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    Montagem: Paula Cardoso

questões literárias

Melhores leituras de 2022

A equipe da piauí comenta alguns livros marcantes do ano que termina

20 dez 2022_07h38
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História, ciência, sociologia, política, romances — tem um pouco de tudo na seleção de livros feita pela equipe da piauí.

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O Homem Sem Rosto, Masha Gessen (Editora Intrínseca)

“Ele foi o primeiro burocrata a recusar suborno”; “a patente dele é muito baixa”; “não é preciso um general para comandar um bando de coronéis.” As três frases podem soar familiares aos brasileiros que nos últimos quatro anos experimentaram o governo de Jair Bolsonaro, um sujeito que, por décadas, se autoproclamava honesto e deixou o Exército com uma patente baixa, sem que isso o impedisse de, como presidente, exercer poder sobre as mais altas camadas das Forças Armadas. Mas o sujeito em questão é, na realidade, Vladimir Putin, cuja ascensão é retratada por Masha Gessen, jornalista de origem russa, no livro O Homem Sem Rosto, publicado originalmente em 2012, agora relançado com prefácio atualizado, em razão da guerra da Ucrânia.

Como um típico populista, Putin gostava de demonstrar certa humildade. Quando foi sondado pela primeira vez por um enviado de Boris Yeltsin para assumir como sucessor do premiê, Putin veraneava com a família em Biarritz, no País Basco francês. 

O enviado chegou ao balneário imaginando que encontraria o aliado desfrutando as delícias da gastronomia local numa vila cercada de luxo. Mas, para a sua surpresa, encontrou Putin num apartamento de “um ou dois quartos”, que “parecia um flat desses bem baratos”. 

Putin demonstrou óbvio interesse à sondagem, mas, embora fosse o chefe da polícia secreta, ninguém o conhecia de fato. Yeltsin o via como um nome apto a sucedê-lo porque, em meio à implosão de sua popularidade junto aos russos, tinha medo de ser preso. Acreditava que Putin (“ao mesmo tempo maleável e disciplinado”, segundo Gessen), não o perseguiria. 

A verdadeira personalidade de Putin – um homem de caráter obsessivo, autoritário, manipulador e inescrupuloso que, ao mesmo tempo, demonstra simplicidade e devoção a um passado russo glorioso –, só veio à tona com o passar dos anos. Essa transformação é descrita minuciosamente por Gessen, que resgata no passado do líder os sinais definitivos do tipo de governante que seria. O livro também desmonta a imagem de burocrata incorruptível que o próprio Putin vendeu, descrevendo um esquema de desvio de recursos públicos liderado por ele no período em que era funcionário da Prefeitura de São Petersburgo. Segundo Gessen, Putin já era bastante rico quando passou o verão no modesto apartamento de Biarritz, em 1999.
Embora o livro seja permeado de informações inéditas obtidas por alguém que escreve com rigor e independência, o epílogo da obra não poderia estar mais equivocado sobre o futuro que se avizinhava no Kremlin. Ao descrever os últimos dias de 2011 em Moscou, Gessen  manifesta sua esperança nos movimentos de rua que pediam mudanças e aposta que o país se livraria em breve do poderio de Putin. Na primeira reedição de seu livro, em 2014, mesmo ano da invasão da Crimeia, já escreveria um posfácio menos alvissareiro. No prefácio atual, de 2022, Gessen caminha por toda sorte de tragédias que se abateram sobre o povo russo no intervalo dos últimos oito anos: a miséria, a radicalização, as sanções, a destruição de reputações pelo serviço secreto, as tentativas de assassinar opositores – algumas bem-sucedidas – e, por fim, a invasão da Ucrânia.

A nova previsão é desoladora: Gessen acredita que o povo russo, oprimido pela crise econômica e pela repressão do Estado, jamais se levantará contra Putin, e que os mais ricos se aliarão cada vez mais ao poder. A exportação do exemplo russo para outros países hoje dominados por autocratas ou aspirantes a autocratas foi tema de outro livro de Gessen que vale ler – Surviving Autocracy, lançado em 2020 nos Estados Unidos, mas ainda sem previsão de lançamento no Brasil. 

