Ricardo Zamariola Jr. passou por crises em que cogitou jogar a toalha, mas seu cliente, David Goldman, não concordou. Reergueu-se quando se viu sozinho e cravou a estaca decisiva ao fazer a sustentação oral no Supremo Tribunal Federal FOTO: WENDERSON ARAÚJO_OBRITONEWS
Zamariola sai do casulo
Quem é o advogado de 28 anos que venceu a mais célebre causa de direito de família dos últimos tempos – o caso Sean – e como ele viveu a maratona que antecedeu o embarque do menino para os Estados Unidos
Dorrit Harazim | Edição 41, Fevereiro 2010
Na segunda-feira, 21 de dezembro de 2009, Ricardo Zamariola Jr. acordou às sete da manhã no apartamento alugado para onde se mudara há dois anos. Enquanto no Brasil, nos Estados Unidos e em todo o mundo cristão o ritmo de trabalho diminuía com a aproximação do Natal, o advogado entrava na semana crucial de sua curta carreira: a da decisão do destino do menino Sean, de nove anos, que há cinco anos, seis meses e cinco dias fora separado do seu pai, o americano David Goldman.
Zamariola pegou a mala com rodinhas preparada na véspera – um conforto notável, se comparado à de alça que carregava até então, mas ainda aquém das que deslizam com quatro rodinhas, usadas pelos advogados que vivem nos ares entre São Paulo e Brasília – e rumou para o escritório. Combinou a estratégia com os sócios. Paulo Roberto Andrade foi escalado para fazer marcação cerrada em Brasília, onde Gilmar Mendes, o presidente do Supremo Tribunal Federal, anunciaria a decisão. Zamariola e Marcos Ortiz embarcaram para o Rio. Ortiz não levou nada porque pretendia voltar à noite para São Paulo.
Às duas da tarde, Paulo Roberto Andrade plantou-se na antessala do gabinete do presidente do STF. Com o recesso do Judiciário, o prédio estava praticamente vazio. Na antessala, havia apenas outros dois advogados, contratados pela família Lins e Silva para garantir a permanência do menino Sean Goldman no Brasil.
No Hotel Marriott Copacabana da avenida Atlântica, o quarto 815 era uma anomalia. Apesar de ter vista para o sol escandaloso, o céu azul estalando e a praia tropical, o apartamento tinha ar de bunker. Cortinas pesadas vedavam a luminosidade e o ar interno oscilava entre o gelado e o abafado devido a um defeito na regulagem do termostato. O apartamento havia sido alugado dias antes, com o nome falso “Richard Spain”, para evitar repórteres, por David Goldman. Como a reserva fora feita por intermédio da embaixada americana, a diária caíra de 550 para 200 dólares.
De bermuda e camiseta, David Goldman estava estendido na cama. Com o controle remoto na mão, mudava de canal constantemente, sem prestar atenção a nenhum. Exceto quando, na CNN, aparecia o letreiro Developing Story – Brazil custody battle, e se repetia à exaustão o sabido: que a decisão deveria sair a qualquer momento.
Sentada numa ponta da cama, Orna Blum, a assessora de imprensa da embaixada americana, transformara o seu BlackBerry numa central de informações. Ao longo do fim de semana, recebera várias mensagens de texto da equipe da secretária de Estado Hillary Clinton, com pedidos de atualização do caso. Volta e meia lhe chegavam rumores com maior ou menor sentido. O mais recente dava conta que João Paulo Lins e Silva, o padrasto de Sean Goldman, havia sido visto no fim de semana em Itaipava, na serra fluminense.
Acocorada no chão, a americana Benita Noel era um feixe de nervos expostos. Produtora-sênior da emissora americana NBC, ela era responsável pela operação de cobertura diária do caso Sean e pelo programa especial a respeito do assunto, no qual a rede americana investira algumas centenas de milhares de dólares. Era sua quarta vinda ao Brasil com David Goldman, todas elas feitas em cima da hora, com tempo cada vez mais exíguo e equipes cada vez maiores. Dessa vez, largara a decoração da árvore de Natal pela metade, mas prometera à filha de 6 anos que voltaria a tempo de terminá-la. Mas dependia, também ela, de Gilmar Mendes.
Espremido no sofazinho de honra do apartamento, o congressista Chris Smith também havia largado os filhos para vir pela terceira vez ao Rio. Corresponsável pela elaboração do primeiro relatório americano sobre sequestros à luz da Convenção de Haia, o parlamentar republicano acompanhava dez outros casos simultaneamente. “Só que este não é apenas um caso a mais”, explicou Smith, um senhor rechonchudo e afável. “David tornou-se um amigo.” Ambos são de Nova Jersey. No dia anterior, domingo, enquanto repórteres faziam vigília na frente do Marriott, o parlamentar e David Goldman saíram por uma porta lateral e foram a pé até uma igreja na praça Serzedelo Correia, em Copacabana.
Numa pequena mesa voltada para a parede, Karen Gustafson de Andrade, a chefe do serviço consular americano no Rio, a mais objetiva e silenciosa do apartamento, assumira o comando do laptop de David Goldman. Como ela era a representante do Departamento de Estado no Brasil para questões envolvendo a Convenção de Haia, seria em suas mãos, segundo a sentença emitida em junho pelo juiz federal da 16ª Vara, que o menino Sean deveria ser entregue.
Foi a esse grupo que vieram se juntar Ricardo Zamariola e Marcos Ortiz. Eles eram os únicos capazes de explicar aos americanos as nuances do desenrolar processual e jurídico do caso. Durante todo o dia, os celulares se revezavam numa cacofonia desgastante de sons. As conversas mais sigilosas, como a do congressista com o senador democrata Frank Lautenberg, que telefonava de Washington, eram feitas no pequeno saguão de entrada ou no banheiro.
“Acho que não vai acontecer mais nada hoje”, disse, no meio da tarde, David Goldman, que trocara o controle remoto por uma revista de palavras cruzadas. Disse a frase com uma ligeira entonação de pergunta, e ninguém respondeu. Os outros debateram em inglês como poderia ser o embarque do menino Sean para os Estados Unidos.
– Se eles não entregarem a criança no consulado, teremos de ir até a residência – disse o advogado Ricardo Zamariola, referindo-se ao padrasto e aos avós maternos do menino.
