Cena de Irene e Jean Foto: Divulgação
A miséria humana em cartaz
Longa-metragem Carvão aborda a degradação a que mulheres e homens podem ser submetidos
Acordei com maravilhosa sensação de alívio – Luiz Inácio Lula da Silva havia sido eleito na véspera para seu terceiro mandato de presidente da República. Ainda seria preciso tolerar por mais dois meses o incumbente derrotado, mas a simples perspectiva de ele desocupar o Palácio da Alvorada até o final do ano era animadora.
Tão difícil de entender como foi possível o veterano deputado federal ser eleito em 2018, porém, é o fato de ele ter recebido este ano mais de 58 milhões de votos no segundo turno. Sinal de que o estado mental de parcela ponderável da população brasileira está longe de ser dos melhores.
Conforme previsto, declarações irresponsáveis seguidas de atos insensatos não cessaram, em sintonia com o que ocorreu ao longo dos últimos quatro anos – o candidato derrotado considerou o bloqueio de estradas e as manifestações diante de quartéis demonstrações legítimas da “indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”! Covarde e dúbio, como sempre, estimulou a agitação golpista de seus seguidores, enquanto dizia aos ministros do Supremo Tribunal Federal que “acabou”. E assim chegamos ao Dia de Finados, inquietos, sem ter certeza de que acabou de fato.
Aproveitei o feriado para assistir a Carvão (2022), estreia marcante em longa-metragem de Carolina Markowicz, que ganhou atualidade inesperada e significados imprevistos há mais de sete anos, quando o projeto começou a ser elaborado. Após estrear em setembro na mostra competitiva do Festival de Toronto e ser exibido dias depois, também em competição, no Festival de San Sebastian, o filme participou, em outubro, do Festival do Rio e da Mostra Internacional, em São Paulo. Ao estrear entre nós em plena campanha presidencial e ser lançado dias depois (3/11) em quatorze cidades, no circuito comercial de cinemas, Carvão parece ter assegurado que sua trama e seus personagens serão forçosamente relacionados ao Brasil atual.
Na entrevista a Gadi Elkon, blogueiro dedicado a entretenimento, gravada à distância em vídeo durante o Festival de Toronto, Markowicz falou do contexto político brasileiro e de suas intenções ao realizar Carvão, do qual, além de diretora, é também autora do roteiro:
…aqui no Brasil temos o presidente que afirma preferir ter um filho morto a um filho gay, então, quando você diz algo assim você permite a violência de uma forma muito clara… e nosso presidente também diz que as pessoas deveriam ter armas para se defender, que todos deveriam se defender dessa forma, o que naturalmente cria mais violência… É o que eu tento criticar nos meus filmes, porque essa questão gay, porque eu sou gay, então isso me emociona pessoalmente… eu acho que neste filme esse não é o tema principal, mas é algo muito significativo, principalmente quando você está no campo, quando você está em um lugar muito conservador, porque isso se torna… um problema e um problema que é nosso problema e se torna um problema maior do que um problema real, então se torna uma coisa insana. E assim eu sempre tento fazer essas comparações nos meus filmes e tento usar um jeito satírico e um tipo de humor ácido porque eu acho que é importante as pessoas se verem retratadas de uma forma satírica, e eu acho que o cinema tem o poder de fazendo isso… as pessoas verem umas às outras, pensarem sobre outras e quando elas fazem isso, o que elas sentem e no que tentam pensar… para tentar mudar o status quo em que estamos vivendo que não é muito, muito… poderíamos estar fazendo melhor. (A tradução é por minha conta e a entrevista completa em inglês está disponível no link.)
Em outra entrevista, à revista Variety, Markowicz afirmou que “vivemos em um mundo muito violento, imune aos seus momentos absurdos”.
Ao assistir a Carvão três dias depois do segundo turno da eleição presidencial fiquei sabendo que as gravações foram feitas no interior do estado de São Paulo, na região de Bragança Paulista, em Joanópolis, Piracaia e arredores. Fui levado, então, a especular, por hipótese, sobre quem teria sido o candidato de Irene (Maeve Jenkins) e Jairo (Rômulo Braga), dois dos personagens centrais de Carvão. O casal tem uma pequena carvoaria no quintal da casa onde vive com o filho Jean (Jean Costa) e Firmino (Benedito Alves), pai inválido de Irene, prestes a completar 89 anos. E as moradoras e os moradores da vizinhança, em quem teriam votado? Cogitação meio estapafúrdia, talvez, mas creio que justificada, considerando que o incumbente derrotado no segundo turno da eleição presidencial de outubro venceu em 547 das 645 cidades do estado e teve a preferência de 55,24% do eleitorado paulista. Em Joanópolis, principal locação das filmagens de Carvão, o presidente atual foi o mais votado, tendo recebido 66,81% dos votos totais da cidade.
Confesso ter estranhado Carvão ser considerado uma sátira e a plateia costumar rir durante as sessões. Tenho dificuldade em identificar a intenção satírica do filme e não vejo qualquer justificativa para risos. De que os espectadores riem? Será um riso nervoso? A falta de sensibilidade para sátiras explicaria minha incompreensão?
Para mim, Carvão é um magnífico filme sobre a miséria humana e a degradação a que mulheres e homens podem ser submetidos. Um filme tão estranho quanto vigoroso. Inquietante do início ao fim, retrata um universo afim à mentalidade doentia de milhões de seguidores do incumbente derrotado, um homem obtuso e insensível ao sofrimento alheio.
Atos vis se sucedem em Carvão, tornando-se cada vez mais cruéis. A única alternativa que resta ao espectador seria rir na tentativa de se manter distante do que acontece, iludindo-se, como se o que vê na tela não fosse um poço no qual todos caímos e deixamos de ser resgatados?
Além da potência do roteiro, a fatura de Carvão tem múltiplas virtudes que incluem desde as magníficas locações bucólicas à ambientação criada pela direção de arte e todo o elenco, com destaque para Maeve Jenkins. Isso sem esquecer as valiosas contribuições do restante da equipe. Ao roteiro e à montagem faço um reparo: Miguel (César Bordón), o segundo personagem principal, a meu ver tarda demais a ser introduzido. Sua aparição súbita, aos cerca de 20’ do filme, é brusca e desconcertante.
Deixo para terminar um registro pessoal, antes que algum espírito malévolo me acuse de estar favorecendo uma amiga: Zita Carvalhosa, produtora de Carvão, é produtora também de um dos dois documentários que estou realizando.
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Destaque (XVI):
“Trazidos às proporções modestas das telas domésticas ou das telas de bolso, os horrores certamente não são reduzidos, mas miniaturizados e domesticados, uma vez que enquadrados – mantidos na tela. É assim que a tela pequena é por si só um corretor e climatizador de violências pavorosas.” Jean-Louis Comolli, Une certaine tendance du cinema documentaire. Éditions Verdier, 2021, p.16 (tradução EE)
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