O telefone celular está para David Brazil como a caveira para Hamlet: é interlocutor de suas dúvidas existenciais (a escolha de uma camiseta), angústias (o alisamento capilar que deu errado) e intimidades (uma ida ao banheiro – momento em que ele costuma proferir longos monólogos no trono) FOTO: BRUNO POPPE_2017
A voz do Brazil
A história do radialista gago mais famoso do país
Roberto Kaz | Edição 133, Outubro 2017
“É o Marcelo, do Real Madrid”, explicou David Brazil, enquanto checava as mensagens no telefone celular. “Marcelo, também tô com saudade”, respondeu, por áudio. “Agora que o Juninho se mudou, não tem mais Barcelona pra mim. É Madri e Paris.” David ouviu mais quatro recados – sobre o corte de uma roupa, um convite para uma parada gay, uma ida a um programa do SBT e uma participação num show – e desa-bafou: “Ai, esse WhatsApp não para. É Marcelo, é costureira, é produção do Silvio Santos, do Porta dos Fundos, do Wesley Safadão. Tô todo lascado, mas assim, com esse país em crise, glória a Deus que tenho trabalho.”
Era a manhã de uma terça-feira recente na sede da FM O Dia, rádio carioca que está para o funk e o pagode como o selo Deutsche Grammophon está para a música clássica (e que, valendo-se da mesma lógica, tem em David Brazil – radialista, promoter e celebridade – o seu maestro Herbert von Karajan). “É minha patroa! A do dinheiro!”, ele gritou, no hall de entrada, ao cruzar com Gigi Carvalho, a dona da rádio. “Gostou do vídeo que Juninho fez pra menina?”, perguntou-lhe, esclarecendo, em seguida, que pedira a Neymar Jr. – o “Juninho” – que gravasse um vídeo para uma conhecida dela. Ouviu que sim e emendou numa conversa sobre um compromisso profissional. Depois se despediu da chefe, de uma recepcionista, uma moça da faxina e um rapaz da segurança, e deixou o edifício, na Barra da Tijuca. Tinha hora marcada no salão de beleza. “Meu cabelo está ficando toin-oin-oin”, justificou. “Depois vou visitar minhas irmãs, e mais tarde vou pra casa fazer amor.”
David Brazil usava seu uniforme rotineiro: camiseta apertada, calça jeans também apertada e uma sandália feminina, da Chanel. Deu partida no carro, uma Land Rover branca, decorada com um adesivo da rádio. Assim que dobrou a primeira esquina, avistou dois homens atravessando a rua. “Peraí, vai mais devagar para eu poder ver vocês melhor”, disse, abaixando o vidro da janela. Os homens o encararam entre o riso e o assombro. David também riu, depois subiu o vidro e pegou uma via expressa, ainda checando o celular.
“Olha o Marcelo de novo”, comentou, ao parar num sinal fechado. Colou o telefone no ouvido, para assegurar-se de que o áudio era publicável. Feita a triagem, apertou o play para que eu o escutasse. “Ah, verdade, né? Agora só tem eu na Espanha”, dizia o jogador, respondendo ao comentário de que Neymar deixara o Barcelona. David retrucou, também por áudio: “Tem você e o meu cheiroso, o Cristiano [Ronaldo]!” Marcelo enviou nova mensagem, dessa vez por texto: “Kkk. Ele se amarra na tua!”
O sinal era demorado, por dar acesso à principal avenida da Barra, permitindo a um ambulante que vendia morangos puxar assunto com o locutor. “Tu tá sumido, hein?”, disse o homem, assim que David abaixou a janela. “Tava viajando”, respondeu o radialista, emendando com uma pergunta: “Tu não tá vendendo mais pano?” O vendedor respondeu que trocara o comércio antigo pelo de frutas, e tentou convencê-lo a levar uma caixa. David recusou, e perguntou-lhe como estava a família. “A pequena tá com 3 meses”, disse o homem. “Então na sexta eu trago uma roupinha pra ela. Tchau. Beijo na sua bunda.”
Dez minutos depois chegava ao salão, num centro comercial no começo da Barra. Cumprimentou Luciano Di Carvalho, que o atende uma vez por semana. “É minha cabeleireira há quinze anos”, explicou, tratando-o com pronome, artigo e substantivo femininos, como faz sempre que fala de si ou de qualquer homem gay do seu círculo de amizades. “Já recebi proposta de vários outros, mas só troco a Luciano quando vou pra Europa.” Sentou-se numa cadeira giratória para fazer hidratação e escova, enquanto uma manicure cuidava de suas unhas. Com a mão que estava livre, filmou a televisão, que transmitia os gols de um jogo do Fluminense. “Eita, que pernudão”, comentou, a respeito de um jogador, e publicou o vídeo no Instagram. Em seguida, ouviu mais um recado no WhatsApp, enviado por uma mulher que lhe pedia emprego. “Se eu souber de alguma coisa eu te falo”, respondeu. “Mas tá difícil, até pra minha irmã eu não tô conseguindo.”
David Brazil é um homem espalhafatoso, de 48 anos, que transita por mundos tão distintos que jamais poderia ser personagem de ficção, por parecer inverossímil demais. Ele é gago – e é radialista. É gay – e é chapa de jogadores de futebol. É nordestino – e personifica, como ninguém, o DNA carioca. Promove festa, grava anúncio de supermercado popular, frequenta sarau de grã-fina, assina coluna em jornal, trabalha em escola de samba, faz amizade com bicheiro, policial, artista, garçom, prefeito, gari, top model, mulher-fruta. É tiete de celebridade – e é tietado como celebridade. Frequenta o círculo íntimo de Neymar, Anitta, Hulk, Susana Vieira, Thiago Silva, Juliana Paes.
David (pronuncia-se Dêividi) mora sozinho num apartamento próprio, de 112 metros quadrados, num condomínio fechado na praia da Barra. A decoração do imóvel segue estilo personalista. Uma edição da revista RG Vogue, com ele na capa, foi enquadrada e colocada no closet. Um quadro pintado em acrílico, em que ele aparece retratado, foi pendurado perto do quarto. Um mosaico de fotos, que reúne 141 imagens da sua vida, foi posto junto da porta de entrada. “Tem eu vestida de Lady Gaga, de Valesca Popozuda, no meu aniversário de 24 anos, no meu primeiro desfile pelo Salgueiro”, comentou, orgulhoso. Seu nome está impresso até no colchão onde dorme. “Foi um presente da Ortobom”, explicou.
