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    Com alta densidade sonora e visual, documentário de Eliza Capai expressa sentimentos de mães que tiveram a gravidez interrompida Crédito: Divulgação/Lucas Pupo

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Mergulho em água profunda

Documentário premiado de Eliza Capai expõe dores de gravidez interrompida

Eduardo Escorel | 31 maio 2023_08h00
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Entre outras imagens recorrentes, as de água se destacam em Incompatível com a Vida (2023), de Eliza Capai, premiado como Melhor Documentário da Competição Brasileira de Longas ou Médias-Metragens e Melhor Montagem de Longa ou Média -Metragem, creditada a Daniel Grinspum, no 28º Festival É Tudo Verdade, realizado em abril.

Decorridos cerca de 14 minutos de Incompatível com a Vida, uma mulher toma banho de chuveiro, podendo-se presumir que ela seja a própria Capai. Em voz off, uma entrevistada diz: Eu acho que ser mãe é meio que se jogar, no escuro, né? Você é mãe, tipo: o que que vai vir disso eu não sei, mas a gente tem que lidar. No plano seguinte, embalada pela música, talvez a mesma mulher, de costas, com o torso nu, dança diante da janela através da qual se pode ver ao longe as luzes da cidade, enquanto Marina Lima canta Grávida: … Esperando um avião/Cada vez mais grávida/Estou grávida de chão/E vou parir/Sobre a cidade/Quando a noite contrair/E quando o Sol dilatar/Dar à luz… A palavra final desse último verso coincide com uma tomada geral noturna da cidade que termina em fade out. Seguem-se flashs de crianças, separados por frações de segundo de tela preta, uma jogada para o alto, outra brincando na praia, a terceira correndo para o mar e mergulhando. No plano seguinte, unido ao anterior por meio de um corte em raccord, uma mulher não identificada submerge na água escura, deixando um rastro de bolhas iluminadas. Passa-se a ouvir relato que parece ser feito por Capai: Eu tava sonhando que tava te procurando no mar – plano geral de uma nesga de areia na qual pequenas ondas quebram e uma mulher caminha no sentido da água – e tinha um cara brincando com uma criancinha e eu entrava e começava a brincar. Era um… – tela preta – e ficava brincando com ele no mar de… – plano geral, de cima pra baixo, de uma mulher nadando mar adentro – essa coisa de jogar para cima, pega embaixo da água. Aí eu vi que ele adorava quando caía, assim, embaixo d’água. Aí jogava, ele ria – início fade out lento da imagem – e aí, quando eu fui pegar ele embaixo d’água, a cabeça escorregou, assim, na minha mão. E quando ela escorregou abriu atrás, assim, um, como se fosse um abismo, cara. E a imagem lembrava imagem de ultrassom, sabe? Tipo um negócio meio triangular, assim, escuro, e a cabeça caiu dentro do abismo – fusão para encosta rochosa – Credo… (som de bocejo). Acordei assustadíssima.” – corte para tela preta.

A sequência, da qual as palavras só conseguem dar pálida ideia, tem duração em torno de 3 dos 92 minutos de Incompatível com a Vida. Mesmo assim, causa impacto, além de condensar e esclarecer o que está em jogo no documentário.

Segue-se outra sequência, de força equivalente, mas um pouco mais breve, que tem início com plano de Capai chorosa, de perfil. Voz masculina em off indaga: Mas por que que tu choras? Ela responde: Não tem motivo a maioria das vezes. Só dá uma vontade de chorar. – tela preta – Acho que tem a ver com medo também de… – retoma plano de perfil anterior – essa coisa de estar… sabendo o tempo todo, tipo: com esses corrimentosinhos, de saber se a bichinha está saudável ou não está saudável; se vai ter aborto ou não vai ter aborto. A voz masculina afirma: Mas claro que está saudável. Capai vira de frente para a câmera: O quê? Ele: Claro que está saudável. Ela: Como você sabe? Ele: Por que na ecografia tem batimento cardíaco, tem o tamanho que devia ter. Ela: Tem um monte que bate o coração e tem outros problemas. Ele: O que a leva a pensar nisso dessa maneira? Ela: Quando a gente fez o teste que deu positivo deu muita alegria, eu fiquei muito alegre naquele momento, assim. E tem isso, o primeiro sangramento me… é tipo um… é um medo que eu… não sei se é medo. É um sentimento que eu não conheço, assim de… de fragilidade, sabe? De que… Porra, é muito doido saber que tem uma vida dentro de mim e que eu não tenho controle nenhum disso que é óbvio que a maternidade é isso também. Acho que uma preparação mental pro que, pro que é. Mas é, não sei…

A tentativa precária de descrever esses cerca de 2 minutos a mais deve ser suficiente para deixar clara a alta densidade de Incompatível com a Vida – densidade sonora e visual, de assunto e linguagem. Árduo devido ao tema, o documentário nem sempre é fácil de apreender dado o acúmulo de informação. Mas, no todo, resulta corajoso e necessário, o que é mais relevante.

Passado o primeiro terço, Capai, enrolada nos lençóis com seu companheiro, diz a ele: Eu tenho pensado muito em por que que as pessoas aceitam que a gente registre elas na hora da dor, sabe? Eu não deixaria nenhuma outra pessoa gravar a gente agora – diante do quê, fica a dúvida quanto ao motivo de Capai ter sentido necessidade de não centrar a câmera apenas em si mesma. Faltando cerca de 10 minutos para o fim, ela dá uma pista em voz off, dirigindo-se a uma de suas entrevistadas: Parece que… a sensação era que eu não ia conseguir sair dali… que eu não ia conseguir reagir, que ia ficar ali, sabe? Travada naquela, naquela tristeza. Naquela falta de fé na vida. E eu queria entender como é que foi, como é que é, esse processo para vocês. Tentativa frustrada, em parte, quando uma das entrevistadas inverte o jogo ao dizer: Posso ser um pouquinho a entrevistadora e perguntar uma coisa a você? Seu casamento acabou depois disso, mas por isso ou já vinha em vias de…? – Capai não deixa de responder, embora protegida por estar fora de quadro.

No final, a mulher que mergulhou na primeira sequência mencionada volta à tona da água escura, após legendas informarem que em Portugal, dez anos depois que a interrupção voluntária da gravidez foi legalizada, nenhuma mulher morre de aborto no país, enquanto no Brasil, uma mulher morre a cada dois dias por causa de aborto inseguro. É um encerramento que sugere a esperança de que as medidas legais necessárias sejam tomadas para acabar com o morticínio.

Incompatível com a Vida não tem ainda data confirmada de lançamento no Brasil. Está sendo planejada para o segundo semestre uma campanha para incentivar o debate sobre a descriminalização do aborto.

 

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Vem de ser lançado, celebrando os 90 anos de Eduardo Coutinho, o e-book Cabra Marcado para Morrer, organizado por Rogério de Almeida, Christiane Pereira de Souza e Kamilla Medeiros. Editado pela Faculdade de Educação da USP, com prefácio de Pedro de Oliveira Coutinho, o livro reúne vinte artigos e está disponível para download no link. Os autores incluem, entre outros, Ismail Xavier, Esther Hamburger, Carlos Augusto Calil, Diorge Alceno Konrad, Cláudia Mesquita, Patrícia Machado, Reinaldo Cardenuto e Fábio Andrade. Tendo lido só uma das colaborações antes de o e-book ter ficado disponível, destaco apenas, por enquanto, o interesse que certamente têm a entrevista de Coutinho sobre o Centro Popular de Cultura e a conversa com Juliana, neta de Elizabeth Teixeira, sem qualquer demérito para os demais colaboradores.

 

 

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