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    Andressa e o filho: ela deixou o abrigo onde morou provisoriamente e agora pleiteia a guarda do menino Imagem: Arquivo Pessoal

questões criminais

O horror depois do horror

Filho de 5 anos do homem acusado de estuprar e matar a menina Sophia é levado para abrigo após suspeita de maus-tratos pelo avô paterno

João Batista Jr. | 16 nov 2023_12h55
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No dia 15 de setembro, um garoto de 5 anos, de cabelo castanho e corte tigelinha, apareceu na Instituição Assistencial Meimei, uma escola sem fins lucrativos localizada na região Norte da cidade de Campo Grande, com hematomas acima do olho esquerdo e nos braços. Os professores logo suspeitaram que ele tinha sido alvo de violência doméstica. O aluno foi então levado até a direção do colégio, onde relatou ter sofrido uma surra de cinta por parte do avô paterno, o policial militar Adailton Cristiano Leitheim. Ele repetiu seu relato para a conselheira tutelar Cassandra Szuberski. E outra vez na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente. No mesmo dia, o Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul tirou a guarda provisória da criança dos avós paternos. Uma ação de Aplicação de Medida Protetiva de Acolhimento Institucional levou o menino para o SOS Abrigo, entidade municipal que acolhe menores em situação de vulnerabilidade.

Marcas de violência contra uma criança de apenas 5 anos são chocantes em qualquer contexto. O caso desse menino tem o adendo de estar bem próximo a outra atrocidade. Ele é o filho biológico mais velho de Christian Campoçano Leitheim, que está preso preventivamente sob acusação de espancar, agredir sexualmente e matar Sophia de Jesus Ocampo, quando ela tinha 2 anos e 7 meses, em janeiro deste ano. Stephanie de Jesus da Silva, namorada de Christian e mãe da menina, também está detida pelo mesmo crime.

Após o assassinato de Sophia, o garoto, que morava na mesma casa onde ocorriam as agressões à menina, passou a viver com os seus avós paternos – o militar aposentado Adailton Cristiano Leitheim e a comerciante Luciana dos Santos Campoçano Leitheim. “Foi quando começou o meu martírio”, diz Andressa Victoria Fernandes Canhete, de 23 anos, mãe do menino e ex-companheira de Leithem. “Os pais dele usurparam o meu direito de ser mãe.”

Em fevereiro, os avós pediram a guarda provisória do menino, então com 4 anos. Alegaram que ele não poderia ficar com a mãe, pois ela não tinha condições financeiras nem psicológicas de cuidar dele. A mulher vivia então em um abrigo municipal na capital de Mato Grosso do Sul e não foi ouvida pelo magistrado. Em entrevista à piauí, ela conta que não teve mais acesso à criança. Diz que ligava para os ex-sogros, mas ninguém retornava.

Andressa entrou com um pedido de guarda do filho via Defensoria Pública. Em uma audiência de conciliação realizada em junho, os avós não aceitaram que a mãe pudesse visitar o menino nem mesmo sob supervisão enquanto o processo de guarda não terminasse. 

Por estar impedida de ter qualquer contato com o próprio filho, a mãe não tinha ciência de que o garoto estava em um abrigo após sofrer maus-tratos por parte do avô. “Eu só soube disso no dia 20 de outubro, ou seja, 35 dias após o meu filho estar nessa situação”, conta. “Era para isso que me impediram de ver o meu filho?”

 

Andressa Victoria Fernandes Canhete conheceu Christian Leithem em um aplicativo de paquera em maio de 2017. Eles tinham amigos em comum e isso ajudou a relação a dar certo logo de cara. Estudante do primeiro ano do Ensino Médio, ela tinha 16 anos; o rapaz trabalhava em uma padaria da família e estava com 19. Logo nas primeiras semanas de relação, ele disse sonhar em ter um filho. Disse, segundo a memória dela, que a relação não prosperaria se não pensasse em ser mãe.

Diagnosticada com depressão e ansiedade, a adolescente tomava remédios controlados, como antidepressivos e ansiolíticos, que têm a sedação como efeito colateral. Ela conta que, certa noite, dentro da casa dos avós paternos, onde mora desde a infância (e para onde retornou neste ano após deixar o abrigo), tomou seus remédios para dormir e que o namorado a convidou para ter relação sexual, mas ela recusou. Tudo sem qualquer briga ou discussão. “Depois, eu tive flashback. Era como se estivesse sonhando em ter transado”, recorda. Andressa dormiu com vestido e acordou sem roupa. Não havia sangue no lençol nem dor na região da virilha. “Ele me fez entender que eu consenti [em ter relação sexual]. Hoje em dia, eu sei que não consenti. Ele disse que eu tinha acordado e queria fazer sexo.” Ela recorda ter sido essa a ocasião em que ficou grávida.