Antes de virar Brazil, David foi Francisco David dos Santos, época em que o “David” do nome tinha a pronúncia abrasileirada. Ele nasceu em Jaboatão dos Guararapes, cidade próxima a Recife, mas ainda criança mudou-se com a mãe e os irmãos para a casa da avó, em Campina Grande, na Paraíba. Estudou até a 8ª série, quando passou a vender sacolé e cocada na feira. Também trabalhou como empacotador de farinha, cuidador de criança e faxineiro. Em 1987, aos 18 anos, ganhou de presente uma passagem para o Rio. “Eu limpava o apartamento de um casal de amigos. Eles iam passar férias no Rio, pedi para ir junto”, contou. “Foram de avião. Eu, de busão, Itapemirim, três dias de viagem.” Ao ver o Pão de Açúcar, decidiu que não compraria o bilhete de volta.
Sua primeira residência carioca foi um sobrado em Botafogo, onde morou com outras treze pessoas. Tentou emprego no McDonald’s – “Era o meu sonho” –, mas foi rejeitado por causa da gagueira. Fez bico limpando salão de beleza e revendendo roupas para funcionários de lojas e bancos no Centro da cidade. “Eu comprava calça da Manga Rosa, em Copacabana, e chegava nas agências com a sacola cheia. Era um sucesso.”
Em paralelo, David conseguiu emprego como caixa, primeiro num restaurante de comida natural de Ipanema, depois numa casa de massas e, por fim, numa churrascaria do Leblon, a Buffalo Grill, frequentada pela nata da teledramaturgia no início dos anos 90. “Iam a Cláudia Raia, o Fabio Assunção, o Maurício Mattar, a Cristiana Oliveira, o Alexandre Frota”, enumerou. “E naquela época ninguém tinha celular.” Quando uma celebridade precisava falar com alguém pelo telefone, o único aparelho disponível na casa era o que ficava perto do caixa. “Aí eu fui fazendo amizade.”
Percebendo o traquejo social do funcionário, o patrão, “seu Garrincha”, colocou-o na porta da churrascaria, para fazer as vezes de recepcionista. Foi nessa época, em 1992, que David saiu pela primeira vez numa coluna social, do jornal O Dia. “Era uma foto com a Andrea Veiga, o Leonardo Vieira e a Adriana Esteves”, contou. Teria sido um retrato trivial, não houvesse o fotógrafo perguntado o nome do funcionário que posava entre as celebridades. Francisco David dos Santos pôde então dar a resposta que vinha matutando havia meses (mais especificamente, desde que descobrira que o ator Diogo Vilela se chamava José Carlos Monteiro de Barros). Extirpou o “Francisco” do início e o “Santos” do fim do seu próprio nome, por achá-los masculinos demais. Optou por manter o “David” – mas, a partir daquele momento, com a pronúncia americanizada. De quebra, ainda tascou um “Brazil” para arrematar a obra de arte. “Eu passava todo dia pela loja Yes, Brazil, mas não conseguia comprar nada lá, porque era caro”, contou. “Então peguei pelo menos o nome emprestado.”
Encheu a boca para dizer: “É David Brazil, com z.”
David Brazil costuma aparecer em público vestido de duas formas: com sandália, calça e camiseta; ou sem sandália, calça e camiseta – e, não raro, sem cueca, nas dezenas de vídeos que grava em casa, nu, para o seu perfil no Instagram.
Era justamente sobre o Instagram que ele, o cantor Buchecha e o radialista Dedé Galvão, também da FM O Dia, conversavam no ar, na sede da rádio, numa quarta-feira de agosto. “Tô chateado que não fui convidado para o aniversário da Tatá Werneck”, reclamou David, que usava uma camiseta estampada com o próprio nome. “Eu nem sou amigo dela, mas sou da zoeira. Então fui lá no Instagram da Tatá e falei: ‘Na próxima me convida.’” Buchecha elogiou o perfil do apresentador na rede social, que tem 3,3 milhões de seguidores – bem menos do que um Neymar, porém mais do que um William Bonner. “O teu Instagram é o melhor!”, disse o cantor. Dedé Galvão acrescentou, também no ar: “Pouca gente é tão boa no Instagram quanto o David. Ele sabe quando e o que postar.”
Entrou o intervalo. Antes que David se levantasse, Galvão chamou-o no canto para tentar convencê-lo a criar um aplicativo próprio, aos moldes do Instagram, para competir com o original. “Porra, você tem 3 milhões de seguidores”, argumentou o colega radialista. Depois disse que já tinha até investidor interessado. “Se 10% dessas pessoas pagam 1 dólar por mês para ter conteúdo extra, já é uma grana.” David desconversou e deixou o estúdio. (Mais tarde me diria não ver sentido em cobrar pelos vídeos diários: “Ia ficar uma coisa chata.”)
Do lado de fora, foi abordado por um policial militar chamado Claudio Paulino, frequentador assíduo da rádio. “Pessoal da corporação se amarrou no vídeo, David”, disse Paulino, animado. “Está todo mundo mandando no WhatsApp.” Perguntei do que se tratava. David pegou o celular e mostrou um vídeo de 26 segundos, publicado em seu Instagram, em que ele passa de carro, com a janela aberta, em frente a uma blitz da Polícia Militar. “Me dê uma dura, por favor?”, ele pede a um policial, que ri e o manda circular. “Alô, polícia!”, ele insiste. “Me dê uma dura! Eu sou bandida!”
Guardou o telefone e desceu um lance de escada, seguindo para um pequeno palco onde é gravado o Pagode do Gago – programa ao vivo, semanal, com plateia e banda convidada. Uma moça pediu uma selfie ao lado dele. “David, eu te amo, não sei se você sabe”, disse, abraçando-o. David atendeu ao pedido dela, e de mais uma dezena de pessoas, e cumprimentou os músicos do grupo Pixote, que acabavam de chegar. Depois se sentou com Flavia Costa e Paulão Trukeira, membros da “facção” – um grupo de amigos íntimos que, de tanto serem filmados por David, acabaram virando uma espécie de Turma da Mônica do seu Instagram. Flavia Costa se apresentou: “Eu sou a Flavia Trans. O David inventou esse apelido porque eu tenho voz de trans, mas eu não sou trans.” Explicou que ela e Trukeira estavam acertando os detalhes de uma viagem à ilha caribenha de Curaçau – que David ganhara de graça, com direito a cinco acompanhantes, em troca de divulgação nas redes sociais.
