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    Montagem: Paula Cardoso

questões literárias

Melhores leituras de 2021

A equipe da piauí comenta alguns livros marcantes do ano que passou

07 mar 2022_13h39
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Estatística, história, violência policial, ciência, romance e poesia – tem um pouco de tudo na seleção de livros feita pela equipe da piauí. Se você ainda não leu, dá tempo.

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JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO

O título do livro é uma mentira. Quem já lidou profissionalmente com estatísticas sabe que números, bem torturados, revelam qualquer coisa (apud Ronald Coase*). Afora o título, porém, Os Números Não Mentem (400 páginas, editora Intrínseca) consegue evitar submeter dados econômicos mundiais a sessões de waterboarding. Tampouco coloca informações sobre consumo de alimentos ou produção de energia no pau de arara. Ao contrário, suas “71 histórias para entender o mundo” são baseadas em evidências sólidas e bem referenciadas. Pode-se contestar algumas interpretações do autor – o tcheco Vaclav Smil –, mas dificilmente os fatos que ele apresenta para substanciá-las. Definitivamente, o professor emérito da Universidade de Manitoba (Canadá) não é um acadêmico da escola Brilhante Ustra.

Para além do uso criterioso de informações quantitativas, os grandes méritos de Smil são o poder de síntese (raros capítulos chegam a cinco páginas), a capacidade de simplificar temas complexos sem banalizá-los (“os carros ficaram pesados porque parte do mundo ficou rica e os motoristas ficaram mal-acostumados”) e a escolha de assuntos que unem interesse público ao interesse do público. Os 71 capítulos estão divididos por sete grandes temas: as pessoas, as nações, as invenções, o transporte, a energia, os alimentos e o meio ambiente. Elencados assim, sem a verve de Smil, sugerem leitura maçante, ou, para numerofóbicos, uma sessão na cadeira do dragão. Nada disso. É livro para ler numa sentada. Ou não.

Mas não há que se ter pressa com o livro. Muitas das suas conclusões, tiradas e insights merecem reflexão. “Neste livro tentei mostrar (…) que até mesmo números bastante confiáveis devem ser vistos em contextos mais amplos”, explica Smil no epílogo. E ensina: “Uma classificação numérica rígida, com base em diferenças minúsculas, ilude em vez de informar. Arredondamento e aproximação são mais importantes que uma precisão desnecessária e injustificada”. Pois é, se bem torturados, números também podem mentir.

(*) Atribui-se ao ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1991, o britânico Ronald Coase, a frase “if you torture the data long enough, it will confess to anything” (Se você torturar os dados por tempo suficiente, eles confessarão qualquer coisa).

CONSUELO DIEGUEZ

O ano passado foi marcado por crises sucessivas entre o presidente Jair Bolsonaro e o alto comando das Forças Armadas. A primeira e mais grave delas foi a demissão, de uma só vez, do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Tudo porque o quarteto não aceitou se submeter às políticas erráticas de Bolsonaro para a pandemia.

O desgaste na relação do presidente com vários oficiais de peso da instituição deixa a dúvida de como os fardados se comportarão nas eleições de 2022. Manterão o apoio a Bolsonaro, como fizeram em 2018, ou tenderão à neutralidade? Como agirão se o presidente continuar questionando a segurança das urnas eletrônicas? Ou caso fique claro que o eleito será o petista Luiz Inácio Lula da Silva? É prematuro se responder a estas indagações específicas. Mas elas apontam para outra pergunta crucial. Por que, passados quase quarenta anos do fim da ditadura militar, a sociedade brasileira ainda se ocupa – e se preocupa – com a opinião dos quartéis sobre as eleições? E para essa pergunta, já existem respostas.

Elas estão em dois livros lançados no ano passado. Os Militares e a Crise Brasileira (268 páginas, Editora Alameda), uma compilação de artigos de vários especialistas em Defesa, organizado por João Roberto Martins Filho, e General Villas Bôas, Conversa com o Comandante (244 páginas, da Editora FGV), com organização de Celso Castro. Sob pontos de vistas diferentes, os livros revelam que, na verdade, os militares nunca se conformaram em perder poder, influência e prestígio. A ponto de o general Villas Bôas soltar o tuíte da ameaça à véspera de o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir se Lula poderia ou não concorrer à Presidência, em 2018. Depois do tuíte de que o Exército atenderia ao “clamor da população”, o STF negou o habeas corpus a Lula, que foi preso três dias depois.

