ILUSTRAÇÃO: CARVALL
Mentiras no bolso do jaleco
Redes e médicos alinhados ao governo disseminam boatos para desqualificar eficácia de imunizantes contra a Covid-19
Em um vídeo no formato selfie, num quintal com piscina ao fundo, rede de descanso e uma pequena bandeira do Brasil encostada no portão, o médico imunologista Roberto Zeballos anuncia: “As pessoas que pegaram a doença e venceram o vírus selvagem têm imunidade sete vezes maior do que com a vacina.” Segundo ele, a fonte é um estudo recente de Israel sobre a Covid-19. Reforça a “novidade” por cerca de dois minutos e se despede com um sorriso: “Então, essa é uma notícia boa, tá bom, pra quem já teve, óbvio.” O suposto estudo foi divulgado pelo site Frontliner e compartilhado, no Twitter, pelo deputado bolsonarista Osmar Terra (DEM-RS). Em sua publicação, Terra escreveu que se surpreende “vendo epidemiologistas dar declarações confusas sobre o fim da pandemia, ignorando que pessoas infectadas ficam imunizadas, tanto ou mais que as vacinadas”. O tuíte teve mais de 5,8 mil interações.
Longe de ser uma boa notícia, Zeballos divulgou desinformação. O Comprova – coalizão que reúne 33 veículos de comunicação (incluindo a piauí) para verificação de boatos – mostrou que o vídeo, que teve mais de 188 mil visualizações no Instagram, é enganoso, assim como a publicação do site e a de Terra. Os dados divulgados por ele não foram obtidos por meio de estudo, mas, sim, via monitoramento epidemiológico. O Ministério da Saúde de Israel esclareceu aos verificadores que não é possível confirmar que a imunidade das pessoas que entraram em contato com o vírus seja mais forte do que a conferida por vacinas e que “não é conhecido no momento” se os anticorpos advindos da infecção natural são mais fortes que os criados pelos imunizantes. A pasta reforçou a importância da vacinação e confirmou que ela já se mostrou eficaz em prevenir casos graves e hospitalizações.
O imunologista também apareceu em outra verificação do Comprova por afirmar, de modo enganoso, que as vacinas não funcionam contra a variante delta e que crianças não desenvolvem a doença nem a transmitem. Em dezessete dias úteis, entre 5 e 27 de agosto, o Comprova teve um pico de checagens de conteúdos enganosos sobre vacinas: foram dez, incluindo as duas mencionadas acima. Todos os boatos, que atingiram mais de 27 mil interações e 578 mil visualizações, desinformam ao desqualificar os imunizantes e/ou negar a eficácia deles. Zeballos não é o único médico que entrou nessa estatística. Das dez checagens, seis vieram de boatos disseminados por médicos. Cinco desses profissionais são alinhados ao governo Bolsonaro – a exceção é o americano Daniel Stock, que viralizou ao afirmar que as vacinas confundem o sistema imunológico. O vídeo dele foi compartilhado em redes bolsonaristas e também atingiu milhares de usuários em outros países.
Zeballos tem mais de 290 mil seguidores no Instagram e aparece, com frequência, em entrevistas ao programa Pânico Jovem Pan. Reportagem do Aos Fatos de fevereiro deste ano, sobre médicos que desinformam sobre a Covid-19, mostra que Zeballos é um dos campeões: está em quatro vídeos com mais de 2,7 milhões de visualizações, e defendeu, em todos eles, a administração de cloroquina em pacientes com coronavírus. Ele também já disse ser a favor do uso de corticoides como “solução” em casos graves da doença. O imunologista é um dos potenciais alvos da CPI da Pandemia e já foi citado por Carlos Wizard – empresário que atuou como consultor informal de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde – como membro de um “conselho científico independente”, juntamente com outros três médicos: Nise Yamaguchi, Anthony Wong (toxicologista morto em janeiro) e Dante Senra.
Ao ser questionado sobre o suposto estudo de Israel pelo Comprova, ele disse que “isso é imunologia básica” e que quem se infecta acaba desenvolvendo resposta imunológica a todas as partes do vírus, não só a uma proteína dele, referindo-se à tecnologia utilizada em algumas vacinas. Além disso, afirmou que falou em “estudo”, mas quis dizer os dados de monitoramento. “E quando faz a conta, vê os números e quem teve infecção realmente ficou mais protegido. Não pode ser considerado um estudo, mas tem vários estudos que mostram que quem pegou a doença tem uma imunidade longa e mais eficaz”, sustentou.