Às 20h40, um anúncio sobre a festa de 20 anos da FM O Dia, “com duas horas de bebida no 0800”, antecedeu o início do Pagode do Gago. David entrou no ar gaguejando. “Eita, coisa rica, boa noite, gente. Tamos atrasados, mas faz parte.” Apresentou o grupo e os dois convidados da noite: o cantor Buchecha e um rapaz chamado Adauto, atendente do Burger King e ex-vendedor de bala no Aeroporto Santos Dumont. “Ele é mais tiete do que eu; tirou selfie com um monte de celebridade.”
O grupo tocou quatro músicas, e David voltou ao comando. Contou que havia quebrado um dente na noite anterior. “Agora virei gago, veado, paraíba e banguela”, brincou, aproveitando para fazer um merchan. “Aí hoje fui no doutor Murilo Bianco, meu dentista. Paguei 2 400 reais num dente novo.” Em seguida inquiriu Adauto sobre quem havia sido a primeira celebridade que o rapaz fotografara. Preta Gil, respondeu o rapaz. A locutora Vivy Tenório, com quem David dividia a atração naquela noite, aproveitou a deixa: “E você, David? Com quantos famosos já fez selfie?” Ele recorreu ao seu acervo internacional: “Com o Justin Bieber. Teve também o Tom Cruise, na churrascaria. Entrei no banheiro, ele estava lá. Eu: Hi. Ele: Hi. Eu: How are you? Ele: Fine. Eu: Bye-bye. Fiz a fina. Tirei a foto e fui embora. Sou bicha família.”
Em 1993, quando ainda trabalhava na Buffalo Grill, David Brazil conheceu o ator Marcos Breda, que estava escalado para interpretar um gago na peça Os Sete Brotinhos, de Flávio Marinho. “A churrascaria apoiava o espetáculo”, contou-me Breda, por telefone. “Eu perguntei ao David se podia observá-lo durante uns dias, para evitar que o personagem caísse na caricatura. A gente ficava conversando, e eu ia reparando no ritmo, na respiração, na forma como ele eeeeeesticava as vogaaaaaais para evitar um tropeço.” Breda acabou deixando a peça antes da estreia, passando o papel ao ator Luiz Carlos Tourinho, já falecido. Ainda assim, a história do professor de gagueira foi prato cheio para a imprensa quando a produção estreou. “Saiu matéria na Veja e no Globo”, contou David. “Também dei entrevista no Jô Soares.”
Dali em diante o nome de David Brazil não saiu mais do colunismo carioca. Em dezembro de 1993, O Globo noticiou que ele havia sido convidado a presidir a Associação Nacional de Gagos, que seria fundada em Mato Grosso. Em maio de 1994, soube-se que ele cantaria Noel Rosa num musical. Em julho, que seu aniversário contaria com a presença do tetracampeão Ricardo Rocha. Em outubro, publicaram que o publicitário Washington Olivetto planejava escalá-lo para um comercial. Houve um dia em que fotos suas saíram em duas colunas do mesmo jornal.
Não demorou para que David fosse convidado a trabalhar como promoter da rede de churrascarias Porcão, que tentava melhorar a imagem. “Eles tinham fama de só receber piranha e jogador de futebol”, explicou, pragmático. “Queriam que eu levasse os ‘globais’.” Em termos práticos, seu ofício consistia em oferecer almoço grátis, tirar foto da celebridade almoçando, emplacar a imagem no jornal. Disse ter penado. “O Boechat falava que nunca ia publicar uma nota sobre um lugar chamado Porcão”, lembrou, referindo-se ao jornalista Ricardo Boechat, que na época editava a coluna Swann, a mais importante da imprensa carioca, no jornal O Globo. Ainda assim, Susana Vieira, Deborah Secco e Carolina Dieckmann começaram a frequentar o local. “Um dia abro o jornal e vejo a foto da Márcia Gabrielle [ex-Miss Brasil], com o nome da churrascaria embaixo”, contou David. “Foi a glória.”
O reconhecimento definitivo veio na forma de uma reportagem publicada no Jornal do Brasil em julho de 1995. O texto começava com uma pergunta algo metafísica: “Quando acaba o Carnaval fica sempre aquela dúvida: para onde vão, durante o resto do ano, as personalidades que aparecem em todas as fotos dos camarotes patrocinados por marcas de cerveja no Sambódromo?” Sugeria então uma gama de respostas possíveis – “boate sofisticada, restaurante francês ou barzinho charmoso” –, antes de vaticinar: “Elas podem ser encontradas na churrascaria Porcão de Ipanema, de segunda a segunda-feira.” O JB mencionava que o rodízio de carnes, “grande ícone brega da família carioca”, passara a ser ponto de encontro dos atores Eri Johnson, Alexia Dechamps e dos jogadores Renato Gaúcho e Sávio. “E a virada fashion do restaurante”, concluía, só fora possível graças ao trabalho de uma pessoa, “o promoter David Brazil”.
Com a fama conquistada, David passou a atuar também em peça de teatro, programa infantil e novela da Globo (geralmente, fazendo pontas). Gravou um disco chamado Rodízio Musical, fez propaganda de telefone celular, posou para fotos com Cristiana Oliveira, Maria Zilda, Paula Lavigne, Paula Burlamaqui. Só n’O Globo ele foi mencionado em 34 notas em 1995 – média de uma citação a cada onze dias. No Jornal do Brasil, protagonizou uma reportagem intitulada “Os nadas que fazem sucesso”, com dicas “para ser um ‘nada’”: “Um bom começo é frequentar o Porcão de Ipanema, ficar amigo do David Brazil e pedir para ele apresentá-lo a Renato Gaúcho, Romário, Alexia Deschamps etc. Logo, logo você terá uma foto sua fixada no quadro de cortiça da casa.”
Foi demais para o jornalista Artur Xexéo, que explodiu de raiva em sua coluna semanal. “O que eu não aguento mais ler nos jornais: que o gago David Brazil está gravando um disco, que o gago David Brazil depilou o corpo para fazer ponta na novelinha da Angélica, que o gago David Brazil jantou com Renato Gaúcho no Porcão, que o gago David Brazil fez qualquer coisa”, desabafou, antes de perguntar: “Afinal, o que é o gago David Brazil?”
