Ilustração de Carvall
Militares insaciáveis
Como a Defesa arrombou o teto salarial e ainda cobra aumento retroativo
Era abril de 2018 e Jair Bolsonaro ainda vivia no condado da Barra da Tijuca, mas os militares já davam início à manobra administrativa que resultou na seguinte festança: graças a uma portaria do Ministério da Economia publicada em abril deste ano, mil servidores do Executivo, alguns do alto escalão, como o presidente da República, o vice-presidente e pelo menos três de seus ministros militares, receberão, a partir de maio, salários acima do teto constitucional de 39 200 reais. No caso do general Luiz Eduardo Ramos, da Casa Civil, seus rendimentos mensais devem superar 60 mil reais, somando-se a aposentadoria como general de exército, última patente a ser alcançada, e o salário de 30 mil reais como ministro de estado.
A estratégia contou com o empenho máximo do Ministério da Defesa e teve início logo depois que o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou um acórdão, em março de 2018, sustentando que, em casos de servidores que acumulassem salário e comissão acima do limite constitucional, o teto poderia ser aplicado individualmente para cada remuneração. A corte de contas chegara a tal entendimento depois de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2017, sobre dois casos específicos. O primeiro envolvia um militar aposentado com cargo em outra instituição pública, para o qual havia prestado concurso. Ele recebia, portanto, a aposentadoria e o salário de concursado, num total que ultrapassava o teto. Como ele havia passado no concurso antes da emenda constitucional que estabeleceu o teto, em 1998, o militar entrou na Justiça pelo direito de receber a dupla remuneração, num caso que escalou até o STF. O segundo se referia a um médico que acumulava dois salários em duas secretarias do governo do estado de Mato Grosso.
Com exceção do ministro Luiz Edson Fachin, todos os magistrados votaram favoravelmente à autorização do que é chamado hoje de “teto duplex”. Os ministros acataram a tese de que a aplicação do teto deveria ocorrer isoladamente sobre cada salário, e não sobre o valor total recebido pelo indivíduo. Eles entenderam que, ainda que prevista na Constituição, a aplicação do abate-teto sobre o todo privaria os indivíduos em questão de serem remunerados por um dos trabalhos exercidos. “Impedir que alguém que acumule legitimamente duas funções, dois cargos, receba adequadamente por elas significa violar um direito fundamental, que é o do trabalho remunerado”, disse o ministro Luis Roberto Barroso, em seu voto em um dos processos. Contudo, por se tratar de decisão de repercussão geral da Corte, ela seria válida apenas para casos idênticos ao julgado, sem efeito vinculante na administração pública.
O acórdão do TCU foi a deixa para que a Defesa empreendesse uma ampla movimentação burocrática de pareceres e notas técnicas favoráveis ao avanço sobre o teto. O primeiro passo foi dado menos de um mês depois, em 9 de abril de 2018, quando um servidor do órgão enviou um ofício ao ainda existente Ministério do Planejamento pedindo que a pasta analisasse a possibilidade de as decisões do STF e do TCU impactarem de maneira uniforme a remuneração de outros servidores públicos. A mesma consulta foi feita às áreas jurídicas de todas as Forças e também à consultoria jurídica da própria Defesa. Do Planejamento, não houve resposta. Mas todas as Forças emitiram notas e pareceres favoráveis, sendo o então vice-almirante da Marinha Flávio Rocha a única voz parcimoniosa. Ele alertava que a ação ainda não havia transitado em julgado no STF e, caso a regra do teto fosse mudada de imediato, se houvesse uma reversão da decisão, o ônus ficaria com a Marinha, o que não seria conveniente, segundo ele.
Uma nota técnica da consultoria jurídica do Ministério da Defesa, datada de agosto de 2018, tratou o tema de maneira especialmente contundente e viu “inconstitucionalidade” na aplicação do teto sobre duas remunerações somadas. Ela não só concluía que o teto não deveria ser aplicado sobre o total, como informava, em letra capitular, NÃO HAVER ESPAÇO NA ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE PARA TRABALHO NÃO REMUNERADO. Em março de 2019, com Bolsonaro governando ao lado de sete ministros militares – incluindo o da Defesa, o general Fernando de Azevedo e Silva – o gabinete do Comandante do Exército fez uma consulta ao Ministério da Defesa. Com base na nota técnica de agosto de 2018, o comando questionava, num ofício assinado pelo coronel Oswaldo Sant’Anna, se já poderia começar a pagar o seu alto escalão sob a nova regra imediatamente. A resposta foi negativa. Mas o tema andou – e rápido – nas consultorias jurídicas dos ministérios, na Controladoria-Geral da União (CGU) e na Advocacia-Geral da União (AGU).