A médica otorrinolaringologista Maria Emilia Gadelha Serra foi outra que viralizou com declarações enganosas sobre as vacinas contra a Covid-19. Um trecho de uma live de que ela participou foi publicado no TikTok, atingindo 135 mil visualizações. Nele, ela tira dados de infecções entre vacinados de contexto; afirma que componentes das vacinas, como o alumínio, causam demência e Alzheimer, o que não tem embasamento científico; e diz que os imunizantes são experimentais. Todas as vacinas utilizadas no Brasil foram autorizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) após terem eficácia e segurança comprovadas ao serem aplicadas em milhares de voluntários durante os testes.
Em seu perfil no Instagram, Serra se apresenta como “médica-detetive hardcore com sangue Viking” e presidente da Sociedade Brasileira de Ozonioterapia Médica (SOBOM). A prática da ozonioterapia é contestada pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), que, em Resolução de 2018, a definiu como “procedimento de caráter experimental, cuja aplicação clínica não está liberada, devendo ocorrer apenas no ambiente de estudos científicos”. Procurada pela piauí, Serra mandou por e-mail dois PDFs que, segundo ela, foram “respostas já enviadas para o Estadão Verifica e Agência Lupa” – ambas são agências de verificação. Nos documentos, ela contesta as checagens e reitera o que disse anteriormente, questionando a eficácia das vacinas.
A bióloga Nathália Leite, divulgadora científica na União Pró-Vacina – iniciativa da USP (Universidade de São Paulo) em parceria com instituições científicas que tem como objetivo produzir material informativo sobre vacinas e combater informações falsas – destaca que, além do discurso, muitas figuras alinhadas ao governo adotaram postura anticientífica, defendendo aglomerações e o não uso de máscaras. “As questões científicas não estão isoladas da sociedade, da economia e da política. Portanto, muito do discurso de profissionais da saúde vai ao encontro das ideias do governo Bolsonaro. A pandemia e as vacinas foram ‘politizadas’, o exemplo mais clássico é a enorme sinofobia vinda de indivíduos com aspirações políticas de direita. Por isso que – ainda que profissionais da saúde – esses indivíduos mantêm opiniões contrárias ao que diz a ciência e preferem seguir ideologias”, comenta Leite, mestranda em imunologia na USP.
Segundo ela, a utilização de informação verdadeira fora do contexto para construir boatos é uma estratégia comum. É o caso, por exemplo, de dados de órgãos reconhecidos como o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos. O empresário bolsonarista Otávio Fakhoury, presidente do diretório estadual do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em São Paulo, postou em seu Twitter que o órgão americano estava aconselhando a suspensão da aplicação da vacina contra a Covid-19 da Janssen. A postagem é enganosa ao levar a entender que a situação é atual. A interrupção ocorreu em abril e, no mesmo mês, a vacinação foi retomada. Fakhoury é investigado em inquéritos do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre propagação de notícias falsas e financiamento de atos antidemocráticos. A polícia encontrou no computador do empresário notas fiscais emitidas por duas gráficas do Nordeste que indicam que ele custeou material de divulgação da campanha de Bolsonaro à presidência, em 2018, sem registrar na Justiça Eleitoral. No Twitter, ele se define como “conservador, antiglobalista e anticomunista”. Logo após contato do Comprova, o post foi excluído e substituído por outro no qual ele alega que a suspensão temporária seria prova do caráter experimental das vacinas – o que também é enganoso.
Para a piauí, a assessoria de imprensa do empresário enviou vários links de artigos científicos e disse que a primeira publicação de Fakhoury foi postada com um erro na “data”, mas foi apagada e corrigida. O inquérito dos atos antidemocráticos foi arquivado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. O ministro determinou a abertura de outra investigação para apurar a existência de uma organização criminosa digital voltada a atacar as instituições a fim de abalar a democracia, incluindo a atuação de Fakhoury. Sobre o inquérito das fake news, a assessoria disse que está “para ser arquivado” e “na iminência de terminar e devolverem a conta de Twitter dele”. A conta antiga de Fakhoury foi retirada do ar por decisão do Supremo.