Escrever sobre David Brazil acarreta uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem: quase tudo que ele fala é engraçado, ou anárquico, e merece ser anotado. A desvantagem: quase tudo que merece ser anotado acaba parando, antes, em suas redes sociais. O telefone celular – um iPhone 7s plus, com 128 gigabytes de memória e capa que funciona como carregador de bateria – está, para David, como a caveira para Hamlet: é interlocutor de suas dúvidas existenciais (a escolha de uma camiseta), angústias (o alisamento que deu errado) e intimidades (uma ida ao banheiro – momento em que ele costuma proferir longos monólogos no trono).
David publica cerca de cinquenta vídeos por dia no Stories, uma ferramenta do Instagram que apaga todo o conteúdo depois de 24 horas – e que tende, por isso, a ser usada por quem gosta de retratar o prosaico. Alguns dos vídeos são apenas descritivos (ele vê uma tesoura na cozinha e fala: “Olha a tesoura. Que tesoura é essa? Sei lá. Tava na gaveta de carne”). Outros são sarcásticos (ele vai a uma casa onde é obrigado a usar uma capinha higiênica em volta do sapato: “Tu entra assim pra não sujar nada. Muito difícil ser rico. Eu quero minha favela de volta”). Há ainda os vídeos em que ele interage com desconhecidos (vê três garis num caminhão de lixo e grita: “Ei! Eu sou um lixo! Me leva?”), e em que filma homens que considera vistosos (nesses, a câmera costuma alternar entre o rosto, a bunda e o volume frontal do sujeito, em closes abruptos, à Stanley Kubrick).
“Ele tem o olhar fascinado de uma criança num parque de diversões”, teorizou o jornalista Jorge Carrasco, que trabalhou com David no jornal Meia Hora. “Não é que as coisas no entorno dele sejam interessantes; ele é que as faz interessantes.” Carrasco diz acompanhar o Instagram de David como quem assiste a um seriado: “Ele criou uma novela diária, com vários personagens. Tem a Flavia Trans, o Paulão Trukeira, a Bicha Muda, o cabeleireiro Luciano. Outro dia minha irmã me ligou para falar: ‘Entra no Stories dele agora que está todo mundo reunido!’”
Um exemplo aleatório: quinta-feira, 17 de agosto, dia seguinte à gravação do Pagode do Gago. David se filmou: no aeroporto internacional do Rio de Janeiro, passando pelo raio X; na sala de embarque, pedindo a um funcionário que o empurrasse numa cadeira de rodas (“Novinho, me leva? Me empurra, novinho!”); no avião, assistindo a um vídeo promocional da Avianca; no aeroporto de Fortaleza, ao lado de um sósia do Neymar (“Já que não vou pra Paris ver o meu Neymar original, tô em Fortaleza com o genérico”); no carro, a caminho da casa de uma amiga; na casa da amiga, comendo um prato de arroz, feijão e galinha (“Isso acho que era um pombo. Não era galinha nem aqui, nem na China”); mais uma vez no aeroporto de Fortaleza, para pegar um voo a Juazeiro do Norte; numa loja chamada Empório Case, dentro do aeroporto, onde foi presenteado com um cabo para o telefone celular; no avião, observando o vapor que saía do ar-condicionado (“Ai meu Deus, estão defumando o avião. Eita, bem-vindo ao terreiro da Avianca”); mais uma vez no avião, com dois amigos que o acompanhavam (“Chegaram os despachos: a galinha e o urubu”); desembarcando do avião, em Juazeiro do Norte (“Ó o aviãozão”); no aeroporto, comentando sobre o dente quebrado (“Olha, esse é provisório. Na segunda-feira vou colocar outro por 2 400 reais”); no carro, discutindo a calvície do amigo Hermano (“Veado, faz implante, veado”); na região do Cariri, para julgar as candidatas do concurso Miss Gay; no palco, vendo a drag queen Naomi sendo premiada; de volta ao carro, soltando um pum na frente dos amigos; no Crato, em frente à igreja do padre Cícero; numa lanchonete, comendo hambúrguer de carne de sol e bebendo guaraná.
Os dias seguintes seguiram na mesma toada. Na sexta-feira, 18 de agosto, David filmou um cachorro manco, um prato de baião de dois, o quarto do hotel (número 205) e uma arrumadeira dizendo “Te amo de paixão”. No sábado, 19, registrou a aterrissagem no aeroporto do Galeão, o motorista do Uber, uma tevê passando o programa de Luciano Huck, a ida ao salão de beleza, um prato de petit gateau, a conta de 106 reais do petit gateau, um encontro com a Mulher-Melão, o camarim de Wesley Safadão. Domingo, 20, foi dia de documentar o vento na janela de casa, os urubus voando na praia, uma gravação com o Porta dos Fundos, uma visita a Juliana Paes, um prato de estrogonofe e um gol de Neymar pelo Paris Saint-Germain (“Ó, tô arrepiado, Juninho”, disse, filmando a televisão). Às 23h45, de volta ao seu apartamento, filmou a si mesmo na mesa, sem camisa, tomando um prato de sopa. “Quase quebrei outro dente, gente”, informou aos seus 3,3 milhões de seguidores. “É que adoro roer osso da galinha.” Registrou-se chupando o osso, e deu o dia por encerrado.
Ulisses, de Joyce, é para os fracos.
Voltei a encontrar David Brazil na noite de segunda-feira, 21 de agosto, dessa vez para acompanhá-lo no evento de lançamento de um livro, no Copacabana Palace. Antes, ele dedicara parte do dia a abrir a correspondência acumulada (ou melhor, a filmar-se abrindo a correspondência acumulada). “O que será que tem nessa caixinha da Clínica Speranzini, onde fiz um dos meus implantes capilares?”, perguntou, num monólogo. “Já fiz uns quatro ou cinco implantes. Meu último foi com o doutor Danilo Dias, que foi ba-ba-do também. Foi o melhor de todos, pronto, falei. Se eu paguei? Paguei. Mas ganhei um descontão.” Foi para a caixa seguinte, que gerou outra digressão. “Que será que tem aqui? Um cartão de aniversário. Não tô parando em casa. Até as coisas do meu aniversário, que foi em 25 de julho, só agora tô abrindo. Ai, que delícia, um sabonete, e um xampu pra cabelo, barba e bigode. Eita porra, adorei.” Filmou a logomarca dos produtos e depois anunciou: “Hoje tem o lançamento do livro do maravilhoso Marco Antonio de Biaggi no Copacabana Palace, hein? Eu vou porque sou fã.”