— ANA CLARA COSTA

O Acontecimento, Annie Ernaux (Editora Fósforo)

Certa vez, numa aula matinal, a professora entrou atrasada e chorando muito. Perguntamos o motivo, ela contou: precisou parar para socorrer uma mulher que estava sendo estuprada na praça ainda vazia àquela hora. A professora ouviu os gritos, gritou também, o agressor fugiu. Ela ajudou a vítima a chamar uma ambulância e esperou o socorro. A nós, suas alunas, confidenciou que hesitou em parar, socorrer, ajudar. Mas parou. “Podia ser eu.”

Pelos caminhos tortos da memória, foi dessa história que me lembrei quando li O Acontecimento, de Annie Ernaux. Vencedora do Nobel de Literatura, Ernaux relata nesse livro curto e poderoso sua experiência de se submeter a um aborto clandestino na França de 1963. Conta o desespero ao engravidar inesperadamente de um namorado que acabara de conhecer e como decidiu, sozinha, interromper a gravidez. Reconstitui o encontro com a “fazedora de anjos” e a consulta na qual um médico a quem pediu socorro acabou prescrevendo, sem que ela soubesse, um antiabortivo. Narra, por fim, o apoio que recebeu de algumas (poucas) mulheres e o vazio depois de uma quase morte. Além do desafio de seguir, sempre seguir.
Ernaux faz de sua história um caminho para abordar questões universais. E o conjunto de sua obra acaba mirando dores com as quais nós, mulheres, convivemos cotidianamente, seja a gravidez indesejada, a violência, o aborto, o estupro. Ou simplesmente a certeza de ser alguém fora do lugar. Com as dores, há espaço também para a solidariedade feminina, que hoje chamamos de sororidade, trazida pela mão estendida de outra mulher que, naquele ou em outro tempo, viveu e sofreu as mesmas ou outras dores, não importa. Ao finalizar
O Acontecimento, não pude deixar de me lembrar das brasileiras de idades variadas que morrem em abortos clandestinos, das que lutam pelo direito ao aborto e da solidariedade inabalável dos serviços de aborto legal em funcionamento no Brasil.

É uma leitura que se faz com fluidez, mas não sem sofrimento. A prosa de frases curtas e linguagem simples funciona como uma agulha com a qual Ernaux vai pinçando lembranças aflitivas, que ela mesma só conseguiu descrever quando já era uma escritora consagrada em seu país (O Acontecimento foi publicado em 2000 na França).

Algumas dores são assim, exigem tempo para serem revividas. Porque sim,  contar é uma forma de viver. E, no caso de Ernaux, cuja escrita costura a vida, a frase de Saramago serve à perfeição: “Escrever é um modo de viver, mas pressupõe ter vivido.”

— FERNANDA DA ESCÓSSIA

Como as Guerras Civis Começam. E Como Impedi-las, Barbara F. Walter (Editora Zahar)

Em tempos de tentativa de ataque neonazista ao parlamento alemão, de invasão do Capitólio em Washington e, mais recentemente, de atos terroristas em Brasília, promovidos por vândalos bolsonaristas que não aceitam o resultado das eleições de outubro, nada mais oportuno do que a leitura de Como as Guerras Civis Começam. E Como Impedi-las, da cientista política norte-americana Barbara F. Walter. Lançado neste ano, o livro explica as razões das guerras civis que eclodiram no mundo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, e alerta para o fato de que, com o aumento da polarização, nem mesmo democracias estáveis como a norte-americana estão livres de movimentos desse tipo.

Desde 1946, mais de 250 conflitos armados internos eclodiram em todo o mundo. Nos últimos anos, essas conflagrações aumentaram, atingindo seu pico em 2019: Síria, Afeganistão, Iraque, Malásia, Iêmen e outros tantos. Esses levantes, no entanto, não ocorrem apenas em países com democracias frágeis. Podem se dar em sociedades democráticas muito radicalizadas e polarizadas.
Walter – professora de assuntos internacionais na Universidade da Califórnia e consultora para assuntos externos do Departamento de Defesa – explica que esses movimentos explodem de maneira previsível, seguindo um mesmo roteiro. Em países que viviam em regimes autoritários e foram rapidamente empurrados para se transformarem em democracias – caso do Iraque pós-Saddam Hussein –, as guerras civis ocorrem porque facções passam a disputar o poder. Uma democratização rápida em países com profundas divisões pode ser muito desestabilizadora.
E por que os Estados Unidos entram nesse rol? A partir de 2008, o livro explica, mais de 70% das mortes relacionadas a extremistas no país foram causadas por pessoas de extrema direita ou por supremacistas brancos. “Aqui também há raiva e ressentimento e o desejo de dominar os rivais. Aqui também compramos armas quando nos sentimos ameaçados”, escreve Walter. E mais. Os norte-americanos, ela avalia, consideram a invasão do Capitólio como incidente isolado, ato frustrado de extremistas. Mas pensam assim porque não sabem como os conflitos começam.