– Queremos fazer tudo o mais rápido possível. Não poderíamos buscá-lo em casa e ir direto para o aeroporto, onde já estaria David? – perguntou a assessora de imprensa Orna Blum.
– David precisa estar junto no momento da entrega. Sem a presença das partes envolvidas é tudo mais difícil – respondeu Zamariola.
Levantando os olhos do computador, Karen de Andrade disse que trocava mensagens on-line com uma pessoa do serviço diplomático. Essa pessoa informava que a Polícia Federal pretendia entregar o menino diretamente ao pai.
Alguém bateu à porta. Era o serviço de quarto, trazendo club sandwiches, água de coco, sucos, pacotes de amendoim e refrigerantes.
– Você acha que está demorando tanto porque Gilmar quer produzir uma decisão firme e sólida? – perguntou David Goldman a Zamariola. A mala com que Goldman veio dos Estados Unidos estava entreaberta, pronta para ser fechada. A de rodinhas do advogado sequer fora aberta.
– Pode ser – respondeu Zamariola.
Pouco antes, seu sócio Paulo Roberto Andrade telefonara de Brasília para Marcos Ortiz e dissera que o mais provável era que a decisão fosse anunciada ainda naquela segunda-feira.
– Neste exato momento, qual a porcentagem de chance que tenho de ter Sean comigo hoje à noite? – indagou o pai.
– Cinquenta por cento – arriscou Chris Smith, o congressista.
– Difícil dizer – respondeu Zamariola.
Houve uma nova chamada para o celular de Marcos Ortiz, cujo toque todos aprenderam a reconhecer por ser a linha mantida livre para as ligações de Paulo Roberto Andrade da antessala de Gilmar Mendes.
– Não é nada, é outra pessoa – informou Marcos Ortiz.
– Faltam dez para as seis – informou um desolado David Goldman para si mesmo, acreditando que a proximidade do fim do expediente formal do Judiciário liquidaria as chances de ter o filho de volta naquele dia.
Minutos depois, mais sombrio, constatou:
– Falta um minuto para as seis.
Tocou o celular de Chris Smith. Era Wolf Blitzer, âncora da CNN em Washington, para avisar que gostaria de falar com David Goldman logo que a decisão saísse.
O deputado Chris Smith disse estar preocupado com a possibilidade de o Congresso americano levantar, antes da hora H, o veto à votação de um benefício fiscal que traria 3 bilhões de dólares para os cofres brasileiros. Ele soubera que o Partido Democrata retiraria o veto até 30 de dezembro, mesmo que o menino continuasse retido no Brasil. “Seremos vistos como tigres de papel se recuarmos agora”, observou Smith. Mas como a decisão de levantar o veto fora mantida em segredo, para todos os efeitos a pressão continuava valendo: as autoridades brasileiras acreditavam que o país perderia 3 bilhões de dólares se Gilmar Mendes decidisse manter Sean Goldman no Brasil.
Eram quase seis e meia quando Paulo Roberto Andrade telefonou de Brasília e disse que uma ação anterior, ainda do tempo em que a mãe de Sean estava viva, fora ressuscitada pelos advogados da família brasileira junto ao Superior Tribunal de Justiça.
– Isso tem que acabar, Paulo! Você precisa tentar pressionar o Gilmar! – disse-lhe Zamariola. Pela primeira vez, o advogado demonstrava tensão. Todos falaram ao mesmo tempo. David Goldman também revelou seu nervosismo: “Esse sistema está falido, gente, vocês não concordam?”, perguntou. Ninguém respondeu.
Karen de Andrade, que continuava sentada à mesinha operando o laptop, anunciou que Larry King, o entrevistador-mor da CNN, acabara de enviar um e-mail para David Goldman. “Como pai de duas crianças, meu coração está com você”, dizia a mensagem.
Enjoado das palavras cruzadas, Goldman levantou da cama e foi até o computador. Havia 736 pessoas on-line opinando sobre a iminente decisão; 46 329 outros já haviam se pronunciado. Dez minutos depois o número dos plugados subiu para 50 800.
Para se ocupar, David Goldman começou a arrumar o quarto. Às oito da noite o celular de Marcos Ortiz tocou. Era Paulo Roberto Andrade dizendo que a decisão ficara para o dia seguinte.
Ricardo Zamariola saiu do quarto para respirar um pouco. “O que ainda me dá confiança é que o Gilmar Mendes poderia simplesmente ter dito que não havia urgência”, afirmou. “E que esperaria o fim do recesso judicial. Para fazer isso, ele precisaria escrever não mais de cinco linhas. Não seriam necessárias tantas horas, como está acontecendo.”
Com o adiamento, Zamariola e Marcos Ortiz precisaram de um quarto para passar a noite. Também essa reserva foi feita sob um nome fictício, “João Soares”. Antes de ir para o apartamento 1001, Zamariola estava irritado: “Como explicar o que está acontecendo? Não tem explicação! As coisas agora estão num vai e volta que independe de mim. Chego a querer que se defina hoje, seja qual for o resultado. Se é para ficar, fica, pronto, perdi. Fiz o que pude.”
A produtora da NBC, o congressista Chris Smith, a porta-voz Orna Blum e a diplomata Karen de Andrade também se recolheram. David Goldman ficou sozinho no 815.
No final de uma entrevista recente, quando mais um aguaceiro torrencial ameaçava tragar São Paulo, Ricardo Zamariola se lembrou de algo. Com a expressão de quem quer surpreender o interlocutor, abriu a primeira gaveta da mesa de trabalho e começou a fuçar. Como a gaveta era rasa e seu conteúdo caótico, tateava com cuidado. “Puxa vida, não estou achando, devo ter levado para outro lugar”, desculpou-se, desapontado.
Procurava a rolha da garrafa de champagne que ele e os dois sócios abriram, em 2004, quando o escritório se mudou para o novo endereço, encostado na avenida Paulista. “Acho que o Marcão e o Paulinho nem sabem que eu a guardei.” Ao dar uma última passada de dedos pelo interior da gaveta, tocou em algo que não reconheceu de imediato pelo tato. Às gargalhadas, extraiu um pé de meia branca amarfanhada e disse: “Caramba, essa está aí há meses, desde a vez em que tive de me vestir e sair de casa voando. Quando cheguei aqui, a secretária me deu um toque e foi até a Paulista comprar um par preto.”