Chegaria ao hotel símbolo da aristocracia carioca perto das oito da noite, depois de participar de uma reunião no apartamento do bicheiro Jayder Soares, presidente da Grande Rio. (David é uma espécie de chanceler da escola de samba, incumbindo-se de convencer atrizes da Globo a desfilar pela agremiação; o cargo é pro bono. “Mas o Jayder me dá uns presentes, umas viagens, uma vez por ano.”) Deixou o carro com o manobrista, na porta do Copacabana Palace, atendeu a um pedido de foto e cruzou a porta giratória. “Cheiro de rico”, comentou no lobby, antes de avistar a atriz Danielle Winits descendo uma escada. “Daaaaaani. Peraí, menina.” Sacou o telefone do coldre. “Eu chegando aqui e olha que beleza”, narrou, enquanto a filmava num vestido de oncinha. Winits retribui o elogio: “Eu coloco meu colar de rubi para brilhar e o David chega brilhando mais do que eu.” David postou o vídeo no Instagram e seguiu para o salão nobre, onde o cabeleireiro Biaggi dava autógrafo.
Cruzou com a modelo Yasmin Brunet, que começou a pular efusivamente e a cantar o refrão do funk Eguinha Pocotó. David mais uma vez tirou o telefone do bolso, apontando a câmera para a amiga. “Ai, que saudade que eu estava dela. Pocotó, pocotó, pocotó, pocotó, minha eguinha pocotó.” Virou o telefone na direção de Luiza Brunet, que também estava no salão, e falou: “Vi na barriga da mãe.” Postou no Instagram (e aproveitou para explicar, na rede, que cantava essa música para Yasmin na época em que ela, criança, frequentava a churrascaria que ele promovia).
Por algum tempo, permaneceu num canto do salão conversando com as duas e com a jornalista Glória Maria. Ao ver uma brecha na fila, ligou o celular e aproximou-se de Biaggi. “Maaaaaarco! Maravilhoso!”, gritou, olhando mais para a câmera que para o homenageado. Deu um beijo no cabeleireiro e outro no jornalista João Batista Jr., autor do livro, fez uma panorâmica do salão cheio e postou tudo no Instagram.
Era hora de ir embora – tarefa complicada, realizada num périplo lento, interrompido por 34 pedidos de selfie e três entrevistas para programas de fofoca. Dois produtores, com cara de moderninhos, perguntaram se ele poderia gravar um vídeo pedindo votos para o filme deles, Menino 23, que concorria a um prêmio de cinema. “Todo mundo te adora na produtora”, argumentaram. David gravou duas vezes, uma para o seu Instagram, e outra para o Instagram deles.
Um garçom observava a cena de longe, perguntando, sem sucesso, se David queria uma taça de vinho (ele não bebe). Ao vê-lo guardando o telefone, deu o bote, apresentando-lhe um cartão de visitas com o seu nome artístico. Antes de responder, David ligou a câmera do celular. “Bom, gente, esse aqui é garçom, o Eeeeeeemerson Teixeira, mas é também MC”, explicou, apontando a câmera para o homem com a bandeja. “Isso aí, Emerson TDB”, reiterou Teixeira. “Agora ele vai dar uma palhinha do funk dele”, continuou David. O garçom, uniformizado, começou a cantar A Dança das Cabritas, cuja letra se desenrolava da seguinte forma: De madrugada eu tô na roça, mas essas cabritas, elas não param de berrar. Eu boto pra mamar, eu boto pra mamar. Eu boto pra mamar, que elas param de berrar. Impressionado com a música, David começou a cantar com o garçom, aos berros, no meio do Copacabana Palace. Não demorou meio minuto para que um gerente se aproximasse. David filmou-o e depois pediu, longe da câmera, que o garçom não fosse punido. Saiu do hotel cantando sozinho: Eu boto pra mamar, eu boto pra mamar…
O ano era 1998. David Brazil estava numa mesa da churrascaria Porcão quando foi abordado por Mário Reis, então diretor da FM O Dia. Por coincidência, o SBT reprisara, naquela semana, uma de suas entrevistas no Jô Soares Onze e Meia. Nela David contava que sua gagueira tinha surgido como piada, de tanto imitar um menino gago na escola. “E graças a Deus não desaprendi, porque hoje sou um gago prooooofiossional”, explicava, aludindo à aula que dera ao ator Marcos Breda. Também comentava sobre o suposto convite para presidir a Associação Nacional dos Gagos, em Mato Grosso: “Não posso aceitar. Se eu ouço um único gago falando, eu tenho uma crise de riso. Você iiiiimagine eu numa coooooonferência para 100 gagos?”
À época, Reis precisava de um nome novo para apresentar um quadro de fofocas na rádio. “Os que tinham no mercado, como o Décio Piccinini, eram muito batidos”, explicou-me por telefone. David Brazil tinha a vantagem de ser inédito, engraçado e bem relacionado (e o porém, algo considerável, de ser gago). “Tá louco? Eu, gago, veado, paraíba, vou falir vocês”, David disse ter respondido, ao ouvir a proposta. “Além disso, falei que era amigo dos famosos, que não faria fofoca.” Reis argumentou que as notícias não precisavam ser maldosas. David aceitou: “Tô lá há quase vinte anos.”
Hoje, além da rádio, ele publica três colunas por semana no Meia Hora – o jornal popular, de manchetes hilárias, que pertence ao Grupo O Dia. Não revela os salários, mas juntou o suficiente para ter comprado um apartamento pequeno para cada irmã e um para sua empregada, Teresa. O grosso de sua renda vem de anúncios na tevê (é garoto-propaganda de uma rede de supermercado), jabás no Instagram (se filma em loja de móvel, roupa, em restaurante, ótica) e presença em evento (que pode ser uma festa de 15 anos na periferia do Rio ou um show para 60 mil pessoas de Wesley Safadão).
