FOTO: @CALEB COPPOLA
Vozes
Ana Luísa Amaral | Edição 57, Junho 2011
A VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA
Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual a Samotrácia.
Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:
qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita de fio de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.
Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?
O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas –
BIOGRAFIA (CURTÍSSIMA)
Ah, quando eu escrevia
de beijos que não tinha
e cebolas em quase perfeição!
Os beijos que eu não tinha:
subentendidos, debaixo
das cebolas
(mas hoje penso
que se não fossem
os beijos que eu não tinha,
não havia poema)
Depois, quando os já tinha,
de vez em quando
cumpria uma cebola:
pérola rara, diamante
em sangue e riso,
desentendido de razão
Agora, sem contar:
beijo ou cebolas?
O que eu não tenho
(ou tudo): diário
surdo e cego:
vestidos por tirar,
camadas por cumprir:
e mais:
imperfeição
A IMPOSSÍVEL SARÇA
Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita abençoada
mas demais e cristã
também castigo
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
que não chegam
– mas cegam
INÊS E PEDRO: QUARENTA ANOS DEPOIS
É tarde. Inês é velha.
Os joelhos de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
“Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!”
Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricô de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.
Inês é velha, hélas,
e Pedro tem cãibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando a chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.
O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurônios).
Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.
JUNTO A LEVÍSSIMO PORMENOR DE ESTILO
Oscilar entre teia de desejo
e um olhar que se afoga em horizonte:
as rochas que ali vejo:
um pormenor de estilo, um excesso
na paisagem que nada sobressalta
na memória
Em que fio resplandece
o mais palpável:
dizer amor ou estendê-lo por frase:
jogo de espelhos liso,
solitário
Que podes dar-me tu
que não possa este mar
de ausente areia?
Que podes dar-me tu
que eu não possa colher
desta paisagem?
Assim te vejo: um pormenor de estilo,
nem sequer sobressalto
a ameaçar
Oscilando entre teia sem desejo:
pontos de brilho
refractados até brilho de mar
tecido a infinito
E é como se eles fossem
mais meus do que tu és
Porque me foste já, como esse
foi de Rodes.
Mas isso de uma ponte
de eternidade mil que eu tinha dentro
Agora o tempo é este:
oscilar levemente sobre teias
ou afogar olhar entre
horizontes
O resto: pó disperso,
reduzido
a muito simples pormenor
de estilo
ESTRATÉGIAS
Há tanto tempo aqui, à espera delas,
em amoroso espanto, e espreito
as horas,
finjo em olhar quase desmaio lento,
a ver se estão por dentro
(mas não estão),
abro os olhos em meia
sedução.
É tarde e eu não posso estar aqui
nesta espera, espreitando
desamor.
Odeio-as nesta ausência de equilíbrio,
quando não se organizam
como devem,
e porque existem só, em estado
puro,
em dicionários, filas de alfabetos,
inumeráveis filas de ditongos.
Tenho-as junto da mão,
e não são minhas.
Armá-las em quadrado e transformá-las
em coisa nuclear,
saber como as lançar
umas por sobre as outras, em cisão.
Que se autopulverizem
e eu seja ausente
da sua existência:
o espanto só de um mundo,
só em verde,
um mundo só de rios e só de gente.
Um céu mudo de espanto,
sem nasais.
Que eu possa ir para casa
finalmente
– o tempo: mancha igual,
a mesma sempre:
eterno ano, o mesmo traço a fogo,
e um rio correndo em direcção:
Igual –
OS MOMENTOS INTACTOS
1. A saudade real (ou aparente)
As sensações de volta:
uma textura,
uma música leve,
e repetir amargamente
as coisas.
Estão diferentes as cortinas
e o resto. Estão diferentes
os rostos
(embora o traço se mantenha,
lento).
E o rasto musical a invadir
em linhas tão tangentes
de ternura.
Pior é a textura:
bainha
a envolver coisas
diferentes.
2. Os momentos intactos
Recursos de marítimo conforto.
Verde e azul. O voo das gaivotas.
Degraus barrocos, velha habitação
que me utilize os móveis e mantenha
intactas as sombras, paisagens, cantos.
E por arritmados decassílabos,
todavia corretos na contagem,
reduzir a gaivota a sete letras
e o mar a três. Em antiga cabala.
3. Sortilégios
Em torno das ideias, elas dançam
Num batuque feroz, descompassado
E belo de sentir. De entre a magia
Contundente e clara, anunciam doeres
Antecipados. São pequenas clareiras
Do instinto, são caminhos de sol
Cumprindo o sortilégio da paixão.