A rolha e o pé de meia explicam um pouco quem é Ricardo Zamariola Jr., um paulistano de 28 anos. Seus sócios e amigos inseparáveis são um pouco mais velhos que ele: Marcos Tranchesi Ortiz, o Marcão, tem 33 anos, e Paulo Roberto Andrade, o Paulinho, 32. O trio tem menos anos de vida do que boa parte dos causídicos que os enfrentaram no caso Sean tem de atuação na advocacia.
Ortiz e Andrade eram recém-formados pela Faculdade de Direito do largo São Francisco quando fundaram a firma, em 1999. Chamaram Zamariola a se juntar a eles naquele pequeno escritório da rua Libero Badaró, instalado no último andar de um prédio cujo elevador não chegava até o alto: o acesso final era pela escada de incêndio. Ricardo Zamariola, que ainda estava no 2º ano da faculdade, estudava de manhã, trabalhava à tarde e ganhava 280 reais por mês. Era o único estagiário e compartilhava o computador com a secretária. Pediu ao avô materno que lhe adiantasse um dinheiro para comprar um terno, em prestações.
Ortiz e Andrade foram colegas no Colégio Santa Cruz, um dos mais conceituados de São Paulo, enquanto Zamariola, como seus dois irmãos, estudou em escolas públicas até pousarem no Mackenzie no secundário. Quem lhe financiou os estudos foi o avô materno, Octavio Elias Rochel, um fanático pela educação que nasceu numa família da zona rural (seu pai era semianalfabeto), e fez carreira na Receita Federal. Quando Junior (apelido de infância do advogado) se formou antes de completar 23 anos, a família teve o que comemorar. E comemorou de novo no ano passado, quando “Zamariola” foi incorporado ao nome do escritório dos amigos.
Os três trabalham agora num conjunto de 210 metros quadrados na alameda Santos. Ortiz e Andrade atuam em direito tributário, enquanto o caçula se especializou na área civil. Foi quase por acaso que lhes caiu na mão o primeiro caso brasileiro regido pela Convenção de Haia, um acordo internacional feito em 1993, que veio a ser subscrito pelo Brasil, em 2000, tratando da proteção de crianças e adolescentes em matérias de adoção.
Em 2002, a consulta telefônica de um pai sueco do vilarejo de Ljusne (2 155 habitantes) foi cair no antigo escritório da Libero Badaró. O cidadão contou que era legalmente separado da mulher, uma brasileira, com a qual tivera um filho. Os três moravam na Suécia, e a guarda da criança, que ele detinha, estava perfeitamente regulamentada por decisão do Judiciário sueco. Um belo dia, a mãe veio para Santos com o menino e nunca retornou. O homem queria saber o que fazer.
Por sorte, uma cunhada de Ortiz, hoje professora de direito internacional, sabia da existência da Convenção de Haia e o orientou. A Convenção nunca havia sido usada nos tribunais nacionais, e o Brasil sequer tinha designado uma Autoridade Central para zelar pelo cumprimento do tratado. “Era tudo tão novo”, lembrou Ricardo Zamariola, “que o Marcos foi absolutamente bem-sucedido”. Entre a formulação da petição inicial e a sentença de uma juíza, passaram-se uns poucos meses. No mesmo dia em que a juíza proferiu a sentença para o retorno, a diligência de busca e apreensão foi cumprida. Marcos Ortiz subiu a serra de Santos para São Paulo dirigindo o seu Golf como um louco, tendo a bordo o sueco e o filho. O menino ainda vestia o uniforme com que saíra da escola. O sócio Paulo Andrade, enquanto isso, providenciava as passagens para um voo naquela noite, com partida de Guarulhos e chegada em Frankfurt. Descontando-se uns vinte minutos de dramática confusão na hora do embarque, devido à chegada da mãe, tudo transcorreu bem. Mais tarde, pai e mãe acabaram por normalizar a questão da guarda.
Pouco depois, o escritório teve um segundo caso. Todos os envolvidos eram brasileiros e residiam nos Estados Unidos. A criança fora trazida para Goiás pela mãe, sem autorização do pai, e coube a Zamariola cuidar do caso. “Eu ainda era o que eles chamavam de estagiário-sócio, ou seja, era verde, estava me formando e o Marcos teve de me supervisionar”, disse ele. O menino foi devolvido ao pai por meio de uma liminar, e o advogado acompanhou a busca e apreensão em Goiás.
Bastaram mais dois casos semelhantes para que o nome de Ricardo Zamariola passasse a integrar a lista de advogados familiarizados com a Convenção de Haia mantida tanto pelo Office of Children’s Issues, do Departamento de Estado americano, como pelo órgão equivalente no Brasil, a Autoridade Central. A partir daí, consultas e contatos tornaram-se rotina. O jovem advogado calcula ter tido algum contato com pelo menos metade dos casos no Brasil que envolvessem a Convenção de Haia.
Ele se tornou referência num assunto que não tinha a menor visibilidade nacional, o que combinava à perfeição com a sua índole. Os dois sócios brincam que, apesar de caçula, ele é o mais velho do trio. “É o mais pé no chão dos irmãos”, contou sua mãe, a dentista Marcia. “É extremamente fechado: levou o Novo Testamento quando foi morar sozinho.” “Somos o casal que fica quietinho nas festas”, descreveu a namorada Aldrin Teubel Sanches, corando nas maçãs do rosto, que revelam sua origem tcheca.
A vida de causídico promissor poderia ter seguido o silencioso curso não fosse uma mensagem eletrônica recebida por Zamariola, em setembro de 2004, de um escritório de advocacia de Red Bank, em Nova Jersey. Assinada por Patricia Apy, a mensagem peguntava se ele estaria interessado na seguinte causa: um pai americano se casara com uma brasileira e tiveram um filho; ela partira de férias com o menino para o Brasil e o retivera no Rio à revelia do pai; a mãe conseguira a guarda do menino por meio de uma Vara de Família carioca e se casara de novo. O caso estava encruado.