A vacinação de jovens, que começou recentemente no país, serviu para estimular boatos, como o postado pelo site antivacina Coletividade Evolutiva afirmando que 80% das crianças vacinadas desenvolvem efeitos adversos – e dando a Pfizer como fonte da informação. A farmacêutica informou aos verificadores que não tem nenhum estudo sobre vacinação em crianças concluído. O site publica de modo recorrente textos enganosos ou falsos sobre imunizantes. Relatório da Avaaz.org de 2019, em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), sobre como a desinformação estaria reduzindo as taxas de cobertura vacinal no Brasil, já apontava o Coletividade Evolutiva pelo destaque na produção de conteúdo antivacinação no país.
Os recentes casos de Covid-19 em pessoas vacinadas, incluindo personalidades, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), Tarcísio Meira, Glória Menezes, Zeca Pagodinho e Silvio Santos, também foram um prato cheio para a produção e disseminação de conteúdos enganosos. Um exemplo é o post que, assim como o boato que afirmava que o diagnóstico positivo de Doria significava uma ineficácia da vacina, usa a estratégia de associar a internação do apresentador Silvio Santos com uma suposta falha da CoronaVac.
A infectologista da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Raquel Stucchi, consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), diz que as vacinas funcionam, sim, e reduzem os casos graves e a mortalidade. “É inegável que a vacinação conseguiu diminuir o número das internações, dos casos graves e da mortalidade. Se nós analisarmos os dados de março e abril, é facilmente perceptível que houve uma diminuição expressiva das internações e da mortalidade nos idosos que foram os primeiros a serem vacinados.” No entanto, ela destaca que, com a vacinação no mundo todo, o que foi observado e já documentado é que a proteção de todas as vacinas, independentemente do fabricante, diminui com o passar dos meses. “Particularmente, para alguns grupos populacionais, como por exemplo, os idosos. Eles vão perdendo a proteção pela vacina depois de 4 a 6/7 meses. Essa é a explicação porque, passados todos esses meses aqui no Brasil, nós devemos observar e já estamos observando um aumento de internação de idosos e vamos, infelizmente, observar também um aumento da mortalidade”, explica. Dessa forma, de acordo com a infectologista, a terceira dose – que começará a ser aplicada em setembro no país – para determinados grupos é essencial, “porque nós já sabemos que para qualquer vacina há uma redução da proteção”. Em nota enviada ao Comprova, a SBIm ressaltou que nenhuma vacina tem 100% de eficácia. Além disso, fatores como imunossenescência (queda natural da imunidade relacionada ao envelhecimento), comorbidades e possível menor resposta a variantes podem contribuir para a redução do índice.
O Comprova, desde o início da pandemia, tem um fluxo elevado de boatos sobre vacinas, elaborados com o objetivo de negar a eficácia e desqualificar os imunizantes. Isso se intensificou, porém, nos últimas semanas. De acordo com Sérgio Lüdtke, editor do projeto e integrante da equipe da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o pico das últimas semanas está relacionado com o fato de a desinformação se apegar à agenda pública para ganhar tração nas redes. “Com mais gente vacinada e casos de infecção aparecendo entre os imunizados, o que já era esperado por quem estava informado, o questionamento dos desavisados sobre a eficácia dos imunizantes cresceu muito. O problema é que negacionistas e grupos antivacina se aproveitam desse momento de desarranjo da informação para potencializar a dúvida e plantar informações enganosas ou sabidamente falsas”, explica. Lüdtke ressalta que o esvaziamento do discurso pró-tratamento precoce – defendido por todos os médicos citados na reportagem – também serviu para levar, novamente, o tema dos imunizantes à narrativa de grupos que partidarizam a pandemia. “Questionar as vacinas é a sua última ficha”, afirma.
Roberto Zeballos e Osmar Terra também foram procurados pela piauí, mas não retornaram até a publicação desta reportagem.
As verificações citadas no texto foram feitas pela equipe do Comprova, com participação de jornalistas dos seguintes veículos: Estadão; Jornal do Commercio; Correio Braziliense; Correio de Carajás; Jornal Correio; Rádio BandNews FM; Folha de S.Paulo; Alma Preta; Diário do Nordeste; e revista piauí. Você pode acessar todas elas no site do Projeto Comprova: https://projetocomprova.com.br/
*Diferentemente do que a piauí publicou, o imunologista Roberto Zeballos não é contratado do Hospital Sírio-Libanês. É apenas um médico credenciado, que faz atendimentos ocasionais na unidade. O último deles foi em 2018.
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