A obra não fala do Brasil, embora nos sirva de alerta. As cenas registradas no país depois do resultado das eleições, com caminhoneiros bloqueando estradas e bolsonaristas chorando nas portas dos quartéis ou apedrejando a sede da Polícia Federal, nos mostra onde a intolerância pode nos levar. “A maioria das pessoas só percebe que está a caminho da guerra civil quando as milícias operam nas ruas e quando líderes extremistas estão sedentos de guerra.”

Para nosso alento, assim como existe um roteiro para a eclosão de guerras civis, também há uma estratégia para combatê-las. Ela passa pela reforma de um governo degradado através do reforço do estado de direito, do acesso igual ao voto a todos os cidadãos, e da melhora na qualidade dos serviços governamentais. É o que se espera que ocorra no Brasil a partir de 1º de de janeiro de 2023.

— CONSUELO DIEGUEZ

Capitalismo Carcerário, Jackie Wang (Editora Igrá Kniga)

Um dos melhores e, no bom sentido, mais radicais livros que li neste ano de 2022 foi a tradução ao português da obra Capitalismo Carcerário, da abolicionista penal e pesquisadora da Universidade de Harvard Jackie Wang. Publicado neste ano, com a tradução cuidadosa do pesquisador Bruno Xavier, o livro conta com um prefácio excelente de Juliana Borges, intelectual negra brasileira que publica também sobre o tema. (De Borges, recomendo seu livro O que é Encarceramento em Massa?, na coleção Feminismos Plurais, editora Letramento em parceria com o portal Justificando).

Meu encontro com o livro de Jackie Wang – digo o original publicado em 2018 pela MIT Press –, foi por acaso. Antes da pandemia, fui para uma conferência internacional sobre política de drogas em Saint Louis, no Missouri, no Meio-Oeste dos Estados Unidos. Entre um almoço com a melhor costela do mundo e painéis sobre complexo industrial prisional e guerra às drogas, parei num estande de obras sobre raça e vi o livro de Wang. Comprei em especial porque o paralelo com o Brasil é evidente: encarceramento em massa é impulsionado por uma guerra às drogas custosa, sem sentido e ineficaz que torna a carne negra, nos Estados Unidos e aqui, a mais barata do mercado. O tema é ainda mais oportuno: na campanha eleitoral, Lula propôs rever a desastrosa política de drogas que, aliás, ele mesmo implementou pela lei de 2006. Veremos se de fato isso ocorrerá.
A virtude e em certa medida a radicalidade de Wang, no entanto, é ir além da narrativa comum de que pessoas negras são as que mais sofrem com o encarceramento. Wang combina análise pessoal (sobre seu irmão encarcerado) com dados e histórias reais para retratar, de forma bem imagética, como o encarceramento permeia nossas vidas. Wang quebra vários paradigmas. Ao contrário de reformistas, ela contesta a divisão entre presos violentos e não violentos. Contesta que encarceramento tenha algo a ver com combater o crime. Rejeita a divisão entre liberdade e prisão, dizendo que no século XXI tecnologias de vigilância criam prisões sem celas. Defende que a razão para manutenção do encarceramento é econômica. A construção de prisões no interior do país movimenta economias locais, multas no sistema carcerário e créditos predatórios fora dele aprisionam famílias já empobrecidas, e por aí vai.

Ao ler o livro de Wang eu ficava pensando nos familiares, em especial mães e companheiras, que viajam quilômetros para visitar presos em cidades do interior, tendo que levar, com o próprio dinheiro, itens básicos de higiene para seus parentes encarcerados. Eu ficava pensando nas mulheres negras encarceradas que sequer são visitadas por seus parentes. Embora sejam realidades com suas diferenças, o paralelo é evidente e fica o gosto amargo, depois de ler o livro: como implodir o cárcere?