Zamariola aceitou de cara. A causa não lhe pareceu tão diferente das que trabalhara, e por isso pediu honorários no valor de 14 mil dólares. Não podia imaginar a extensão do emaranhado jurídico-processual-político-diplomático-emocional no qual estava se metendo. Sem contar a fatalidade que injetou características únicas ao caso: Bruna Bianchi, a jovem mãe de Sean Goldman, morreu, em agosto de 2008, ao dar à luz uma filha de seu segundo casamento. E o padrasto João Paulo Lins e Silva pretendeu assumir a paternidade do enteado.
Na manhã de terça-feira, 22 de dezembro, Ricardo Zamariola acordou sobressaltado, com batidas na porta. “Será que aconteceu alguma coisa durante a noite?”, se perguntou. Era a camareira do Marriott entregando as peças de roupa que os advogados haviam mandado lavar com urgência durante a noite. Marcos Ortiz saíra de São Paulo só com a roupa do corpo, e Zamariola trouxera na malinha apenas bermudas e camisetas de verão. Ambos se vestiram como advogados, com terno e gravata.
Antes das dez da manhã, Ricardo Zamariola já falava ao telefone com Patricia Apy, a advogada de David Goldman nos Estados Unidos. O inglês do brasileiro é fluente e o vocabulário, vasto. Segundo sua mãe, a família ainda morava no bairro paulistano do Butantã quando o filho chegou em casa com um pedido. “Mãe, a Editora Globo está lançando uns cursos de alemão, inglês e francês e eles já chegaram na nossa banca: você compra o de inglês para mim?” A partir dos 13 anos de idade, Zamariola passou a ouvir uma fita cassete atrás da outra. “Ele andava por toda parte escutando as fitas, e depois fazia as lições nos fascículos”, relembrou Marcia Zamariola. Jamais fez curso e só no mês passado pisou, pela primeira vez, num país de língua inglesa. Destrincha o juridiquês do caso Sean em inglês sem qualquer dificuldade.
A disciplina quase obsessiva também o levou a entrar na faculdade de direito aos 17 anos. Cursava o 3º ano colegial, decidiu fazer cursinho pré-vestibular e avisou à turma de amigos: “Eu morro entre as dez da noite de domingo até as seis da tarde de sábado. Não me procurem nesse período pois vou estar estudando.” No fim de semana, caía na farra. Prestou vestibular para a Pontifícia Universidade Católica, o Mackenzie e a Universidade de São Paulo. Desdenhou a aprovação nos dois primeiros, mas quebrou o estrado da cama de tanto pular quando se viu aceito pela escola do largo São Francisco, a mais prestigiosa faculdade de direito do Brasil.
No primeiro telefonema de Paulo Roberto Andrade, que reassumira o posto de vigília na antessala do presidente do Supremo, ele comentou com Marcos Ortiz uma notícia que saíra naquela manhã n’O Estado de S. Paulo: se fosse decidido que o menino poderia retornar com o pai para os Estados Unidos, a avó de Sean queria ir junto no avião. David Goldman era contra. Zamariola, dependendo das circunstâncias, não recusaria. Patricia Apy argumentara que a avó poderia se sentir mal no meio do voo, e o avião teria de voltar ao Rio. Ricardo Zamariola e a americana Patricia Apy só se conhecem por telefone. Nunca tomaram uma medida no caso Sean sem chegar a um acordo antes. Ela cedeu algumas vezes e ele também.
Paulo Roberto Andrade telefonou de novo para contar o que ouvira de um assessor de Gilmar Mendes. Ao saber da existência de um novo recurso da família brasileira no Superior Tribunal de Justiça, o funcionário deixara escapar: “Mas isso é uma chicana, o que esses caras acham que estão fazendo?” Ao ouvir a história, Marcos Ortiz comentou: “Nenhum assessor sai falando assim se a opinião dele não bate com a do chefe. Se fala, é porque se sente respaldado.”
Outra notícia de jornal reproduzia uma frase de Sergio Tostes, advogado dos Lins e Silva: se Sean Goldman pudesse ir para os Estados Unidos com o pai, embarcaria com uma camisa da Seleção do Brasil. Especulou-se se David Goldman também não deveria vestir uma camisa do Brasil. “Esse teatro deles acaba gerando antipatia junto à opinião pública brasileira”, opinou Zamariola. “Nosso negócio não é marketing.”
A produtora Benita Noel telefonou do quarto 815 para avisar que estava pronta para colocar David Goldman no ar, ao vivo, assim que Gilmar Mendes falasse. Contou que o avião fretado pela NBC para a viagem, um Gulfstream G-4, teria lugar para Zamariola e Ortiz. Chris Smith voltaria num voo comercial, uma vez que deputados americanos são proibidos de pegar carona em aviões privados. Na televisão do quarto, ligada o tempo todo, o noticiário sobre o acidente com o cineasta Fábio Barreto se revezava com o suspense em torno do caso Sean.
Ortiz animou Zamariola a viajar para os Estados Unidos:
– Você tem que ir até o final, cara. Tem que embarcar junto para ver o menino chegar nos Estados Unidos.
– Quando a decisão sair, e for favorável a nós, o ideal seria que o Paulinho conseguisse que o Supremo oficiasse logo o Tribunal Regional Federal aqui no Rio – disse Zamariola, evitando o assunto de também ele ir aos Estados Unidos.
E completou:
– Tenho certeza de que o texto da decisão vai estar na internet antes de o Paulo poder nos mandar uma cópia.
– Esse protagonismo do Gilmar é de uma visibilidade acintosa: ele solta uma nota dizendo que vai decidir no dia seguinte! Nunca vi nada igual, sobretudo no Supremo – comentou Ortiz.
– Dado o nível dos outros dois Poderes, acaba sendo mais fácil buscar visibilidade no Supremo. Falem o que quiserem, mas o Judiciário ainda tem as pessoas mais bem preparadas. Não necessariamente as mais éticas, mas as mais bem preparadas – rebateu Zamariola.
Faltava pouco para as 11 horas e Paulo Roberto Andrade avisou que o ministro Gilmar Mendes acabara de chegar ao Supremo e se fechara no gabinete. “E eu que achei que ele fosse chegar às dez da manhã já com a cópia da decisão na mão”, resmungou Ricardo Zamariola.