E em torno das ideias por fazer
Dançam com passos leves e doentes.
Comungadas do fogo que se escoa,
Tombam por fim, exaustas e descalças,
Aligeiradas dos tambores da mente.
GALILEU, A SUA TORRE E OUTRAS ROTAÇÕES
andamento 1
Olhando agora a mesma torre
onde há trezentos e tal anos ele subiu,
estaria um pouco mais na vertical,
e o sonho em fio
de prumo –
O que dele disseram
foi o ter contemplado
estrelas e mais estrelas,
incomodando togas não de lume,
mas de uma
obliterada fé em fumo
Os séculos haviam de contar
da celeste estrutura,
mais azul que os vestidos
da Virgem em menina,
haviam de mostrar
como esta outra estrutura
cede a outros olhares:
os do flash rompendo movimentos,
tentando aprisionar – um
sentimento? o registro de um dia
ou de uma hora?
O que dele contaram
perdeu-se pelo brilho das estrelas,
e assim o resguardaram
em poemas, museus, guias turísticos,
nomes de ruas e de hotéis sem nome,
o seu nome rodando
quase a repetição
Sobre mortos vagamos,
como a Terra, numa veste diferente
e ainda igual,
e nela nos movemos, como ela,
como ele e outras alturas
Custa mais que um salário
em terras que são quase ao pé de nós,
divididas por súbita península
e um mar tão morno,
custa mais que um salário
subir a esta torre onde ele foi
e se perdeu de amores
por inércias e corpos
Nessas terras tão próximas –
remotas –
ela, contudo, move-se:
tão bela, a sua translação
em torno de uma
estrela
tão bela e mais cruel
que aqui –
andamento 2
Mas como nós:
tão comoventemente
relativa e frágil,
imersa em hélio e os outros gases
que lhe deram vida:
jovem mulher de um século passado,
educada, composta, semiobediente:
ebulição e magmas
nas paisagens de dentro
e um leve traço de vermelho
aceso
a espreitar-lhe entre rendas
Alguns milênios antes,
poucos para as estrelas que ele viu,
a dissonância
ao lado da caverna
em proteção e espanto
E muito antes
dessa lenta fusão de gases densos,
nem rotação de luz –
o que seria dela:
inenarrável ponto de interrogação
Tão frágil como nós,
moveu-se, assim,
num momento qualquer desconhe‑
cido,
vazio de tempo,
até que a meio dos tempos,
após inumerável paciência:
fissura humana:
os olhos levantados,
e em vez do chão:
o mar e o horizonte,
e mais no alto:
a branca companheira
das noites e dos medos
Ou quando nela
se fez em vez do toque: um som,
e em vez do som, mil sons,
a garganta a servir tempos de música
e não gritos de alarme
Moveu-se, então,
e frágil, relativa,
as procissões de reis, as multidões de gentes,
monumentos à glória
e ao desejo
a demorarem séculos
– um piscar de olhos
para estrela
nova
andamento 3
O muro cor de fogo
ao lado desta torre:
carregado com átomos de mortos,
o pó de outras
estrelas
Onde o lugar
para falar da súbita península
onde se nasce junto a paredes meias
com a morte?
Inútil tudo?
O flash, o sentimento,
manchas solares?
Um argumento nómada
será?
Ali, junto
da terra, o terremoto,
eppur si muove
este, o meu tempo,
em súbito vagar
andamento 4
Calcula-se que dentro de
cinco bilhões de anos,
murchará: como maçã
num sótão às escuras,
a luz rompendo pelas vigas largas:
um brilho muito fresco
Quantos vitrais soprados pelo tempo,
sagrados pelas chuvas
para agarrar o tempo?
Quantos vitrais
hão de faltar ainda?
Há quase quatro séculos
ele subiu aqui
À janela do tempo,
as civilizações brotam e morrem,
desabam devagar,
e outras vertigens
hão de romper ainda,
expandidas em luz
O que sobrar de nós:
só pó de estrelas
Num acaso feliz:
talvez grão de poeira desta torre,
talvez um átomo
da sua gola branca (a do retrato),
a simular curva sinusoidal,
o seu olhar
girando em torno
de um planeta novo
Bordado a fio de estrelas,
desabará o som
em outras rotações
Então, talvez o jovem átomo
a testar o tempo
seja também semiobediente,
moldura em gás e luz
do andamento próximo:
o quinto
movimento –