— THIAGO AMPARO

O Despertar de Tudo, David Graeber e David Wengrow (Companhia das Letras)

Em 1702, um barão francês conhecido como Lahontan estava na pior. Depois de um tumultuado período servindo no exército francês em campanhas exploratórias no Canadá, ele fora condenado por insubordinação e obrigado a viver no exílio. Sem um tostão na algibeira, se virava fazendo frilas como espião de aluguel. Até que resolveu escrever uma série de memórias sobre suas aventuras nas distantes terras canadenses.

Um desses livros foi publicado em 1703 e mostrou quatro conversas que Lahontan teria mantido com o chefe ameríndio Kondiaronk – um líder político brilhante, excepcionalmente habilidoso e um dos estrategistas da Confederação Wendat, uma coalizão de quatro povos que viviam entre o Canadá e os Estados Unidos. Em suas memórias, Lahontan usa um personagem que chamou de Adario para transmitir as ideias que disse ter ouvido de Kondiaronk em várias ocasiões. Eram críticas duríssimas à sociedade europeia. O intelectual indígena espinafrava a falta de solidariedade e auxílio mútuo, a submissão cega às autoridades, a ideia de propriedade privada, o sistema legal punitivo baseado em lei e o dogmatismo do catolicismo que presenciara em suas viagens aos países europeus e em seus contatos com missionários jesuítas. O livro do barão empobrecido não só fez um megassucesso como espalhou pela Europa as críticas indígenas que, depois, teriam inspirado o Iluminismo francês – a fonte de toda a ideia de democracia ocidental. Os ideais de liberdade e igualdade, portanto, não saíram de cabeças coroadas como Montesquieu, Diderot, Chateaubriand, e Voltaire. Foram uma reação à maneira como os povos originários enxergaram os europeus.

Fascinante, surpreendente – e defendida de maneira eloquente –, essa narrativa aparece logo nos capítulos iniciais do livro O Despertar de Tudo, Uma Nova História da Humanidade. Escrita pelo antropólogo David Graeber (famoso por ser um dos organizadores do Occupy Wall Street, ele faleceu em 2020) e pelo arqueólogo David Wengrow, a obra virou best-seller. Assim que foi lançada, provocou também um fuzuê entre estudiosos justamente porque passa setecentas páginas levando adiante essa proposta inicial: demolir o modo como a linha do tempo da história humana foi organizada e contada ao longo dos séculos. De acordo com o livro dos dois Davids, quase tudo o que aprendemos até hoje nos livros de história é furado. Os humanos caçadores-coletores, por exemplo, não eram seres primitivos e igualitários que só seriam organizados em sociedades hierarquizadas, burocráticas e desiguais com a invenção repentina da agricultura, mas sim pessoas complexas que escolheram de maneira consciente testar várias formas de organização política ao longo dos tempos. As instituições democráticas não tiveram início em Atenas, mas estavam por aí milhares de anos antes, em lugares como Taljanky – uma cidade de 4 100 aC, localizada no território atual da Ucrânia (mas descoberta por arqueólogos apenas nos anos 1970). E a própria ideia de Estado não é inevitável – a prova disso seria a de que, durante milênios, enormes levas de humanos evitaram deliberadamente os sistemas fixos e abrangentes de autoridade. Os autores apresentam seus argumentos empilhando descobertas recentes da arqueologia, fontes alternativas e uma audácia sem fim. O Despertar de Tudo é um livraço, principalmente nos muitos momentos em que ilumina o seu ponto principal: o de defender a liberdade de transgredir, de ir e vir, e sobretudo de imaginar outras formas de existência social.

— ANGÉLICA SANTA CRUZ

O Diálogo Possível, Francisco Bosco (Todavia)

Exceto pelas franjas mais radicalizadas, é consenso no debate público brasileiro que a gestão Bolsonaro deixou o país em frangalhos, sob vários aspectos. Desordem orçamentária, desmonte de políticas públicas historicamente eficazes, sequestro de órgãos de fiscalização e de persecução penal, vistas grossas à corrupção. Como repórter, fui testemunha ocular de parte desse estrago bolsonarista: seja no aparelhamento das polícias Federal e Rodoviária Federal, reduzidas a forças auxiliares dos interesses mais obscuros do atual presidente; seja no sucateamento intencional do Ibama com o claro propósito de liberar a ação predatória de grileiros e desmatadores na Amazônia.

