ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
¿Y yo?
No es fácil vivir en Sampa
Malu Delgado | Edição 97, Outubro 2014
As sobrancelhas interrogativas da garçonete eram a prova cabal de que não havia compreendido o pedido feito em castelhano. Ao detectar o problema, a argentina Ana Bartolomeali recorreu ao grupinho de amigas sentadas à sua frente: “Chica, cómo se dice cupcake?” Elas se entreolharam. Pragmática, Ana ajeitou a echarpe, levantou-se e apontou o bolinho. As mais de vinte mesas colocadas lado a lado num café em Moema abrigavam naquela tarde de setembro cerca de trinta integrantes do Latinas em Sampa, grupo no Facebook hoje com mais de 700 membros.
Trata-se de uma legião de mulheres que se encontram regularmente e organizam atividades sociais para dividir as agruras de ser estrangeira em São Paulo. O grupo não é homogêneo, mas há características predominantes: mulheres entre 30 e 45 anos, nascidas na América Latina, unidas pelo idioma e arrastadas para o Brasil a reboque da carreira dos maridos – boa parte engenheiros – que trabalham em multinacionais. Comunicam-se só em espanhol e é raríssimo achar alguma que domine o português. O bairro de Moema, de classe alta, é o refúgio de boa parte dessas latinas.
“No começo éramos 30, depois 70, 100 pessoas. Não acredito no que está acontecendo agora”, contou a argentina Paula Maria Casaurang, 43 anos, criadora do grupo. As reuniões começaram informalmente em 2009, ano em que Paula chegou ao Brasil. Convidada para um chá por Elisa, a vizinha italiana, ela passou a cultivar o hábito de reunir estrangeiras que moravam em seu prédio ou nas redondezas para saborear bolos e o tradicional rogel, torta mil folhas argentina feita com doce de leite. O grupo surgiu três anos depois, em 2012. “No início, relutei em aceitar o nome Latinas porque há portuguesas, brasileiras que moraram fora e querem um espaço para praticar o espanhol”, justificou Paula – a irmandade hispânica se esquece de que o Brasil integra o universo latino. O grupo é fechado: para se filiar é preciso responder a um questionário genérico atestando a latinidade.
“A mulher quando chega não sabe o que fazer da vida. Fizemos uma escolha e deixamos de lado nossa profissão. É preciso recomeçar”, esclareceu a criadora do grupo. Em Buenos Aires, Paula dava aulas para crianças. Mãe de dois filhos, hoje faz da culinária de bolos e tortas seu ofício. Quando veio para o Brasil, já estava insatisfeita com a profissão. Viu na mudança uma saída para um estilo de vida novo. “Mas quando cheguei foi um tapa. Não podia ser professora e tinha que aprender o idioma.”
Nos primeiros meses, culpou o marido pela infelicidade. Cinco anos e meio depois, absolveu o cônjuge: “Estou aqui porque quero. Ele não é culpado, tampouco a situação da Argentina.” A propósito, discutir mazelas políticas e econômicas é vetado. Já houve até um entrevero com uma venezuelana que tentou desabafar sobre os rumos do país. O caso foi contornado, segundo Paula, e todas entenderam que “o espaço não é para isso”.
Apersonalidade da advogada argentina Cecília Barrero, 44 anos, destoava da aparente fragilidade da maioria. Longe de Buenos Aires há dezessete anos, ela já viveu no México, na República Dominicana e na Guatemala. Chegou ao Brasil em 2012 e assimilou de tal forma a loucura cosmopolita que quer viver em São Paulo até o fim de seus dias: “Ficaria aqui para sempre.” Mora em Santo Amaro e entrou no Latinas na época em que “havia apenas duas mesas” nos cafés. Quando seu marido foi transferido para o México, há quase vinte anos, a empresa dele avisou que Cecília não poderia trabalhar no país. Ela ignorou o ultimato e conseguiu um visto de trabalho com a ajuda de um escritório de advocacia. No Brasil, abandonou o direito para abrir uma empresa de catering com uma sócia brasileira.
Com o melhor português da turma, Cecília pondera: “Muitas delas jamais vão querer fazer parte da cultura brasileira. Sonham ficar dois anos e voltar para casa. Ainda não sabem que não vai ser assim.” Ela reconhece que há realidades distintas e que sua vivência a ajudou a se entregar ao Brasil de maneira mais intensa. Mas conviver unicamente com o grupo de mulheres que falam espanhol para tomar cafezinho poderia deixá-la louca, decretou. “Mas não é essa a ideia!”, repreendeu Paula, a anfitriã, preocupada com a imagem do grupo. “Não, claro”, aquiesceu Cecília.
O grupo no Facebook funciona como um guia de autoajuda para a recém-chegada. Traz dicas sobre médicos (sobretudo pediatras), babás, faxineiras, aluguéis, fins de semana na praia, aulas de ginástica ou ioga… As perguntas são inúmeras e sempre há uma hermana disposta a ajudar a companheira perdida. O sucesso é tanto que Paula criou um site para que as latinas possam divulgar os novos ofícios aos quais se dedicam: venda de roupas, artesanato e comida, organização de festas e eventos, aulas diversas, workshops. “O objetivo é acolher o estrangeiro”, definiu Paula.
Atualmente a argentina está empenhada em promover cursos de coaching multicultural ministrados pela peruana Paola Díaz, administradora de empresas que chegou ao Brasil em 2013. “A él le destinan a otro país. ¿Y yo?” foi o nome do primeiro curso. Seis mulheres se inscreveram. Paola preferiu que a reportagem não acompanhasse o encontro para não intimidar as participantes. “A adaptação é muito complicada”, advogou a administradora, para quem o idioma é uma barreira significativa. “Português e espanhol não são tão parecidos como se pensa.”
O título do curso provocou uma polêmica surda. Pedindo anonimato, uma participante confessou sentir-se incomodada com o viés machista que coloca a mulher em segundo plano, como se todas fossem obrigadas a seguir incondicionalmente os maridos. “Nosotros somos una pareja. Vivir en Brasil fue una decisión conjunta”, contestou a insatisfeita.
Ao sair, pedi a Ana, a animada argentina do cupcake, um diagnóstico sobre o grupo. “Num primeiro momento, eu só queria conhecer o Brasil. Vim aberta. Se escutava espanhol, saía correndo. Não precisei deste espaço. Primeiro, descobri as pessoas. Depois, esse grupo”, disse, totalmente disposta a se involucrar com o Brasil.