Mayra e Júlia
Custo a entender por que Mayra Andrade ainda não conquistou parcelas mais significativas de público entre os brasileiros. Seu nome até que circula bem em determinados nichos, muita gente já topou com ele, mas poucos efetivamente adentraram o universo da jovem cantora do Cabo Verde.
Custo a entender por que Mayra Andrade ainda não conquistou parcelas mais significativas de público entre os brasileiros. Seu nome até que circula bem em determinados nichos, muita gente já topou com ele, mas poucos efetivamente adentraram o universo da jovem cantora do Cabo Verde. Quase não faz shows aqui no Rio, é pouco tocada e comentada – pelo menos nos círculos que frequento. Uma época não é apenas o que nela é produzido, mas também o que ela delineia como diferença, como exceção.
Mayra é grande. Canta com o corpo inteiro – com os braços, os olhos, as mãos, os cabelos, a pele morena e até a boca. Sua voz um pouco falha traz todas aquelas “sujeiras” e imperfeições, aqueles sons rascantes e guturais que dão ao som uma qualidade curtida, envelhecida, e o associam a conteúdos da experiência vivida. No palco, ela propaga a segurança e a naturalidade de uma velha Évora – que bem poderia ser o nome de uma árvore centenária, daquelas que fincam a raiz fundo na terra, para se lançarem ao alto com mais brio. Sua relação com a música brasileira é intensa, porém eletiva. Mayra canta com o desprendimento de quem teve a sorte de não ter Maria Bethânia, Gal Costa e Elis Regina pesando sobre os ombros. Canta com uma leveza que anda distante da música brasileira. Uma leveza ágil que nada tem a ver com a lentidão arrastada, pesada, de boa parte de nossa produção musical recente. Leveza que é alegria despreocupada, força vital, vontade de beleza – foi o que senti quando ouvi o refrão de Stória stória.
A música de Mayra é como um sopro de vida que vem da África. Uma mensagem. Olhando ao redor, às vezes penso: o Brasil precisa ser re-africanizado. Quando escuto as canções que Mayra canta em língua crioula, tenho a impressão de visitar uma dimensão paralela do português do Brasil, como se avistasse subitamente o imponderável de nossa própria gênese histórica. Acho lindo o verso de Odjus fitchádu que fala da “álma livri na tempú” – o “tempo” surgindo em sua dimensão feminina: não mais o tempo engessado do compromisso, da ansiedade produtiva, do progresso e da contagem regressiva pela morte do mundo natural, mas o tempo maternal e acolhedor, tempo curvilíneo, delicado, criador. Tempo com “alma gigante”: a tempo.
Há poucas semanas atrás tive a oportunidade de ver um show da carioca Júlia Vargas. Fazia muito tempo que uma jovem cantora não me empolgava tanto. Ao escutá-la cantando, senti a mesma evidência de talento especial que experimentei ao ver pela primeira vez Neymar jogando bola. É impressionante a naturalidade com que a voz de Julia passeia pelas canções, sem nunca errar um passe. O timbre é grave, encorpado, e o repertório expressivo imenso. Não há qualquer distância entre intenção e gesto; tudo simplesmente existe. O ato de cantar equivale ao de respirar: é banal, e ao mesmo tempo sublime. É uma cantora que consegue insuflar vida em cada canção que lhe cai nos lábios. Se o meu instinto não falha, há algo de misterioso naquilo. Foi prazeroso ouvi-la deslizar sobre algumas canções do repertório clássico brasileiro.
Mas o melhor do show aconteceu quando ela se distanciou dele, e, para minha surpresa, engatou em língua crioula uma canção que Mayra Andrade já gravou (se não me engano, era Kenha ki ben ki ta bai). Depois disso, ainda pude ouvi-la cantar com inacreditável virtuosismo o clássico The click song – a tradicional canção dos Xhosa, da África do Sul, que viajou o mundo na voz de Miriam Makeba – executando as estranhas consoantes em “click” (no céu da boca?) no meio do fluxo da voz, encaixando-as em momentos rítmicos surpreendentes. O show cresceu. No mesmo instante me lembrei da primeira vez em que ouvi Mayra: ela cantava uma canção do Caetano, e eu não achei nada demais; depois eu a ouvi em um programa de TV, cantando novamente outra canção brasileira: nada demais. Era estranho perceber o modo como a cabo-verdiana ficava “diminuída” ao cantar músicas brasileiras. A força de Mayra não está apenas na voz, mas no frescor da tradição que ela encarna. Da mesma forma, Júlia Vargas me pareceu grande apesar da música brasileira – e ainda maior quando se afastava dela. É possível que determinada tradição da música popular brasileira tenha se tornado tão poderosa e onipresente que acabou virando um obstáculo à expressão singular das novas cantoras. No mais das vezes, as novas cantoras tornam-se espectros a serviço dessa entidade. Algo semelhante acontece com muitos novos compositores. É hora de abrir novamente essa tradição aos influxos de outros ventos; gostaria que eles viessem da outra margem do Atlântico.
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