Mas o descalabro bolsonarista é anterior e mais profundo do que sua ascensão ao poder no período 2019-2022. É, antes de tudo, uma expansão narrativa inexorável da extrema direita, que ao longo da última década dividiu o país ao ponto de uma quase ruptura. Na tentativa de entender como essa bad trip começou, mergulhei nas ideias do ensaísta Francisco Bosco em seu ótimo livro O Diálogo Possível. Sem pedantismos, Bosco se vale de conceitos filosóficos, sociológicos e políticos para, nas palavras do escritor Paul Valéry, promover uma “limpeza da situação verbal” no debate público para aproximá-la da realidade.
Creio ser dever de todo jornalista (e tantas outras profissões) compreender a fundo o contexto sociopolítico em que desempenha seu papel profissional. Bosco não só fornece um diagnóstico preciso da profunda crise em que o país está mergulhado como lança argumentos poderosos em busca de soluções concretas por meio de um diálogo aberto, franco, socrático, entre lados que, à primeira vista, parecem inconciliáveis.

— ALLAN DE ABREU

Sátántangó, László Krasznahorkai (Companhia das Letras)

Em Sátántangó, romance do húngaro László Krasznahorkai, uma aldeia isolada está prestes a ser desativada. A dissolução desse universo decrépito, que é tudo o que os moradores conhecem, deixa uma atmosfera de delírio e paranoia. Há um badalar de sino que perturba a aldeia, mas nem todos ouvem, ninguém sabe de onde ele vem: “Não há ninguém acordado? Ninguém está ouvindo?”, se pergunta um aldeão. 

Embora Krasznahorkai seja um escritor relativamente consagrado em seu país e mundo afora, Sátántangó é seu primeiro livro traduzido e publicado no Brasil. Foi o romance de estreia do húngaro, lançado em 1985, e ficou conhecido pela adaptação para o cinema num filme de mesmo nome dirigido por seu conterrâneo Béla Tarr. Na história, a falta de rumo e a perda de referência territorial deixam os aldeões ansiosos pela chegada de um líder carismático que davam como morto e que poderá indicar algum caminho futuro. Alguns moradores querem ficar na aldeia, outros querem sair. A escrita vertiginosa de Krasznahorkai suga o leitor para esse universo em ruínas. 
Folheei as primeiras páginas de Sátántangó dentro de um ônibus que atravessava a Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio, no início de novembro. Do lado de fora, havia um acampamento de militantes de extrema direita pedindo intervenção militar em frente ao Comando Militar do Leste. A aldeia de Krasznahorkai pode ser lida como uma fazenda coletiva de uma Hungria diante do esfacelamento do comunismo. No meu delírio de leitor, a história se passa à beira de uma estrada em algum trecho de uma BR.

— TIAGO COELHO

Autobiografia de um Polvo, Vinciane Despret (Editora Bazar do Tempo)

Animais como pinguins, ratos ou marmotas – e até formigas, borboletas e outros insetos – têm formas de escrita próprias com a qual se comunicam, fazem poesia e organizam cosmologias. Suas narrativas são o objeto de estudo de uma disciplina científica independente, a therolinguística. Essa é a premissa de Autobiografia de um Polvo, uma das leituras mais surpreendentes do ano para quem se interessa por ciência e meio ambiente. A autora é a filósofa e psicóloga belga Vinciane Despret, professora da Universidade de Liège e estudiosa das relações entre humanos e outros animais. 