Andrade voltou a ligar e contou que Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça de Lula, acabara de chegar e se sentar a seu lado. Zamariola e Ortiz ficaram perplexos e preocupados. Mandaram uma mensagem de texto ao sócio em Brasília pedindo que descobrisse qual assunto levava o poderoso Thomaz Bastos ao Supremo quase às vésperas do Natal.
Tocou o celular de Ortiz. Não, a ligação não era de Brasília. Era o seu filho Eduardo, de 4 anos, que contou ter ganho um Lego de presente e pediu ao pai para ajudar a montá-lo. O telefone soou de novo. Dessa vez era Andrade. “E aí, nada?”, perguntou. “Quem saiu? O Thomaz Bastos também saiu? Ficou só sete minutos? E o chefe de gabinete, também foi almoçar? Bom, você fica aí, não sai daí.”
Até as três da tarde ninguém do Supremo voltara do almoço. Andrade e os dois advogados da parte contrária haviam saído juntos para almoçar – assim nenhum dos lados abria a guarda.
Zamariola ficou sentado na beira da cama ainda desarrumada, pois nem ele nem Ortiz saíram do quarto e deixaram a camareira trabalhar. De cabeça baixa entre as mãos, ficou calado um bom tempo. Não sabia se passaria o Natal em casa, nos Estados Unidos ou naquele quarto.
Paulo Andrade telefonou e jogou uma laje sobre os ombros dos dois parceiros: uma segunda medida cautelar, feita pela família brasileira de Sean, chegara ao Superior Tribunal de Justiça. Marcos Ortiz se desfez da gravata, soltou o colarinho e tirou o sapato. “No fundo, estamos apenas assistindo. Não podemos fazer mais nada. Eles fazem o que querem”, disse Zamariola. Mas, por via das dúvidas, determinou que o escritório de São Paulo enviasse por malote de entrega rápida a certidão de óbito da mãe de Sean.
Andrade enviou uma mensagem de texto aos amigos: “Só para vocês saberem, já decorei a sequência de ministros do Supremo desde a década de 30.” Descontando a pausa noturna e o almoço às pressas, calculava que estava há mais de vinte horas na mesma antessala do 3º andar do prédio do STF. Sem janela e sem nada para ler.
Às quatro da tarde, Aldrin, a namorada de Ricardo, telefonou pedindo notícias. “Nada. Vai dar tudo errado”, disse-lhe Zamariola. “Vai ser um papelão. Como é que a gente chega ao ponto de se perguntar se o voto do presidente do Supremo vai valer alguma coisa?” Abatido, ele se lamentou: “Que absurdo. O David pagando tudo isso aqui – esse quarto – e eu, de gravata e meia, não fazendo nada o dia inteiro.” Cinco andares abaixo, David Goldman, inescrutável, voltava às palavras cruzadas. Zamariola recebeu uma chamada de seu pai e lhe resumiu o estado de espírito: “É uma desgraça, pai. Talvez eu chegue aí só no dia 24.”
Começou o Jornal Nacional, acompanhado com interesse nervoso pelos apartamentos 815 e 1001. Nenhuma novidade sobre o caso Sean.
Sem qualquer genealogia no mundo jurídico, Zamariola conduziu o caso virtualmente sozinho, do ponto de vista técnico. Teve como auxiliar uma estagiária em São Paulo e uma advogada contratada só para acompanhar o trâmite das ações no Rio.
Do lado oposto, ergueu-se uma plêiade de grandes escritórios e nomes de sonoridade intimidante no mundo jurídico. Ao todo, foram sete. Luiz Cláudio Fábregas, filho de desembargador do Tribunal de Justiça e irmão de uma juíza de Família do Rio, conduziu os assuntos enquanto estavam na Justiça estadual. Atuando há mais de 32 anos no ramo, Fábregas é o atual presidente da seção fluminense do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
Na esfera federal, Bruna Bianchi foi defendida pelo escritório Binenbojm, Gama & Carvalho Britto Advocacia. Com a sua morte, o caso começou nas mesmas mãos de Flávio Britto, migrou para as de Carlos Eduardo Sampaio e se assentou no escritório de Sergio Tostes, cujo sócio é o ex-presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Miguel Pachá. O escritório, com três andares, na rua da Assembleia, foi fundado em 1973, oito anos antes de Ricardo Zamariola nascer. Conta com 65 advogados e clientes corporativos de peso.
Em Brasília, a família brasileira de Sean contou com a firma de advocacia de Vinicius de Figueiredo Teixeira, filho de um ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça. Para uma ação ajuizada contra David Goldman por reparação de dano moral, trabalharam Renato Arouca Höfke Costa e Davi Medina Vilela. Completando o buquê, quem assinou um recurso de apelação em nome dos avós de Sean foram integrantes do Dunshee de Abranches Advogados.
Tudo isso sem contar a parte epidermicamente envolvida no caso – Paulo e seu filho João Paulo Lins e Silva, que calcula ter participado em mais de mil causas de direito de família, conforme declarou à revista Veja, em julho de 2009. “Era realmente um contra um milhão”, resumiu Paulo Roberto Andrade.
Os honorários do advogado brasileiro de David Goldman foram acrescidos em 45 mil dólares com a morte abrupta de Bruna e a entrada em cena do padrasto como parte adversária. A muralha à frente de Ricardo Zamariola não era apenas financeira. Por duas vezes, quase jogou a toalha. A namorada Aldrin lembrou que houve épocas em que ele, de tão desgastado e fatigado, não conseguia descansar. “Não consigo lutar contra uma teia que desconheço”, dizia ele.
Os parceiros de escritório tomavam a iniciativa de ajudá-lo, mas 90% das ponderações jurídicas já haviam sido feitas pelo caçula. “O domínio que Ricardo tinha sobre o caso era absurdo, de tão completo”, disse Paulo Roberto Andrade.
Em outubro de 2008, Zamariola disse a David Goldman que contrataria um escritório de renome, no Rio. O americano lhe deu sinal verde, mas impôs a condição de que não se afastasse do caso até o seu desfecho. Zamariola sondou seis escritórios de vulto e os seis recusaram. Cinco deles responderam que não advogariam contra a família Lins e Silva. O sexto esclareceu estar impossibilitado por já ter conhecimento do caso através da outra parte.