Através das leituras – seja pelo lado dos que consideram a ingerência militar indevida, ou do general que acredita no papel salvacionista das Forças – conclui-se que, embora formalmente tenham se submetido à democracia, os nossos militares nunca introjetaram os valores democráticos. A ponto de acharem que, em situações de crise, devem ser chamados a opinar (e até a agir). Se não têm respostas para o futuro, os livros explicam como chegamos até aqui. Compreende-se, afinal, o porquê de os militares brasileiros não terem se recolhido aos quartéis, como fizeram seus pares nas ex-ditaduras da América do Sul, e se conformado em deixar para os civis a tarefa constitucional de decidir sobre os destinos políticos da nação.

FERNANDO DE BARROS E SILVA

No segundo mandato de Lula, o PT viveu seu momento apoteótico no poder. Ninguém nessa época se ocupava dos militares, afora um ou outro estudioso do assunto. Varridas do poder, as Forças Armadas não faziam parte das discussões públicas sobre os rumos do país. O Ministério da Defesa estava nas mãos de Nelson Jobim, um civil de currículo graúdo: havia sido ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso e ministro do Supremo Tribunal Federal, chegando a presidir a Casa no primeiro mandato de Lula.

Em 2008, na gestão de Jobim, foi inaugurada sem nenhum alarde dentro do Museu Histórico do Exército, sediado no Forte de Copacabana, a Sala dos Presidentes Militares. Ali o visitante podia (e ainda pode) ler que o Brasil foi presidido em nove momentos por “ilustres chefes militares”. Humberto Castelo Branco, primeiro presidente militar depois do golpe de 1964, é tratado como “um dos principais líderes do movimento cívico-militar de 31 de Março”. Emílio Garrastazu Médici, em cujo governo a tortura e a morte de opositores do regime chegou ao ápice, é descrito por sua vez como aquele que “promoveu um grande crescimento econômico”, enquanto as Forças Armadas são celebradas pelo suposto papel decisivo na “garantia da paz, da unidade nacional e da democracia”.

Quem chama a atenção para a maneira edificante com que os militares se retrataram nessa sala de museu é a jornalista Natalia Viana, em seu Dano Colateral (344 páginas, Objetiva, 2021). Estávamos em 2008, mas os militares jamais abandonaram a narrativa fantasiosa a respeito do regime de força e arbítrio que implantaram no país entre 1964 e 1985. Desde então, a retórica da caserna extravasou os espaços mumificados e ganhou uma projeção impensável a partir da ascensão de Jair Bolsonaro ao poder.

Dano Colateral tem o seguinte subtítulo: a Intervenção dos Militares na Segurança Pública. O livro, no entanto, entrega bem mais do que isso. Se a palavra não soar acadêmica demais para descrever um trabalho que é sobretudo de apuração jornalística exaustiva, o que Natalia Viana faz é uma espécie de genealogia da volta dos militares ao poder.

Numa frente, a autora documenta como, ao longo da última década, os militares foram ocupando o lugar das polícias (ou se dividindo com elas, em papéis não muito claros) no combate à violência em áreas conflagradas. A Operação no Complexo do Alemão, no Rio, tão festejada à época como um marco da vitória do Estado sobre o crime organizado, deu início a uma série de GLOs, como são chamadas as operações de Garantia da Lei e da Ordem. Entre 2010 (ano da intervenção no Alemão) e 2016 (ano do impeachment de Dilma Rousseff) foram realizadas 35 operações de GLO no país. A trivialização do recurso às Forças Armadas para cuidar da segurança pública teve como desdobramento uma série de incidentes e de assassinatos envolvendo militares, sobretudo nas áreas de favelas. Um dos méritos de Dano Colateral está na reconstituição de alguns desses episódios e nas implicações corrosivas que eles tiveram sobre a credibilidade da instituição militar.