Autobiografia de um Polvo se divide em três capítulos autônomos que mergulham nos estudos dos therolinguistas sobre a escrita de três espécies diferentes. No primeiro, o foco são as mensagens enviadas pelas aranhas por meio das vibrações de suas teias. O segundo se dedica aos vombates – marsupiais parecidos com pequenos ursos encontrados na Austrália – e à visão de mundo expressa nos muros que eles constroem com tijolos cúbicos feitos com suas próprias fezes. A última parte, que dá título ao volume, investiga a poesia manifesta nos jatos de tinta secretados pelos polvos e sua tradução para as linguagens humanas.
Os capítulos são construídos juntando relatórios científicos e e-mails trocados entre os estudiosos da linguagem animal. Os documentos são escritos no estilo referencial da prosa científica, mas são todos imaginários, como a própria therolinguística, que foi concebida originalmente pela escritora norte-americana de ficção científica Ursula Le Guin. Cada capítulo é uma “narrativa de antecipação”, conforme a definição do título.
À imagem do que fazia o argentino Jorge Luis Borges, Despret embaralha as fronteiras entre fantasia e realidade ao misturar referências a estudos e pensadores que de fato existem com a citação a obras e autores fictícios. O resultado fascinante é um livro inclassificável, escrito num registro único. Autobiografia de um polvo se deixa ler como uma fábula científica que denuncia nosso antropocentrismo e convida o leitor a se abrir ao que têm a nos dizer as criaturas não humanas que povoam o mundo. 

Nesse aspecto, o pensamento de Despret se alinha com a obra de pensadores como a norte-americana Donna Haraway ou o francês Bruno Latour, morto em outubro aos 75 anos (os dois últimos livros do pensador, Onde Aterrar? e Onde Estou?, também saíram no Brasil pela editora Bazar do Tempo, a mesma de Autobiografia de um polvo).

— BERNARDO ESTEVES

Dia um, Thiago Camelo (Companhia das Letras)

“Por mais manifesta, a dor é sempre um segredo.” É patentemente errado, talvez até imoral, resumir um romance tão antirreducionista a apenas uma frase. Mas há força nessas palavras do narrador de Dia Um, primeiro romance de Thiago Camelo. Ao enfrentar o luto por seu irmão mais velho – um homem que, após anos de depressão, pula do sétimo andar de um apart-hotel de Copacabana – o narrador busca menos desvendar o segredo do que aprender a conviver com ele. Há, nessa convivência, culpa, impotência, flashes de remorso: sentimentos universais que, de um modo ou de outro, fazem parte do cotidiano de “sobreviventes enlutados” (expressão que o narrador – e, suponho, o autor – consideram um tanto absurda). 

O que interessa mais a Camelo é a parte íntima (a parte secreta, digamos) do luto, e a potência do seu livro reside na forma oblíqua que ele usa para transmiti-la. Uma justaposição sugestiva atravessa o livro, e à primeira vista causa estranhamento. Seis meses depois da morte do irmão, a avó do narrador morre. Essa segunda morte – que seria tratada pelo senso comum como “natural”, a antítese de um suicídio – se mescla ao luto cotidiano complexo do protagonista, que lida também com o próprio histórico de crises de ansiedade. A veia pericial de Camelo – há uma explicação seca e ao mesmo tempo comovente sobre a dificuldade de encontrar um lugar adequado para o irmão no cemitério São João Batista – faz notar que não há nada “natural” na morte, por mais que tentemos domá-la ou absorvê-la.
De certa forma,
Dia Um é uma resposta forte e deslocadora ao clichê “a morte faz parte da vida”, um oximoro que sempre me pareceu feio e inapreensível. Disso não resulta um romance opressivo. Há momentos luminosos no livro – rememorações da infância em Jacarepaguá; uma ida ao último jogo do campeonato brasileiro de 1997, quando o Vasco, time dos irmãos, é campeão; o frisson de conseguir uma bolsa literária em Portugal. Na verdade, o que Dia Um capta bem é que tanto a depressão como o luto não possuem categorias claras, marcadores óbvios. Leveza e opressão roçam ombros, sentimentos virtuosos se mesclam a outros menos nobres. “A doença de seu irmão mais velho era desesperadora para vocês todos, mas talvez mais ainda para ela”, o narrador diz, referindo-se à mãe. “Muito pouco podia ser dito, explicado. E nada era sujo e revelador como uma ferida. Ou mesmo quente como a febre.” O desafio hercúleo de Dia Um é atravessar e ao mesmo tempo transmitir ao leitor algo dessa zona nebulosa. Os primeiros capítulos de Dia Um foram publicados na edição de outubro da piauí, leia aqui.

— ALEJANDRO CHACOFF

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