Ricardo Zamariola desistiu da procura e saiu da crise mergulhando ainda mais no trabalho, que só aumentava. Desde a entrada em cena de João Paulo Lins e Silva, seus adversários recorreram a dez agravos de instrumento, um mandado de segurança, uma ação cautelar, quatro habeas corpus, duas apelações, uma exceção de suspeição, um recurso ordinário e uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ajuizada formalmente pelo Partido Popular).
Na quarta-feira, dia 10 de junho de 2009, Zamariola fez a sua quarta sustentação oral na vida. Só que, em vez de enfrentar um tribunal de 1ª instância, como é o corriqueiro, falou no Supremo Tribunal Federal em Brasília, e com transmissão ao vivo. Ele rabiscou suas anotações na noite de véspera, num quarto de hotel. Ao subir à tribuna, parecia um colegial submetido a julgamento por um ateneu de sábios. Seu topete teimava em se rebelar e a beca, obrigatória naquele cenário, parecia feita para um homem de porte maior.
A sessão plenária começou às duas da tarde. O jovem advogado iniciou sua sustentação imediatamente depois da de Sergio Tostes, e começou com um tropeço de desnortear um veterano: antes de pronunciar a primeira palavra, tomou água do copo à sua direita. Era o copo de Tostes, que ainda não havia sido recolhido pelo copeiro. Houve sorrisos condescendentes da plateia, sobretudo dos adversários.
“Eu não conseguia olhar para a televisão, e mal conseguia escutar, eu tremia”, recordou Paulo Andrade. De início, a voz saiu arranhada e seca. Foi quando Zamariola saiu do casulo. Não demorou cinco minutos para arrebanhar a atenção de juízes e plateia. Foi crescendo, se firmando, pontuando, cravando a mensagem simples: o menino Sean tem um pai. Desmontou, um por um, os argumentos da família para invalidar o resultado de uma avaliação psicológica de Sean, conduzida por três peritas designadas pela Justiça Federal, e plantou ali a estaca que viria bloquear a permanência do menino no Rio. “Enquanto acompanhava com agonia”, contou Paulo Andrade, “eu pensava: caramba, como esse cara é brilhante, como ele é melhor que eu!”
Antes do caso Goldman, Ricardo Zamariola jamais pensou em algum dia se tornar juiz. “Mas após ter lido a sentença dada por Rafael de Souza Pereira Pinto, da 16ª Vara federal, que primeiro concedeu a guarda do menino ao pai, tive vontade de algum dia poder redigir uma peça tão cristalina”, disse. “Quanto eu gostaria de ter feito isso. É bonito saber honrar a toga – ela pode ser tão nobre!”
Por enquanto, as atenções do advogado estão em esfera inteiramente diversa. Ele e um grupo de vinte amigos embarcam no próximo dia 3 de junho para a África do Sul. Será sua segunda Copa do Mundo e, a depender dele, repetirá a romaria a cada quatro anos, se puder. Em plena efervescência do caso Sean, tratou sozinho da reserva das passagens, do aluguel de três motorhomes, e da elaboração de mapas e estratégia para conseguir ingressos na hora. Se for tão bem-sucedido quanto na tribuna do Supremo, corre o risco de assistir à final.
Depois do Jornal Nacional, Orna Blum saiu do quarto de David Goldman, que queria ficar sozinho se a decisão ainda fosse anunciada, e foi para o dos advogados. Queria saber se eles poderiam falar com a imprensa aquartelada à frente do hotel. A produtora Benita Noel, da NBC, também se instalara no apartamento de Zamariola e Ortiz com um cinegrafista.
Orna Blum recebeu ligação de um repórter da Associated Press e repetiu alto o que ele lhe dizia em inglês, com voz agitada: AP is reporting STF twitter, that Mendes is coming out in support of the Goldman side…
Marcos Ortiz deu um urro, seguido de um soco no ar, ao ver as palavras “cassa a liminar e devolve o menor ao pai” no seu celular. Zamariola, prostrado de costas na cama, quase não se moveu. Levou um tempo até cair no abraço do parceiro.
Ricardo Zamariola telefonou em seguida para Patrícia Lamego, da Autoridade Central: “Ganhamos, cara, ele cassou a liminar. Ainda não sei detalhes da decisão, mas te aviso logo que eu tiver.” Marcos Ortiz pediu a Paulo Roberto Andrade, em Brasília, que não falasse com a imprensa por enquanto, e não saísse do Supremo até que ficassem claros os termos da decisão de Gilmar Mendes.
“Agora, por favor, me expliquem o que temos, em inglês”, pediu Orna Blum, cujo celular tornou-se objeto quase animado, tantas as chamadas que recebeu. “What is cassa a liminar?”
Houve minutos de confusão até que Ricardo Zamariola conseguisse falar com o cliente: “David? Ainda não vi a íntegra. Preciso ler primeiro o texto da decisão. Mas já passamos por isso antes e não conseguimos executar a sentença. Portanto, vamos ler a íntegra com calma e ver por onde começar. Sim, vá descansar e conversamos logo que eu tiver tudo em mãos.”
Benita Noel desceu pela escada e bateu à porta do quarto de David Goldman. Ele estava sentado numa cadeira, com o laptop à sua frente, quando a produtora começou a filmar a primeira reação pública daquele homem de 42 anos cuja vida dava uma cambalhota. “Feliz? Surpreso?”, perguntou ela. A voz de David saiu monocórdica, com uma pergunta que refletia a cautela de seu advogado: “Quando vamos embora? Quando isso vai acabar realmente?”
Indagado sobre o que pensava de seus advogados brasileiros, Goldman soltou-se um pouco mais: “Eles são grandes caras. Com advogados como eles, e com decisões como as tomadas recentemente, o futuro desse país me parece promissor.”
No seu quarto, Marcos Ortiz telefonou para o plantão do Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro. Queria saber onde estava o fax com a decisão de Gilmar Mendes. Em vão. A plantonista judiciária estava em casa, e não no prédio do TRF.