A única pasta consultada que emitiu parecer desfavorável foi o Ministério da Economia. Em 13 de março de 2020, a Secretaria de Gestão afirmou não haver previsão constitucional para o acúmulo de remuneração. Diz o documento: “Não há fundamento legal que ampare o direito de receber valores superiores ao teto constitucional, uma vez que a Constituição Federal veda a remuneração/proventos/pensão ou qualquer outra vantagem acima do teto estabelecido.” O secretário da pasta na época, Paulo Uebel, havia sido contra a mudança, mas deixou o cargo em agosto daquele ano, por não conseguir empreender as reformas liberais que almejava, como a administrativa, que passou a tramitar no Congresso apenas esse ano. A portaria que permite o “teto duplex” foi assinada pelo sucessor de Uebel, Caio Mario Paes de Andrade.
Menos de um mês depois, em 8 de abril de 2020, um longo parecer assinado pela advogada da União, Fernanda Raso Zamorano, cravava o exato oposto do que orientava a Economia: que o teto deveria ser aplicado separadamente para cada remuneração recebida por um servidor (civil ou militar). Escreveu a servidora: “em razão de uma interpretação que prestigia os princípios da isonomia, da valorização do trabalho (…), o teto remuneratório deve ser considerado isoladamente para cada um dos cargos, e não em relação ao somatório dos ganhos do agente público.” No dia seguinte, o parecer de Zamorano foi chancelado pelo Advogado-Geral da União André Mendonça, unificando o entendimento de que o teto poderia ser furado em todo o Poder Executivo.
Diante do entendimento da AGU, nenhuma pasta protestou, embora o país estivesse prestes a cair no precipício da pandemia. Nem mesmo a Economia, que era contra a medida. Foi o Ministério da Defesa, autor de toda a movimentação burocrática desde a origem, que decidiu tirar o time de campo temporariamente. A pasta pediu a suspensão da decisão do AGU em 29 de abril, alegando ter dúvidas sobre alguns pontos da decisão e ponderando que, diante da pandemia, seria mais conveniente direcionar todos os esforços ao combate ao vírus. Entre as dúvidas destacadas pela Defesa estava uma questão cara aos militares: pensionistas, como filhas e viúvas de oficiais, poderiam acumular a pensão e uma remuneração do setor público fora do teto? Por exemplo: a filha de um general falecido que ainda recebe os proventos do pai, da ordem de 30 000 reais, poderá acumular o benefício juntamente com o salário que venha a receber caso seja servidora pública? Em junho de 2020, período em que se discutia a abrangência do auxílio a ser concedido à população brasileira afetada pelo coronavírus, a Presidência da República também se mostrou preocupada com o teto – no caso, o salarial, não o de mortes nem o do auxílio – e pediu à AGU que detalhasse mais qual seria o escopo da nova regra. A Presidência enviou um ofício questionando o ponto que atingia diretamente o entorno militar de Bolsonaro: como ficaria a nova regra para membros das Forças Armadas, da ativa ou não, enquanto ocupantes de cargos comissionados no governo?
Para sanar essas questões, o Ministério da Economia foi consultado novamente, em junho de 2020, e manteve a negativa, alegando a inconstitucionalidade de se avançar sobre o teto. As demais consultorias jurídicas dos órgãos discordaram que a medida pudesse ser estendida a pensionistas, mas mantiveram o acordado: que o teto pode incidir de maneira isolada sobre cada ganho, incluindo aposentadoria, e não sobre o total. Em dezembro, diante da expectativa do governo de que a pandemia estaria em seus dias finais no Brasil, a AGU voltou a confirmar a mudança de regra fura-teto e comunicou todos os Ministérios sobre a boa nova. Dessa vez, o Ministério da Defesa não sugeriu que se voltasse atrás.
A decisão da AGU era aguardada com tanta veemência para antes do Natal que a área de gestão de pessoal do Ministério da Defesa se apressou em fazer uma lista de dez generais da pasta elegíveis à nova remuneração, incluindo o então ministro Azevedo e Silva. No mesmo ofício, avisou que já disponibilizaria o salário turbinado naquele mês, e, caso houvesse algum recuo, o dinheiro poderia ser devolvido posteriormente ao Tesouro. A despeito da pressa verde-oliva, a medida só foi oficializada em 29 de abril deste ano, depois de publicada no Diário Oficial, como portaria, justamente pelo único Ministério que havia se posicionado contra a voracidade da caserna. No dia 11 de maio, uma nova consulta chegou à AGU sobre o caso. A origem: novamente o Ministério da Defesa. A pasta quer saber se pode pagar os salários acima do teto retroativos a dezembro, mês em que o parecer da AGU foi publicado – e não a partir de abril, data em que a portaria foi assinada. Procurado, o Ministério da Defesa disse apenas que os proventos “sob a nova metodologia remuneratória” começaram a contar a partir de 1º de maio deste ano, não antes. Em tempos mais civilizados, a gula do personagem Obelix o transformou em estátua de mármore – baita punição para quem apreciava uma boa carne de javali. Contra o apetite insaciável dos militares do governo Bolsonaro ainda não há antídoto.
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