A gestação foi o prenúncio do que estava por vir. Se até então o relacionamento tinha sido tranquilo, o seu namorado passou a demonstrar um comportamento agressivo, ela recorda. Os dois se mudaram para a casa dos pais de Christian no bairro da Vila Nasser, na capital sul-mato-grossense. Ela conta que ali começaram as agressões verbais e físicas; que o namorado ora criticava a gestante por comer demais, ora por comer de menos; que depois vieram os empurrões e tapas; e que parte dos episódios eram testemunhados pelos pais do namorado.

Suas lembranças são de relações familiares infernais. Quando o militar aposentado agrediu e ameaçou Christian com uma arma, o rapaz fez a mala e saiu de lá na companhia de sua namorada grávida. Os dois foram morar na casa dos avós de Andressa. Após a criança nascer em maio de 2018, eles retornaram para a casa dos avós paternos da criança. As agressões se intensificaram. Em novembro, após ter sido alvo de socos nas costas, no rosto e nos braços, ela deixou a casa dos sogros levando o seu filho ainda em fase de amamentação. Já na casa de seus avós, Andressa recebeu a visita do sogro. “Ele estava armado, para me intimidar mesmo”, recorda ela, que mesmo assim foi até a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher para fazer uma queixa. Chegando lá, ela deu de cara com o namorado e o sogro se antecipando na contraofensiva. Christian Leitheim registrou boletim de ocorrência contra Andressa, se dizendo vítima de agressão. Ela fez o mesmo em relação a ele.

Já de volta à casa de seus avós, ela recebeu ainda naquele mesmo dia a visita da sogra pedindo para que removesse a queixa. Luciana alegou duas razões durante a pressão psicológica: o seu filho sonhava em entrar para a polícia, então não poderia ter um histórico negativo, sem falar na chance de ele se matar. “Ela me disse: ‘Como você vai explicar ao seu filho que o pai dele se matou?’” Os dois acabaram reatando.

As agressões, no entanto, não cessaram. Com o relato de um novo espancamento por parte do namorado em janeiro de 2019, ela foi novamente à Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher. Prestou queixa, mas uma semana depois retomou a relação. “Eu apanhei três vezes mais por ter feito a denúncia.” Entre idas e vindas, eles moraram juntos até agosto de 2020. “O Christian falou que se conseguisse a guarda do nosso filho, ele me mataria. Eu não pleiteei a guarda. Eu tinha medo porque ele também ameaçou a criança, dizendo que vinha de uma família com pai policial.” Quando se separaram de vez, o filho ficou com o pai.


Christian Leitheim começou um relacionamento com Stephanie de Jesus da Silva em setembro de 2021. Os dois tinham filhos de relações anteriores. O novo padrasto de Sophia passou a dificultar a visita da criança ao seu pai biológico, que então tinha iniciado uma relação com o também enfermeiro Igor de Andrade Silva Trindade. Começou uma rotina de agressões familiares, que passou de pequenos hematomas para a fratura da perna. Tempos depois, Sophia morreu.

Andressa recorda que conheceu Sophia quando Christian ligou para ela pedindo que fizesse uma faxina em sua casa, pela qual pagou. “Tinha muitas fezes de gato, três panelas com comida suja cheias de baratas passando em cima”, relembra, em um relato que bate com a insalubridade da casa, atestada pela polícia depois da morte da menina. A vizinhança chegou a acionar a polícia devido à sujeira da casa, onde um cachorro chegou a morrer por maus-tratos. Quando Sophia morreu, Andressa e o filho foram chamados para prestar depoimento.

Apesar de muito novo, o menino descreveu parte das agressões a Sophia. Ajudou a esclarecer, por exemplo, a perna quebrada da menina, que o padrasto disse ter sido em decorrência de um tombo no banho. “Foi meu pai, meu pai chutou ela pela rua, chutou ela duas vezes, aí deixou ela machucada”, relatou o garoto. Mais adiante no mesmo depoimento, o menino repetiu: “regaçou a perna dela, pegou, fez assim, depois beliscou a perna dela.”