Ricardo Zamariola, enquanto isso, desvendou um mistério. “Ouve só isso aqui, Marcão”, disse ele a Ortiz, lendo a notícia: STF recebe pedido de liberdade para Roger Abdelmassih. “Está explicada a ida do Thomaz Bastos ao Supremo. E não tenha dúvida: o Roger vai passar o Natal em casa.” Em seguida, atendeu à ligação da namorada: “Fala, meu amor, e aí? Calma, calma que ainda tem, vamos esperar. Fica com o celular ligado. Depois te ligo. Um beijo.”
Aldrin conhece Zamariola há dez anos. Já namoraram, se separaram e há um ano estão juntos novamente. Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica há três anos, ela contou que a profissão a ajudou a perceber a dimensão pessoal que o caso Sean foi tomando para o namorado. “Ele me perguntava: ‘Você acha que o menino vai conseguir se readaptar aos Estados Unidos?’ Ele se sente corresponsável pela entrega da criança ao pai, e considera David Goldman um pai sólido. Para ele, a causa não é um mero negócio.”
Benita Noel pediu autorização a Zamariola para levar ao ar a gravação feita com eles na hora do anúncio. O advogado foi categórico: “Não, não e não. Você pode mostrar o David, não a nós. Por favor, a criança ainda não está no avião. Mais tarde, quando tudo acabar, tudo bem.”
A íntegra da decisão de Gilmar Mendes finalmente apareceu, no site Consultor Jurídico. Ortiz e Zamariola leram-na em voz alta, velozmente: “Assentada a sentença jurídica sobre as premissas de fato, não há mais como contestá-las pela via ordinária, quiçá pela via extraordinária…” Ortiz se maravilhou: “Olha que tesão essa parte!”
Marcos Ortiz preocupou-se com detalhes práticos do dia seguinte. “A gente não vai dormir um segundo hoje”, disse. “E não mandamos as camisas para a lavanderia, que já fechou. Vamos ter de usar as mesmas de novo.” Parecia hora do recreio no quarto 1001.
Mas logo os advogados voltaram à rotina de apreensão. Imaginaram que a família materna não entregaria Sean até o Superior Tribunal de Justiça decidir os recursos pendentes. Planejaram a estratégia do dia seguinte e foram dormir às duas e vinte da madrugada.
Em Brasília, Paulo Roberto Andrade capotou num quarto do Hotel Mercure, cuja diária é de 230 reais. Era o único que conhecia na capital, por ter se hospedado lá em 2008, quando assistiu à final do Brasileirão entre São Paulo e Goiás (“1 a 0 para nós, o jogo do hexacampeonato!”, esclareceu). Na noite anterior, dormira na casa de uma tia, no Lago Norte, mas não queria acordá-la àquela hora da madrugada.
Marcos Ortiz e Zamariola levantaram às 7h20 de quarta-feira, 23 de dezembro. Vestiram as mesmas camisas, gravatas e meias do dia anterior, sem lavar. Tomaram café da manhã e foram de táxi para a rua do Acre, onde fica a sede do Tribunal Regional Federal. O advogado dos Lins e Silva, Sergio Tostes, entrara em contato com a Advocacia Geral da União para indagar sobre garantias de proteção para Sean em território americano. Eles acharam que era sinal de que não haveria disputa nem briga.
Com a batalha encerrada no STF, o front brasiliense poderia se transferir para o Superior Tribunal de Justiça, e Paulo Roberto de Andrade se dirigiu para lá. Encontrou o prédio vazio, exceto pelas faxineiras que lavavam o piso. Sua missão no Distrito Federal estava encerrada. Numa banquinha de livros de bolso na frente do STJ, comprou a Lira dos Vinte Anos, de Álvares de Azevedo, para ler no voo para São Paulo.
Zamariola e Ortiz foram recebidos no tribunal da rua do Acre pelo presidente do TRF. Souberam então que o prazo para a entrega voluntária do menino expiraria no dia seguinte, às nove da manhã, no consulado americano do Rio. Almoçaram num café das proximidades e fizeram hora até o encontro com Sergio Tostes para negociar o formato de entrega de Sean. Por sugestão de Daniel Levy, o procurador-chefe da Advocacia Geral da União, a reunião foi marcada na sede da AGU, na avenida Rio Branco.
Às quatro e meia da tarde, a reunião começou. Sergio Tostes, seu irmão, o também advogado André Tostes, Ricardo Zamariola e Marcos Ortiz sentaram-se frente a frente numa longuíssima mesa. Daniel Levy ficou na cabeceira, no papel de mediador.
Pelo relato dos dois advogados paulistas, a reunião durou quase duas horas e teve momentos de tensão. Sergio Tostes adiantou o primeiro item. Queria uma reunião entre David Goldman e Silvana Bianchi: a avó do garoto queria fazer recomendações sobre hábitos alimentares e outros cuidados com o garoto. Zamariola disse não ter nada contra. Acrescentou que o encontro poderia ser em qualquer lugar, menos na casa da avó. A sugestão de que pai e avó se encontrassem no consulado americano foi aceita.
“Em seguida, sugeri buscarmos o menino em casa”, contou Zamariola. “Faríamos um pedido à Polícia Militar para que o quarteirão do prédio fosse fechado, para evitar o acesso da imprensa. A família desceria com Sean, entraríamos no condomínio, o menino entraria no carro, que já estaria estacionado na porta, e iríamos embora.” Sergio Tostes não quis que a entrega fosse mediada por Karen de Andrade, a chefe do serviço diplomático do consulado americano. Zamariola disse que poderia tentar levar outro diplomata.
Tostes pleiteou então que a avó viajasse junto com o neto para os Estados Unidos. Zamariola explicou que, sabendo que o pedido seria feito, havia consultado seu cliente e a advogada dele nos Estados Unidos. E disse:
– Não consigo atender esse seu pedido.
– Mas, se você não é o meu interlocutor, então quero falar com quem é. Me liga com a pessoa encarregada da embaixada americana ou com quem toma essa decisão.
Zamariola disse que a questão não era de interlocução, e propôs que acertassem os pontos mais fáceis com os respectivos clientes. Depois veriam a questão da viagem da avó.
Antes de Zamariola sair da sala para consultar David Goldman, Marcos Ortiz quis saber de Tostes se o que já estava acordado passava a valer: a reunião da avó com o pai de Sean no consulado e a entrega do menino no condomínio.