Natalia Viana se ocupa ao mesmo tempo da volta dos militares ao centro do poder. E aqui joga luz sobre o significado histórico do governo de Michel Temer. Seu curto mandato foi marcado pela convergência entre a militarização da segurança pública e a militarização da política. A primeira se escancarou quando Temer nomeou o general Walter Braga Netto (atual ministro da defesa de Bolsonaro) como interventor militar no Rio, uma medida extrema e inédita desde a redemocratização do país. Mas a militarização da política já vinha ocorrendo desde o primeiro dia do governo, quando Temer recriou o Gabinete de Segurança Institucional, extinto por Dilma, e nomeou para o cargo o general Sérgio Etchegoyen. Braga Netto como interventor, Etchegoyen como superministro e Eduardo Villas Bôas como comandante do Exército (cargo que assumiu em fevereiro de 2015, ainda no governo Dilma) foram peças importantes na construção do caminho que nos trouxe até esse gigantesco retrocesso. Não deixa de ser irônico que Temer tenha vendido seu governo com o slogan da Ponte para o Futuro. Bolsonaro não é um dano colateral, mas consequência de algo que foi gestado antes dele. O livro de Natalia Viana ajuda muito a entender a pré-história dessa tragédia. 

ANA CLARA COSTA

Se o fenômeno editorial Sapiens, de Yuval Harari, conta a história da humanidade pelo prisma antropológico, The Story of Work (A História do Trabalho, ainda sem previsão de lançamento no Brasil, 544 páginas, Yale University, 2021), do acadêmico e pesquisador holandês Jan Lucassen, faz o mesmo sobre a relação da espécie humana com o trabalho. É um calhamaço de 544 páginas, de leitura fácil, apesar das numerosas referências bibliográficas.

Lucassen, que estuda o tema há quase quarenta anos, resgata nas origens coletivistas de nossos ancestrais um sentimento não muito diferente do anseio contemporâneo sobre o significado do trabalho: antes do surgimento da agricultura, a caça e a coleta de alimentos eram recompensadoras e tinham um significado social fundamental dentro da comunidade não só por alimentar seus integrantes, mas também por garantir a distribuição justa do que se conseguia.

O homem viveu em sistema cooperativo desde seu surgimento, há 700 mil anos, até 12 mil anos atrás, quando foram criados os primeiros campos agrícolas — ou seja, mais de 80% do tempo de sua existência na Terra. Com a agricultura, veio o excedente e a possibilidade de alguns membros de determinada comunidade desenvolverem outras atividades que não a agrícola, embora continuassem consumindo o que era plantado. O excedente e a diversificação de atividades criaram divisões entre as comunidades e, segundo Lucassen, são os primeiros sinais de desigualdade na história. As relações de trabalho, nesse período, mudaram do sistema cooperativo para o de subordinação e competição — conceitos que até então o homem desconhecia.

Mas as relações sociais e de trabalho não se transformaram imediatamente. O surgimento de excedentes agrícolas foi um processo lento, de milhares de anos, até que a produção fosse suficiente para sustentar um aglomerado em que nem todos plantavam. Com o surgimento das primeiras cidades na Mesopotâmia, novos arranjos sociais deram origem a novos arranjos de trabalho: servidão, escravidão e, só a partir de 500 a.C., o trabalho remunerado – muito mais recente quando comparado a outras formas de organização laboral.

A remuneração pelo trabalho proporcionou mais liberdade ao indivíduo e uma visão mais individualista da sociedade, além de viabilizar os grandes fluxos migratórios. Mas Lucassen curiosamente aponta que, até o início do século XX, a palavra “desemprego” não existia nem como conceito social, muito menos como fenômeno estatístico ou econômico. Os futurólogos apostam que, dentro de algumas décadas, dados os avanços tecnológicos, todas as nossas atividades do dia a dia serão remuneradas — e será difícil distinguir a vida do trabalho. Para muitos, essa distinção será apenas uma questão de ponto de vista. Se é isso que o futuro nos reserva, será uma pena. Como Lucassen diz em seu livro, o trabalho, embora seja uma inesgotável fonte de ansiedade, também pode ser um motor de autoestima. E isso é algo que o lazer eterno não pode proporcionar.

BERNARDO ESTEVES

Dentre os livros de ciência para o grande público lançados no ano passado, Psiconautas – Viagens com a ciência psicodélica brasileira (264 páginas, editora Fósforo), do jornalista Marcelo Leite, é um destaque. O volume apresenta o chamado renascimento psicodélico, como foi designado o interesse que drogas como o LSD, o MDMA, a ayahuasca ou os cogumelos mágicos têm despertado em cientistas nos últimos anos. Em ensaios clínicos pelo mundo afora, essas substâncias estão mostrando grande potencial terapêutico para tratar males como a depressão, a dependência de drogas ou o transtorno do estresse pós-traumático.