Há também a gentileza dos amigos. Numa reportagem de 2000 da revista IstoÉ Gente, David contou como fizera para mobiliar seu primeiro apartamento, em Ipanema. As portas haviam sido presenteadas por Ronaldo Fenômeno, a geladeira, por Renato Gaúcho e o fogão, por Romário. De lá para cá, seu círculo de amizades futebolísticas passou a incluir também Ronaldinho Gaúcho, Wagner Love, Júlio César e Adriano (a quem ele se refere como “bebezão da mãe”), e, da geração mais nova, Marcelo, Daniel Alves e Neymar. Em julho deste ano passou o aniversário na China, a convite do atacante Hulk, que joga em Xangai. Em julho do ano que vem, a data será comemorada na França, em festa organizada pela família de Thiago Silva, do Paris Saint-Germain. (Recentemente, um escrete formado por David, Thiago Silva, Daniel Alves, Neymar e o levantador Bruninho passou um domingo em Guaratiba, a bordo de um iate. Num dos vídeos postados em seu Instagram, o promoter escreveu estar se “sentindo a BENDITA BIBA entre os BOYS MAGIA”).
Por inusitada que é, a amizade com os jogadores sempre rendeu comentários. Numa entrevista recente à revista Veja, David explicou que o segredo estava em saber “os limites de uma brincadeira”: “Chamo os meninos de ‘delícia, gostoso’, mas com respeito.” Negou a suspeita, recorrente, de que faça o meio de campo entre jogadores e marias-chuteira: “Como se eles precisassem da ajuda de alguém, né?” Dias depois, voltei a insistir no assunto, perguntando de onde vinha a fama. “Um veado tá com um bofe do lado, o bofe cheio de mulher gostosa, o pessoal acha que foi o veado que botou a mulherada na fita”, respondeu, em lógica socrática. “Mas eu é que sofria com eles na época da Porcão. A cada semana apareciam com uma nova, dizendo que iam casar, e eu tinha que ficar elogiando.”
Além do semanal Pagode do Gago, David participa de um programa diário, o FM O Dia On Line, que vai ao ar de segunda a sexta, das oito ao meio-dia. É nele que costuma falar de celebridades (a gravidez de Ivete Sangalo, o aniversário de Anitta, o tornozelo quebrado de William Bonner) e de assistentes de celebridades (certa vez, quando Neymar morava na Espanha, entrevistou seu cozinheiro – que contou ter trabalhado, antes, para Ronaldo Fenômeno e David Beckham).
Numa sexta-feira de setembro, ocupou-se da atriz Juliana Paes: “Ela tá arrasando como Bibi na novela e agora vai ser rainha da bateria da Grande Rio”, contou, puxando a sardinha para o próprio trabalho. Deixou o estúdio durante um intervalo para checar o telefone celular. Na volta ao local de gravação, pediu que eu o acompanhasse – ato interrompido no instante seguinte, quando derramei um pouco de café no piso da sala. “Puta que o pariu. Puta que o pariu, gente!”, David gritou, já filmando minha cara constrangida e o café no chão. “A revista piauí tá fazendo da minha vida um inferno!”, continuou, em tom de chacota. “Eu vou perder meu emprego por causa dessa entrevista!”
Findo o programa, entramos em seu carro e seguimos para um edifício simples em Jacarepaguá, onde mora sua irmã Ana Lúcia, a quem ele chama de Ana (informação em tese desnecessária, não fosse pelo fato de que ele se refere à outra irmã, Ana Elizabeth, também por Ana). Abriu a porta do apartamento, que estava destrancada, já com a câmera ligada, gritando o nome do cunhado: “Petrooooonio!” Filmou a irmã e o sobrinho, que estavam na sala. “Uai, Gabriel, não trabalha mais não?”, perguntou ao rapaz. Voltou a câmera para mim. “Olha aqui o repórter, hein, cuidado com o que fala.” Em seguida deitou-se no sofá, com as pernas de lado. Ana aproveitou para perguntar quando chegaria o sofá novo – que ele ganhara em troca de uma visita filmada a uma loja de móveis. Respondeu que entregariam o móvel em um mês, e apontou a câmera mais uma vez para o cunhado: “Pra quem tava com saudade do meu cu, do meu cu, do meu cunhado, olha ele aí” (sempre que pode, David capitaliza a gagueira de forma a transformá-la num trocadilho pornográfico).
Enquanto o almoço era preparado, checou as mensagens recebidas no celular. A primeira era em forma de vídeo, gravado por dois guardadores de carro. “São da Olegário Maciel”, explicou, referindo-se a uma avenida no começo da Barra. “Tão com saudade de mim.” A segunda, por áudio, vinha de um motorista de Uber que queria presentear um conhecido. “O nome dele é Cleiton de Jesus, é seu fã pra caramba”, dizia o motorista, apresentando o amigo. “Vai fazer uma festa hoje, e queria um vídeo seu, se não for um problema.” David andou até o corredor na entrada do apartamento, onde a luz era melhor. “Alô, Cleiton, parabéns!”, falou para a câmera, com a voz empos-tada. “Soube que você é um negão de 2 metros. Manda nudes.” A terceira mensagem era do dono de uma casa de shows em Fortaleza, e a quarta de um sujeito chamado Djavan, que tem uma academia de futebol em Campinas. David gravou vídeos para ambos, e os enviou por mensagem, sem postar no Instagram. Perguntei se a ajuda era remunerada. “Cobro quando é comercial demais”, explicou. “Nesses casos, fiz pra ajudar.”
O almoço foi servido: arroz, feijão, carne, legumes, salada. David se filmou comendo com colher, o prato apoiado sobre um jogo americano de plástico. “Quer me ver feliz?”, disse para a câmera. “Me convida pra comer uma comida dessas, caseira. Te amo, Petrônio.” Terminou de comer, palitou os dentes e perguntou se a irmã, o cunhado e uma sobrinha precisavam de dinheiro. Transferiu mil reais para cada um, pelo celular. “Ô, almoço caro, tu viu?”
Em 2001, após participações pontuais em novelas e talk shows, David Brazil ganhou um emprego fixo no ramo televisivo. O convite partiu de Marlene Mattos, diretora do Planeta Xuxa, onde ele e o também promoter Amin Khader passaram a comandar, juntos, um quadro de entrevistas com celebridades. A parceria profissional, ainda que breve, se transformou numa amizade entre os dois – que, por sua vez, deu origem a um dos episódios mais estapafúrdios da história da tevê brasileira.