Após o encontro com o filho na delegacia, em 31 de janeiro, Andressa teve a sua relação cortada com a criança. No dia 23 de outubro, nove meses após ter sido afastada do próprio filho, Andressa conseguiu encontrar seu filho, nesse momento sob os cuidados da Casa da Criança Peniel, em Campo Grande. Mãe e filho se abraçaram e se emocionaram. Às assistentes sociais, o menino tinha falado ter sido abandonado por sua genitora. “Os avós dele fizeram alienação parental, o que mais sonho é ter a guarda do meu filho”, afirma Andressa. O garoto vive em um quarto ao lado de outras três crianças. Ao todo, na casa, há 24 menores.


Desde o relato da agressão por parte do avô e da ida para o abrigo, o garoto deixou de frequentar a escola. “Oferecemos atividades sensoriais e educativas. A criança fica aqui até ser reintegrada à família ou então ser adotada. Esse processo pode levar meses ou anos”, explica Ana Paula Queiroz, gerente da Peniel. Para o juiz Robson Celeste Candeloro, titular da Vara Especializada em Crimes Contra a Criança e Adolescente de Campo Grande, a retirada da criança do convívio com o potencial ofensor tem de ser imediata. “A Justiça só retira quando entende que há indícios de que ela está sofrendo agressão. É preciso que cheguem até nós as denúncias, por isso contamos com a rede de apoio que inclui professores, parentes e Conselho Tutelar.”

Há poucas semanas, uma psicóloga e uma assistente social estiveram na casa onde Andressa mora com os seus avós para fazer uma avaliação psicossocial. No dia 19 de setembro, o promotor Nicolau Bacari Júnior concedeu medida protetiva impedindo os pais de Christian e Andressa de se aproximarem da criança. No caso dela, a justificativa se deu por ela ter tido uma briga com os seus avós no passado, desentendimento que resultou em um Boletim de Ocorrência. “Me chamam de louca, mas acordo todo dia para trabalhar (como vendedora em uma loja), pegar ônibus e brigar pela guarda do meu filho. Estou muito bem e apta para exercer o meu papel de mãe.”

Acusado de ter agredido o neto, o militar aposentado Adailton Cristiano Leitheim entrou com uma ação por danos morais no valor de 50 mil reais contra Andressa por ela ter falado em depoimento à polícia que presenciou cenas de agressão por parte dele. No processo de guarda, constam os nomes dos advogados Pedro Guilherme Paludo da Silva e Josiane Cristina dos Santos Meira como representantes do avô da criança. Procurados pela reportagem, o primeiro informou que, apesar de estar na documentação, não cuida do processo. Já a segunda não respondeu aos pedidos de entrevista feitos por WhatsApp e e-mail. Procurado por WhatsApp e e-mail, Adailton Leitheim também não respondeu. A promotoria de Mato Grosso do Sul e a Defensoria Pública de Campo Grande não se manifestaram.

“Eu vejo essa agressão ao menino como uma nova agressão à minha filha, já morta. Mostra que o comportamento de violência segue em atividade. Espero que essa criança seja tirada do convívio de seu agressor e tenha um final diferente do de Sophia”, diz Jean Carlos Ocampo da Rosa, pai de Sophia. A advogada Janice Andrade, que o representa e passou a defender também Andressa, afirma que não existe razão para a Justiça não entregar o menino de 5 anos aos cuidados da mãe. “Ele tem uma mãe que luta na Justiça desde o começo do ano por sua guarda, sendo impedida de encontrá-lo mesmo sob supervisão. Hoje, esse menino está em um abrigo público. O Estado não pode ser negligente mais uma vez, como foi com Sophia. Esse menino tem uma mãe capaz e que quer ser a sua tutora”, afirma a advogada. 

Na última sexta, 10, uma audiência no Fórum de Campo Grande colocou na mesma sala Andressa, mãe da criança, e o avô paterno Adailton Leithem, acusado de agredir o neto. Ficou definido que um novo laudo psicossocial será feito com a genitora, que alegou ter sofrido agressão psicológica por parte das psicólogas enviadas até a sua casa. Adailton foi retirado da sala de audiência por discutir com uma advogada. Um laudo assinado pela psicopedagoga Camila S. Mosena atestou que o menor agredido “sente muita raiva, e que não sabe o que fazer com ela”. Não existe previsão de quando o processo de guarda deve se encerrar. 

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