O Brasil é um dos protagonistas desse renascimento. Os cientistas do país figuram em terceiro lugar na lista daqueles que mais têm publicado estudos de ponta sobre as drogas psicodélicas, atrás apenas de seus pares dos Estados Unidos e do Reino Unido. Psiconautas conta essa história pela perspectiva nacional, a partir de entrevistas com os principais pesquisadores brasileiros envolvidos com o tema, como o biólogo Stevens Rehen (UFRJ), o psiquiatra Luís Fernando Tófoli (Unicamp), o neurocientista Sidarta Ribeiro e o físico Dráulio de Araújo (ambos da UFRN).

Um dos mais experientes e premiados jornalistas de ciência do Brasil, Marcelo Leite acompanha de perto o renascimento psicodélico desde 2017, quando foi à Califórnia cobrir uma conferência sobre o tema para a Folha de S.Paulo. Foi durante o evento que ele experimentou MDMA pela primeira vez, num quarto de hotel junto com participantes do evento. Aos 59 anos, essa foi sua primeira experiência com as drogas psicodélicas desde a adolescência. Como parte da pesquisa para o livro, ele ainda tomaria LSD, ayahuasca e cogumelos mágicos.

Em tom sóbrio, o relato de suas viagens sob efeito das drogas é dos pontos altos de Psiconautas e ajuda o leitor a entender seu potencial terapêutico. O livro é costurado com depoimentos de pacientes dos estudos clínicos, com a história das drogas psicodélicas e com explicações acessíveis de seus mecanismos de ação no cérebro. O resultado é uma narrativa que evidencia o fascínio do autor pelo tema, a ser consumida sem moderação.

ALEJANDRO CHACOFF

Um Terrível Verdor (176 páginas, da editora portuguesa Elsinore*), o título do terceiro romance do escritor chileno Benjamín Labatut, faz referência a uma suposta previsão errada do grande químico alemão Fritz Haber. Pouco antes de morrer, carcomido pela culpa, Haber escreveu à sua mulher, argumentando que seu método para extrair nitrogênio do ar alterara o meio ambiente de tal modo que ele temia um futuro dominado pelas plantas. Aproveitando-se do excesso de nutrientes oferecidos pela humanidade, estas se espalhariam “na superfície da terra até conseguirem cobri-la por completo, sufocando todas as formas de vida sob um terrível verdor”.

Como se trata de um romance, é difícil saber se a previsão de Haber ocorreu ou não, mas lê-la em meio a uma crise climática provoca uma risada nervosa, um regozijo desconfortável, cúmplice de nossa capacidade autodestrutiva – um sentimento que Labatut sustenta com maestria no decorrer do livro. Posto de modo vulgar, o autor se interessa pelos cientistas loucos – aqueles que, confrontados com seus limites corpóreos (doenças e crises psíquicas abundam nesses relatos em terceira pessoa), buscam a transcendência via teorias que explicam o universo. Tais teorias poderiam ser definidas como delírios de grandeza, não fosse o fato de que realmente mudaram o destino da humanidade. Heisenberg, Schrödinger, Schwarzschild, Grothendieck. Ironicamente, e a despeito de sua icônica língua de fora, Albert Einstein surge aqui como o mais sóbrio entre esses gênios todos, com um instinto para organizar seus pares e ajudá-los a não despirocarem de vez ao se afastarem demais do mundo tangível.

Labatut é ciente dos clichês em torno da figura do cientista maluco (há uma passagem explícita sobre Frankenstein). Seu brilhantismo reside em desmembrar esses clichês em algo mais ambíguo, cruzando as histórias pessoais e rivalidades mesquinhas de seus personagens com os impactos múltiplos das teorias. Isso é feito com fidelidade aos fatos científicos – a ficcionalização aqui serve sobretudo à propulsão narrativa, e, embora tenha uma facilidade admirável em descrever abstrações de forma lírica, o autor não renuncia a certo rigor e clareza nas explicações.