O episódio em questão começou na manhã do dia 28 de junho de 2011, uma terça-feira, quando David escreveu, em sua conta no Twitter, que acabara de receber uma notícia trágica: “Rezem, POR FAVOR, para que seja mentira, NÃO PERGUNTEM O QUE FOI.” Meia hora depois, complementou com um novo tuíte, inconsolável: “Confirmo que AMIGO DE FÉ IRMÃO CAMARADA AMIN KHADER nos deixou nesta madrugada.”
A notícia logo se espalhou por sites e programas de fofoca – a ponto de ser amplamente noticiada no programa Hoje em Dia, da Record, emissora em que o próprio Khader trabalhava. “Amin faleceu em sua própria casa, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, de causas ainda não confirmadas”, explicou o repórter Fábio Ramalho, acrescentando que era horrível noticiar a morte de um amigo. A repórter Fabíola Reipert, do portal R7, complementou, por telefone, que o corpo estava sendo levado para Petrópolis, “onde a família dele mora”. A edição de imagem alternava entre uma apresentadora chorando e flashbacks em câmera lenta de Khader.
Minutos depois, deu-se uma série de reviravoltas à García Márquez. A primeira: Khader estava vivo. A segunda: Khader estava vivo e correndo de sunga e tênis na orla da Barra. A terceira: foi o próprio David Brazil quem flagrou – e fotografou – Khader vivo, de sunga e tênis, na orla da Barra. “ESCROOOOOOOOOTO ESSE AMIN. Eu chorando indo pra casa e olha quem vejo na praia”, ele escreveu, no Twitter, onde publicou a foto.
Ressuscitado (e de camisa), Khader declarou, nas entrevistas que se seguiram, desconhecer a origem do boato. Cinco dias depois, David Brazil foi ao programa Domingo Legal, do SBT, contar sua versão da história. Suspeito de ter montado uma farsa, ele se apresentou como vítima, na verdade, de uma armação do amigo promoter. Mostrou uma mensagem que Khader deixara em sua caixa postal, na véspera da confusão, contando que tinha acabado de fazer um eletrocardiograma num hospital. “Esse recado foi já pra eu dormir preocupado”, explicou ao apresentador Celso Portiolli. Na manhã seguinte, continuou, teria recebido uma ligação de uma sobrinha de Khader informando-o do óbito. Afirmou ainda ter ido ao prédio onde o amigo morava – e ali teria ouvido, do porteiro, que o corpo estava a caminho de Petrópolis. Só depois noticiou a morte. “Eu sou brincalhão, mas sou reeeeeeesponsável”, explicou, gaguejando muito. “Se ele só tivesse falado que foi brincadeira, aí tudo bem, mas fez tudo e foi para a tevê em rede nacional pra falar que eu que tinha inventado.” (Khader não atendeu ao meu pedido para ser entrevistado.)
Dali por diante, o duelo Brazil-Khader viraria o Brasil e Argentina do noticiário de fofocas. David deu entrevistas ao programa de Sonia Abrão e aos sites Ego e O Fuxico, onde chamou Amin de “mau-caráter”. Khader manteve o silêncio até que se viu difamado no site da Caras. Foi demais. “Eu estou cansado. Eu não aguento mais isso. Tem três meses que ele só fala de mim. E eu estou calado. Eu estou chique. Resolvi dar um basta”, escreveu, em carta enviada à publicação (e noticiada pela colunista Mônica Bergamo na Folha de S.Paulo). “Quando ele soube que o melhor amigo dele, que era eu, ‘morreu’, ele não foi para o velório. Ele foi para o Twitter.”
Magoado, Khader aproveitou a carta para fazer uma comparação entre as origens sociais – e os repertórios culturais – dele e do ex-amigo: “Por meu intermédio, David Brazil conheceu Gal Costa, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Luiza Brunet, Luma de Oliveira, para citar apenas alguns. Através dele eu conheci Lacraia, Valesca Popozuda, Viviane Araújo, Gretchen e outras pessoas desse escalão. Ele me apresentou a churrascarias, e eu o apresentei ao Antiquarius. Ele me apresentou ao Castelo das Pedras, e eu apresentei ele ao Citibank Hall. Eis aí a nossa diferença.”
Quatro anos depois, resolveu processar David por danos morais. O processo, que corre na 5ª Vara Cível da Barra da Tijuca, rendeu uma liminar que multa David em 10 mil reais caso mencione o seu desafeto “em qualquer matéria jornalística ou veículo de comunicação”. Perguntei a David o que ele achava da decisão judicial. “Se eu quiser furdúncio, eu falo o nome da Anitta, do Neymar”, respondeu, entre o sarcasmo e a raiva. “Vou falar nome de defunto pra quê?”
Terminado o almoço na casa da irmã Ana Lúcia, David bateu na porta da vizinha, uma senhora de idade, para saber como ela estava. Apresentou-me como seu marido suíço (“Parei com a putaria. Casei, vou morar na Europa”), piada que seria repetida à exaustão até o fim daquela tarde. Depois entrou no carro e seguiu para o apartamento da irmã mais velha, Ana Elizabeth, nos arredores da Barra. “Ela era enfermeira num hospital federal na Paraíba”, contou. “Tô tentando conseguir uma transferência para trabalhar num do Rio. Já falei com prefeito, deputado, e nada.”
Mandou uma mensagem de áudio para a sobrinha, que também se chama Ana: “Aninha, já tá lá na sua conta os mil reais. Você estuda pra me pagar com juros, porque no futuro eu vou ser uma bicha velha e pobre.” Para acrescentar dramaticidade, fingiu que chorava: “Me ajuda, Aninha!” Mandou um áudio também para o dentista Murilo Bianco – que, àquela altura, já tinha virado personagem do seu Instagram, em função do tratamento dentário de 2 400 reais. “Doutor Murilo, pelo amor de Deus, não vou conseguir ir na segunda-feira. Desculpa, vou ter que ir a São Paulo pra gravar o Legendários.” (Dias depois, David se filmaria no consultório, segurando os 2 400 reais em notas de 100, enquanto o dentista mexia em sua boca.)
