”. Parte do ataque foi filmado e postado nas redes sociais. “Eu tenho acesso à segurança, sei dos meus direitos e estou legalizada. Mas, na hora do ataque, todas as feridas se abrem. Eu me senti uma garota sem amparo e com medo”, conta Gisele. O tiro da mulher saiu pela culatra: acabou expandindo ainda mais a voz da vice-primeira-dama, que agora, semana sim, outra também, é convidada para disputar uma vaga de deputada pelo Partido Democrata.
Gisele descarta a ideia. Mas não deixa de ter alguma atividade política. Toda semana visita em média três cidades para fazer reuniões em diretórios do partido em prol de John Fetterman, que está na disputa da indicação dos democratas para o Senado. “Conseguimos arrecadar 7,5 milhões de dólares nos últimos meses”, ela conta. As primárias só vão acontecer em maio do ano que vem, porém os trabalhos já seguem intensos. “João”, como a mulher se refere ao marido, tem chances de ser o nome do partido para as eleições e vencê-las. “Mas as disputas na Pensilvânia são muito mais ferozes”, diz.
Gisele se mudou com a mãe e o irmão para os Estados Unidos quando tinha 7 anos. Após ser assaltada sete vezes no Rio de Janeiro, a nutricionista Ester Barreto vendeu o apartamento no bairro da Tijuca e foi tentar a vida em Nova York com os filhos. O começo não foi fácil. Ester fez expediente como faxineira, e Gisele, aos 8 anos, trabalhou embalando jornais para assinantes. Aos 13 anos, se empregou em uma sorveteria. Todo dia antes de ir para a escola, a mãe dizia à garota: “Seja invisível.”
Para ser invisível, Gisele não entrava em conflito com ninguém. Abaixava a cabeça e até evitava praticar esportes. “Morria de medo de me machucar e precisar ir para o hospital, onde descobririam tudo e seríamos deportados. Eu passei muito tempo sobrevivendo, então meus sonhos não eram de longo prazo. Vivia apenas o momento e ponto final.”
Em Nova York, depois de se formar em nutrição, Gisele começou a fazer trabalho voluntário, levando alimentos às pessoas carentes. Em 2007, se interessou por uma reportagem sobre como Braddock e seu prefeito, John Fetterman, tinham reduzido o número de crimes na cidade, cuja população havia passado de 20 mil para 2,5 mil habitantes devido ao declínio da indústria do aço. Gisele resolveu enviar uma carta à Prefeitura de Braddock, dizendo ter interesse em conhecer os programas sociais da cidade. “Daí, um dia recebi uma ligação do João.” Os dois se encontraram, acabaram engatando um romance e se casaram no ano seguinte.
O casal chama atenção quando está junto. Gisele, de 39 anos, pesa 61 kg e mede 1,75 metro. John, de 51 anos, pesa 145 kg, mede 2,07 metros e tem várias tatuagens, inclusive com o CEP de Braddock e as datas em que ocorreram homicídios na cidade. Em municípios distantes de outros estados, já aconteceu de perguntarem a Gisele se ela era cantora ou artista de telenovela latina por andar com “aquele segurança” 24 horas por dia. “Eu dou risada, pois ele é apenas o meu marido.”
Em 2012, Gisele abriu em Braddock uma free store, onde as pessoas podem pegar o que quiser de graça. O estoque de roupas, cobertores, tênis e pratos provém de doações de voluntários de todo o país. Ela também criou uma food rescue, para aproveitar os alimentos que mercados e restaurantes jogariam fora. O sucesso dos projetos levou Gisele e o marido a serem entrevistados pelo chef e apresentador de tevê Anthony Bourdain, em 2017. O programa na CNN também mostrou os três comendo um filé de picão-verde – peixe do Norte da América – e pão artesanal.
Gisele vê com apreensão a tentativa de brasileiros de entrarem clandestinamente nos Estados Unidos pela fronteira do México. “Muitos entregam suas vidas aos coiotes, esses homens que fazem as travessias, e muita coisa perigosa pode acontecer. Mas penso ser um direito de todo mundo tentar um futuro melhor em outro lugar, como fez a minha mãe.” Há dois anos ela não visita o Brasil. Por causa da pandemia não pôde comparecer ao enterro de dois tios que morreram de Covid-19.
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