Microfone amazônico
Comunicadoras indígenas investem em podcasts para cobrar direitos e combater desinformação
“Começa agora o informativo da rede de comunicadores indígenas do Rio Negro. Olá, parentes e amigos do nosso boletim de áudio. Aqui é Claudia Wanano do Wayuri, a rede de comunicadores indígenas do Rio Negro. Chegamos na 142ª edição do nosso boletim de áudio Wayuri, o podcast mais querido da Amazônia, que desde 2017 traz muitas notícias para os 23 povos indígenas da região do Rio Negro. ” Assim o episódio 142 do Boletim Wayuri, transmitido no dia 6 deste mês, saudou o público. A comunicadora Claudia Ferraz falou então do mercado de créditos de carbono e do Acampamento Terra Livre 2023, um encontro que reuniu 6 mil indígenas em Brasília no mês de abril. Para quem não conhece a região do Rio Negro, pode parecer surpresa que um podcast voltado para comunidades indígenas exista há tanto tempo, mas o Boletim Wayuri é só uma mostra de uma rede de comunicação indígena atuante na Amazônia brasileira. Há outras produções, algumas faladas em línguas indígenas. O Maiuhi mayuka, por exemplo, é um podcast realizado pelo Iepé (Instituto de Pesquisa e Formação Indígena) e circula internamente na região da cidade de Oiapoque, no Norte do Amapá. A maioria dos episódios está na língua kheuól, falada pela etnia Karipuna.
Claudia Ferraz, indígena da etnia Wanano, mora em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, considerada a cidade mais indígena do Brasil. Os diferentes povos e etnias locais representam 90% da população total do município. Além do português, que não é falado por todos, São Gabriel da Cachoeira tem mais quatro línguas co-oficiais: tukano, baniwa, nheengatu e yanomami. Claudia esteve no Rio para o Festival 3i de Jornalismo, realizado na Glória de 5 a 7 de maio. Numa mesa voltada para experiências hiperlocais de jornalismo, falou do trabalho da Rede Wayuri, que ajudou a criar em 2017.
Seis anos depois, a Wayuri já conta com oitenta comunicadores indígenas que levam informações e notícias das suas regiões para 23 povos de territórios indígenas, alcançando 750 comunidades de diferentes línguas e etnias. Os colaboradores da Rede são originários de dez etnias diferentes da região do Rio Negro no Amazonas. Comunicadores Baré, Baniwa, Desano, Tariano, Tuyuka, Tukano, Wanano, Yanomami, Piratapuia e Hup’dah produzem conteúdo nas línguas locais para suas comunidades, que dependem da Rede Wayuri para ter acesso a informações.
Durante a pandemia, sobretudo no início nos primeiros meses de 2020, um recurso muito utilizado foi o carro de som. O veículo passava nas aldeias informando do perigo do novo vírus, os cuidados a serem tomados e da importância de não sair de casa. “Assim como as grandes emissoras de jornalismo, nós comunicadores da Wayuri não paramos de trabalhar na pandemia. Corríamos o risco de pegar o vírus para não deixar de informar o nosso povo. Fizemos um trabalho contínuo. Não paramos”, contou Ferraz em sua palestra no festival 3i. Wayuri significa, em nheengatu, ‘trabalho coletivo’.
A rede teve grande atuação no combate a desinformação, rebatendo falas preconceituosas sobre seus povos e mentiras relacionadas ao desmatamento na Amazônia. O trabalho dos comunicadores da Wayuri foi reconhecido internacionalmente. No ano passado, eles receberam o Prêmio Estado de Direito 2022, do World Justice Project (WJP). Um dos colaboradores do povo baré, Marivelton Barroso, foi receber a premiação representando os povos indigenas do Rio Negro em Haia, na Holanda, durante o Fórum Mundial de Justiça.
A Rede Wayuri produz ainda o Boletim, podcast de 30 minutos que funciona como um “resumão de notícias”, como definiu Ferraz, para determinada comunidade. Alguns desses boletins são feitos apenas na língua local e voltados para indígenas que não falam português. “A Wayuri funciona como uma teia de aranha. Vamos criando e fortalecendo os laços para evoluir o trabalho de cada um. Nosso objetivo é alcançar cada vez mais povos”, ressalta Claudia. Ela também é uma das apresentadoras do Papo de Maloca, transmitido na FM O Dia, de São Gabriel da Cachoeira, nas manhãs de quarta-feira. Claudia conta que a frequência da rádio (92,7 FM) só pega dentro do município. Mas é possível ouvir o boletim informativo pelo Spotify ou outras plataformas de áudio.
A 2.046 km de São Gabriel da Cachoeira vive Luene Karipuna, outra palestrante do festival 3i de jornalismo, na região Norte do Amapá. Luene é uma das lideranças da maior organização indigena regional do Brasil – a Rede Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), que abrange nove estados da Amazônia (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Por meio da comunicação, a Coiab consegue unir os povos desses estados situados nas 64 regiões de base, alcançando 23 povos indígenas.
Ela conta que a rede é formada por 79 comunicadores espalhados pelos territórios da Coiab. “Nós temos um grupo de Whatsapp com esses comunicadores. Cada um deles ali representa diferentes povos. Nosso intuito é cada vez mais agregar e dar voz a essas comunidades”, explica. Essa troca permite que as informações de cada localidade cheguem ao grupo com todos Lá elas são adaptadas e selecionadas para serem enviadas para a Coiab colocar na plataforma e no site, podendo ser divulgadas nos diferentes formatos multimídia que a rede oferece.
Luene se despediu do festival 3i de Jornalismo com um canto indígena ancestral. Entoou o Xitótó, um cântico tradicional de seu povo. Segundo a tradição dos karipuna, um casal havia acabado de construir sua moradia num determinado local do povoado. Na primeira noite eles não conseguiram dormir por conta de barulhos atordoantes vindos de baixo da casa. Toda noite acontecia a mesma coisa, e o casal recorreu ao pajé, que explicou que antes de construir uma moradia deve-se pedir permissão ao dono daquele lugar. Para ajudar o casal, o pajé realizou o Xitótó, como forma de conseguir conversar com o Karuana (espírito, entidade) que estava naquele local e assim liberar o espaço para o casal viver em paz. Os pajés realizam esse ritual também como um processo de cura, que ao cantar e evocar os karuanas, encontram respostas e inspirações para solucionar cada caso.
À piauí, Luene disse que para ela o Xiotótó virou um símbolo de conexão. “É um canto que minha mãe sempre faz. Para nosso povo, o ritual é uma forma também de se comunicar com a natureza, com o nosso espaço, e de se conectar com as pessoas através da comunicação. Até porque a comunicação cura e salva vidas. Isso é comunicação indígena”, conclui.
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