Mas a clareza se restringe às explicações. Aqueles que buscam clareza moral se frustrarão. Ao contrário dos manuais que popularizam a ciência – tentando desmistificá-la e trazê-la ao cotidiano – Labatut afoga os grandes teóricos do século passado num pântano de dubiedade ética. Seu estilo é similarmente desapegado, com uma prosa veloz que engaja o leitor, mas não julga excessivamente o que narra. Frequentemente, o que gera transcendência é também o que destrói. A descoberta que populariza um pigmento sublime nas artes é a mesma que abre caminho para a utilização industrial do cianeto séculos depois. O método de Haber, ao “extrair pão do ar” e criar os fertilizantes, resolve o problema da fome de milhões de pessoas, mas também viabiliza as câmaras de gás onde seus próprios parentes judeus morreriam (Haber ignorou a previsão correta de sua mulher sobre o potencial destrutivo de suas descobertas.) Talvez Um Terrível Verdor seja uma leitura difícil num momento de negacionismo, em que a comunidade científica sofre ataques criminosos, mas o papel da literatura raramente é o de apaziguar.

(*) O romance de Labatut será publicado no Brasil em março de 2022 pela editora Todavia, sob um título distinto: Quando Deixamos de Entender o Mundo

ANTONIO MARCOS PEREIRA

Um amigo se queixou comigo. “Li seu texto e comprei o livro antes de viajar”, disse. “É sinistro, tem coisas pesadas. Tava na praia, queria uns poemas mais leves, outra vibe.”

Não soube o que responder. A queixa dele era meio impertinente, pois acho que o texto a que se referia – um ensaio que escrevi para a revista sobre Risque Esta Palavra, o último livro da poeta Ana Martins Marques – fala bastante disso. Agora fico pensando o que poderia ter recomendado para ele. Não sei se teriam exatamente “outra vibe”. Mas sei que ano passado li coisas formidáveis de poesia brasileira que, assim como o livro de Marques, não me parecem ter nenhum antagonismo com praia, férias, bem viver, viver. Pelo contrário.

Em Vídeos Caseiros (64 páginas, editora Corsário Satã), Marcelo Montenegro usa como blocos de construção de seus textos tanto um banal seriado velho de tevê quanto uma performance de Wim Wenders, tanto um episódio de Os Trapalhões quanto o teatro de Fauzi Arap. Fala de vôlei, ABBA, caras do bairro, Altman, cigarro, Macalé, locutores de futebol do rádio. Essas mesclas já estavam presentes em trabalhos anteriores: correndo para lá e para cá na cultura e pela memória, sem peias e, para quem lê, sem dificuldades para o entendimento. Mas nesse livro, Montenegro baixou a guarda de tudo. Ele menciona Domingos de Oliveira, dizendo que “A grandiloquência é uma deselegância”, e caminha prosaico até se despedir da gente no último poema, o belíssimo Documentário. Vídeos Caseiros me lembrou Lawrence Ferlinghetti: é um livro feito de olho e coração abertos e, por cafona que possa parecer isso (ou talvez por isso mesmo), achei muito bom.

Se atribuímos a Defoe certa inauguração do romanesco, o célebre náufrago inventado por ele é aqui, em Robinson Crusoé e seus amigos (120 páginas, da editora 34), de Leonardo Gandolfi, convidado a prestar contas. Mas de que mesmo? É um livro de poemas que é também de aventuras e de memórias, e traz de volta uma conversa com o pai (“Olá pai olha aqui”, um verso que é parte da versão mais pungente de Star Wars que já vi) de um livro anterior de Gandolfi, do qual também gostei muito, Escala Richter. Ri muito lendo esse livro engraçadíssimo (“estou pensando/ em aprender/ a coaxar melhor”), que consegue também tocar no sinistro e no trágico sem medo. Mas até isso é feito com uma mão que, sendo terna, é também destemida, mescla emoções e jeitos, e se permite até ser, ou se mostrar, boba (“Sozinho com o fantasma do meu pai/…/ Estamos só resmungando ai ai ai”).

Esses dois livros estão sintonizados com um momento do surpreendente Tudo que se Aproxima Faz um Som (32 páginas, editora Garupa/ Kza1), de Luiza Leite: “crio mãos para tocar as coisas/ sem apertar demais”. Num livro em que alguém prepara uma sopa com Brecht e no qual se fala em “educação pelo gif” (e que momento feliz e ambíguo é esse!), se diz também algo como “demoro muito pra pensar uma coisa/ por isso gosto tanto das pedras/ conversam comigo sem pressa/ por outro lado não falam uma língua/ que eu reconheça”. É um livro de insinuações, e recordo que a língua das pedras que está aqui aparece também em um poema de Risque Esta Palavra. Se eu tivesse mais presença de espírito, poderia ter respondido a meu amigo que cada um conversa com suas pedras como pode.

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