Perguntei se ele se via como um humorista. “Já me chamaram pra fazer stand-up, mas eu não sou bom de decorar texto”, respondeu. “Além disso, o que eu gosto é dessa coisa de mexer com o pessoal no meio da rua.” Perguntei, também, se a vida sexual dele fazia jus ao sem-número de cantadas que distribui por dia, registradas em vídeos que aparecem no Instagram (a dúvida me ocorrera porque ele está sempre sozinho, em sua cama, nas gravações que faz antes de dormir). “Sou mais cachorro que late, late, late, mas não morde”, admitiu. Disse ter tido dois namoros sérios, em tempos idos (Amin Khader é erroneamente citado em várias reportagens como sendo um ex-namorado).
Às duas da tarde chegamos à casa de Ana Elizabeth, onde David cumpriu à risca o protocolo de já tocar a campainha com a câmera ligada. Passou meia hora no telefone resolvendo um problema com a Net, assistiu a um pouco de tevê, perguntou se a irmã precisava de dinheiro e se a sobrinha precisava de roupa: “Quer calça? A gente vai na Zara.” Atendeu a um telefonema do amigo Paulão Trukeira, que também precisava de um trocado. Combinou de encontrá-lo num posto de gasolina, no meio da Barra, para entregar o dinheiro.
Voltamos a entrar no carro e andamos cerca de 5 quilômetros até darmos de cara com uma blitz. Ao ver um policial, David abaixou as janelas e tirou as mãos do volante, mostrando-as espalmadas, como quem diz que está desarmado. O policial olhou desconfiado, até que o reconheceu. “Ô, David, tu não lembra de mim, não? A gente trabalhou junto em São Gonçalo. Só que eu era bem mais magro.” David respondeu com uma pergunta: “E tu vai me dar uma dura?” O policial negou a oferta, mas apontou para outro PM, o Chagas, que estava a cerca de 20 metros dali, checando os documentos de um outro motorista. “Vai lá que ele quer te dar uma dura.”
David aproximou-se de Chagas buzinando e repetindo o bordão. O policial respondeu com uma ordem pouco amigável: “Encosta ali! Encosta ali!” Chegou correndo na janela do carro, já com o celular ligado: “Porra, David, tu grava um vídeo pra minha mulher? O nome dela é Michelle, é tua fã. Diz que ela perdeu, que tu roubou o marido dela, e que agora eu tô contigo.” O pedido foi atendido.
Seguimos da blitz ao posto de gasolina onde ele costuma abastecer. David cumprimentou um frentista (“E a rola?”), antes de perguntar se havia fila para lavar o carro. “Se tiver, tu passa na frente”, ouviu em resposta. “Tu é o David, porra!”
Voltei a encontrar David Brazil em duas ocasiões em setembro. A primeira – breve e caótica – ocorreu na quadra da Grande Rio, numa madrugada de sábado para domingo, quando ele coroou Juliana Paes no posto de rainha da bateria. Corria de um lado para o outro da quadra, entre o palco e o camarote do presidente, onde havia uma concentração enorme de peitos de silicone por metro quadrado. Conversou com carnavalescos (como Milton Cunha), socialites (como Bruno Chateaubriand) e viúvas de Marcos Paulo (como Antônia Fontenelle). Tirou fotos com celebridades, subcelebridades e com uma moça de 24 anos chamada Caroline Afonso, que tem o nome de David tatuado em um braço. “E esse ano ainda devo fazer o rosto dele”, ela me disse, passando a mão na região das costelas. “Vai ser aqui, porque a gente tem que botar as pessoas que ama perto do peito.”
O segundo encontro ocorreu uma semana depois – semana essa em que David filmou-se inaugurando uma loja na Ilha do Governador, assistindo a um show particular de Ivete Sangalo, reclamando da câmera do iPhone (“Prefiro o Samsung Galaxy, pronto, falei”), dançando nu em casa (e depois comentando, também nu, sobre a polêmica causada pelo excesso de nudez do vídeo anterior), indo ao cinema com a sobrinha (fez mais de dez vídeos da tela, durante a exibição do filme), pegando um voo para São Paulo, hospedando-se num hotel chique em São Paulo, reclamando do ovo frito que custava 65 reais no hotel chique de São Paulo, voltando para o Rio de Janeiro, aterrissando no Rio de Janeiro (“Ó o Cristo, gente”), me encontrando no Aeroporto Santos Dumont, do Rio de Janeiro.
“Ai, Roberto, da revista piauí, eu não aguento mais”, disse, ao me ver na área de desembarque, enquanto me filmava. “Larga meu anjo da guarda!” Fez ainda um segundo vídeo, mais informativo, anunciando o mês em que a reportagem seria publicada. “Em breve o meu livro, a minha vida, na revista piauí!”
Caminhou até a rua, onde havia marcado com o motorista do Uber. “Ei!”, berrou, de longe, para um guarda municipal. “Seu guarda, cadê o meu negão?” O guarda respondeu que o tal negão estava de folga. David virou-se para um fiscal da cooperativa de táxi, que olhava para o celular: “Tá vendo nudes?” Atendeu a pedidos de fotos de um ambulante, um motoboy, duas faxineiras e cinco taxistas. Dada a demora do Uber, acabou pegando um táxi convencional.
“Pro Sambódromo, safado”, pediu. Naquele domingo, 10 de setembro, Anitta, Ludmilla, Nego do Borel e Thiaguinho fariam shows na Praça da Apoteose, durante a festa de 20 anos da FM O Dia. David e os demais locutores da rádio teriam que entrar no palco e animar a plateia entre uma apresentação e outra.
“Ai, que casal bonito”, comentou, ao ver dois rapazes caminhando lado a lado na Lapa. “Tu é gay, ô taxista?”, emendou, no instante seguinte, sem nenhuma cerimônia. O homem riu, negou, disse que era casado, mas que conhecia quem fosse. “Eu não quero outro, eu quero você com essa barba branca”, respondeu David. “Panela velha é que faz comida boa.”
O carro seguiu para o Centro, onde várias ruas estavam interditadas, obrigando o motorista a dar uma volta grande na avenida Presidente Vargas. “Vou pagar só a metade”, reclamou David, em tom de galhofa. O taxista respondeu com seriedade: “Tenho que dar essa volta para te deixar na parte de trás do Sambódromo.” A tréplica, na lata, veio em ritmo de funk: “Dei-xa na par-te de trás… Dei-xa na par-te de trás…”
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Assista ao vídeo Uma manhã com David Brazil no canal da piauí no Youtube