– Qualquer que seja o resultado do terceiro ponto, os dois primeiros já estão definidos, certo? – perguntou.
– Certo – respondeu Tostes.
Ao voltar para a sala, Zamariola relatou o resultado da consulta a Goldman: “A reunião com a avó pode ser hoje, às 18 horas, no consulado. E passamos no condomínio para buscar o menino, sem problema. Mas não consigo fazer a avó viajar.”
Segundo os paulistas, o tempo mudou. Sergio Tostes levantou voz, amassou papéis que estavam na mesa e disse:
– Então não tem mais acordo sobre nada. E a visitação, como é que vai ser nos Estados Unidos?
– Esse assunto não é para ser discutido agora – respondeu Marcos Ortiz.
– Quero saber de visitação, sim – insistiu Tostes. – Vocês não estão pensando no bem-estar da criança. Vocês não estão me dando nada, não fazem concessão alguma. O que vocês querem é que a ordem seja cumprida. Então a ordem vai ser cumprida fielmente, como determinou o ministro Gilmar Mendes. E vou chegar ao consulado com a criança andando.
O mediador Daniel Levy argumentou que a ida a pé ao consulado iria expor a criança ao tumulto com a imprensa. Tostes retorquiu que era a parte adversária que exigia que fosse assim. Sugeriu-se que Sean entrasse com os carros da família pela garagem do consulado, que estaria devidamente isolada.
– Se a entrada for pela garagem – disse Tostes –, a minha cliente vai sair dessa história com a imagem de sequestradora. Não posso permitir isso. Vou cumprir a ordem como determinou a autoridade. Vou entrar andando. Vou estacionar a dois quarteirões do consulado e chegar andando com a criança.
O encontro terminou sem acordo.
Os advogados relataram a David Goldman o que acontecera. Informada, a embaixada americana soltou uma nota dizendo que estava à disposição para facilitar a entrada e garantir a privacidade de Sean na chegada ao consulado.
Antes de encerrarem o dia, às onze e meia da noite os três sócios definiram em conjunto, pelo telefone, que Ricardo Zamariola viajaria no avião fretado pela NBC até Sean Goldman pousar nos Estados Unidos. “Pode ser interessante para o escritório”, disse ele a Paulo Roberto de Andrade. “Vou amanhã e volto no domingo”, repetiu antes de cair na cama do seu quarto no hotel.
Ricardo Zamariola acordou mal, na quinta-feira, 24 de dezembro.Sentia-se deprimido por ter de passar o Natal sozinho em terra estrangeira. Às nove da manhã, os doze andares do edifício comercial Itaporanga, na alameda Santos, estavam às traças. Apenas no 6º andar havia sinal de vida. Lá estava Paulo Roberto Andrade, de camisa branca modelo clean, refeito da maratona brasiliense. Ele é tido como o “psicólogo” do trio de advogados, enquanto Ortiz seria o “otimista” e Zamariola, o “denso”. Ele contou que os dois sócios fundadores ainda cogitaram que Ortiz fosse junto com o caçula para os Estados Unidos, mas não houve como convencê-lo.
A produtora da NBC Benita Noel, por sua vez, acordara disposta: passaria o Natal com a filha, Jessica. Os dias de gato e rato com a equipe da rede ABC, com uma espionando a outra nos corredores do Marriott noite adentro, iriam, por fim, acabar. A concorrente descobrira a existência do voo fretado pela NBC e o dique de civilidade quase se rompeu. As acusações de que a NBC teria feito paycheck journalism (jornalismo de talão de cheque) se estenderiam por muito tempo ainda. Mas ninguém desconfiou que o piloto, o copiloto e o comissário de bordo do Gulfstream-G4 estiveram hospedados no mesmo hotel, e circularam com pastas com a logomarca Exxon, confeccionadas por eles mesmos a título de despiste.
Com a operação de partida sob sua responsabilidade, Benita saiu direto do hotel para o aeroporto do Galeão, para aguardar ali a chegada de David e Sean Goldman. Morena graúna, ela escondeu os cabelos embaixo de uma peruca loiríssima comprada dias antes na Perucas Lady da rua Barata Ribeiro, por 600 reais. Partiu despercebida numa van alugada.
Como previsto, um bafafá se armou nas imediações do consulado americano, no centro do Rio. Emissoras brasileiras e americanas transmitiram ao vivo a chegada caótica da comitiva de Sean Goldman. A pé e pela porta da frente, como prometera Sergio Tostes. O que poucos viram foi a continuação do descompasso depois que a comitiva entrou e as portas se fecharam.
“Eu quero falar com o David. Ele precisa vir aqui falar comigo”, exigiu Sergio Tostes. Um dos paulistas lhe disse que advogado fala com advogado, e que David Goldman se encontrava no 2º andar, onde falaria com a avó de seu filho e com mais ninguém. “Ele tem de ser homem para vir aqui falar comigo. Se não vier, não é homem”, insistiu o advogado.
Seu alvo seguinte foi o congressista Chris Smith, a quem apontou com uma acusação: “Este senhor está me provocando!” E complementou, em inglês: “Espero que o senhor perca a próxima eleição.”
A Orna Blum, que perguntou por que ele não havia usado a entrada pela garagem, o advogado respondeu primeiro em português: “Isto é um protesto porque o menino está viajando sozinho.” E em inglês: “We are in Brazil, this is our country. This is a protest.”
Eram nove e vinte da manhã quando Paulo Roberto Andrade atendeu uma ligação de Marcos Ortiz, que lhe contou que pai e filho conversavam sozinhos, no 2º andar do consulado.
Após as despedidas de neto e avó, David Goldman, Sean Goldman, Karen de Andrade e um segurança foram num primeiro carro para o Galeão. Do segundo carro, que conduzia Chris Smith, Orna Blum, Marcos Ortiz, uma enfermeira e um segurança, Ricardo Zamariola enviou uma mensagem de texto para a namorada: “Acho que vou tirar férias.”
Ele se despediu de David Goldman na sala de espera da Infraero. Dali, foi direto para o terminal doméstico e embarcou num voo para Congonhas. Faltavam dez minutos para o dia de Natal.
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