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Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido

Há 50 anos completados neste mês de outubro, Arne Edvard Sucksdorff (1917-2001) chegava ao Rio, enviado pela UNESCO para dar um curso de cinema, com duração de 5 meses, patrocinado também pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, através do Departamento Cultural.

| 19 out 2012_11h54
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I – Origem

Há 50 anos completados neste mês de outubro, Arne Edvard Sucksdorff (1917-2001) chegava ao Rio, enviado pela UNESCO para dar um curso de cinema, com duração de 5 meses, patrocinado também pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, através do Departamento Cultural.

Sucksdorff, um naturalista tardio (ou ambientalista precursor, conforme o ponto de vista), com 45 anos na época, iniciara sua carreira de cineasta na década de 1940 com curta-metragens cujo tema central é a luta pela existência – homem e fauna em confronto na natureza. Répteis, insetos, raposas, coelhos, gaivotas, cervos, tigres, lontras, galinhas, aves, linces, lebres e… meninos, vivendo relação dialética entre caçador e caça, fotografados em esplendoroso preto e branco.

Em 1948, Sucksdorff ganhara notoriedade com o curta-metragem  (foto ao lado), vencedor do Oscar – primeiro prêmio da Academia dado a um sueco. E seis anos depois atingira o ápice do seu prestígio ao receber o Grande Prêmio Técnico no Festival de Cannes, além de uma menção especial pela direção, ambos por A grande aventura. No júri, presidido por Jean Cocteau, estavam André Bazin e Luis Buñuel, entre outros. Com esse mesmo filme ganhou ainda, no Festival de Berlim, a Grande Medalha de Prata para documentários e filmes culturais.

Nos dois projetos, teria contado com o apoio, inclusive financeiro, de seu amigo Dag Hammarskjold, que teria sugerido ainda cenas da natureza para A grande aventura. Presidente do Clube Sueco de Alpinismo, além de diretor do Banco Central da Suécia e Secretário de Estado, Hammarskjold foi eleito Secretário Geral da ONU, em 1953, cargo que ocupou até morrer num desastre de avião, em 1961, na antiga Rodesia.

começa do ponto de vista de dois meninos e de gaivotas. Registra o movimento de carros, transeuntes e do maquinário industrial antes de se concentrar em enredos alternados que compõem um pequeno painel de Estocolmo. Os personagens vivem situações rotineiras nas ruas da cidade – depois de se proteger da chuva e flertar com uma moça, um rapaz a acompanha carregando seus litros de leite vazios; crianças se refugiam no interior de uma igreja grandiosa e intimidadora; um pescador perde o que pescou ao soltar sua rede para pentear o cabelo e os bigodes por estar sendo retratado por um pintor; gaivotas pegam os peixes de um menino desavisado.

Misturando ficção e documentário, A grande aventura é uma fábula ingênua na qual dois irmãos amestram uma lontra e a escondem dos pais. Na floresta vizinha à casa onde moram, um empregado desentoca uma raposa depois dela ter roubado galinhas. Aves furiosas lutam no pântano próximo. Pronto para atacar, um lince espreita durante a noite. Quando a primavera chega, a lontra foge e os irmãos aprendem a lição – não devem tentar interferir na ordem da natureza.

*

Sendo iniciativa pouco usual, tanto para a UNESCO, quanto para o Itamaraty, seria interessante saber quais foram os antecedentes que deram origem à realização do curso de cinema. Mas esses fatos permanecem nebulosos, assim como é incerta a razão precisa que levou Sucksdorff a ser o professor escolhido. Não há sequer uma relação oficial dos 40 a 50 alunos (segundo uma fonte teriam sido 80 de início) que, em outubro de 1962, começaram a frequentar as aulas, o que ao longo dos anos deu margem a muitos equívocos.

A documentação do Ministério das Relações Exteriores, que poderia esclarecer essas questões, até o momento não foi localizada. Na sede da UNESCO, em Paris, porém, pode ser consultada recentemente a pasta de documentos referentes aos entendimentos mantidos, a partir de 1961, para a concretização do curso e da vinda de Sucksdorff.

Uma hipótese plausível para a origem do projeto, que não há como comprovar, é que tenha sido ideia de Joaquim Pedro de Andrade e Mario Carneiro, filho de Paulo Carneiro, delegado permanente do Brasil junto à UNESCO, desde 1946.

A conjectura parece verossímil, sabendo que depois de ter filmado Couro de gato, fotografado por Mario, Joaquim Pedro viajou para Paris, em 1960, onde finalizou o filme, graças à negociação dos direitos de distribuição internacional,  adquiridos por Sacha Gordine, produtor de Orfeu negro. Sendo amigo do Mario, e estando na França, parece possível que possa ter encaminhado o projeto do curso para Paulo Carneiro.

Com bolsa do governo francês, Joaquim Pedro assiste in loco os primeiros tempos da Nouvelle vague e o surgimento do Cinema verdade. E graças a uma bolsa da Fundação Rockefeller soma a essa experiência parisiense um estágio, em Nova York, com os irmãos Albert e David Maysles, dois dos principais proponentes do Cinema direto.

A vontade de dispor de equipamento de filmagem moderno no Brasil, teria levado Joaquim Pedro e Mario a envolverem Paulo Carneiro na proposta de um curso de cinema patrocinado pela UNESCO, que serviria de pretexto para a doação de uma câmera e refletores – pedido que chegou a ser encaminhado, mas acabou se concretizando por outra via, e em outros termos.

Além do empenho do pai do Mario, o de dois outros também foi decisivo. O Ministério das Relações Exteriores, através do Departamento Cultural, chefiado, de 1961 a 1963, por Lauro Escorel – meu pai –, patrocinou o curso junto com a UNESCO. E o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, chefiado, desde 1937, por Rodrigo Melo Franco de Andrade, pai do Joaquim Pedro, foi a instituição que acabou recebendo a doação de uma câmera e um gravador feita pela Fundação Rockefeller.

II – Candidatos

O documento mais antigo encontrado sobre o projeto do curso é de maio de 1961. Nesse ofício, o chefe da Divisão das Técnicas de Informação, da UNESCO, comunica a Paulo Carneiro a lista dos nomes de “reputação mundial bem estabelecida” para que o governo brasileiro escolhesse o “do realizador de filmes documentários que iria ao Brasil no quadro do Programa de Participação da UNESCO”. A relação, feita em ordem alfabética pelos sobrenomes, incluía Luciano Emmer (1918-2009), Bert Haanstra (1916-1997), Joris Ivens (1898-1989), Albert Lamorrise (1922-1970), François Reichenbach (1921-1993), Karel Reisz (1926-2002), Henri Storck (1907-1999) e Arne Sucksdorff.

Joris Ivens (foto ao lado) e Henri Storck, veteranos do grupo, haviam realizado, em 1933, Borinage, clássico do cinema político sobre as condições de vida dos mineiros de carvão, no sul da Bélgica, incluindo a reencenação da greve dos trabalhadores ocorrida no ano anterior. Ao filmar a seguir a Guerra Civil espanhola (Terra da Espanha, 1937), a guerra da China com o Japão (Os 400 milhões, 1939), e a luta anti-colonial na Indonésia (A Indonésia chama, 1946), Ivens consolidara sua posição de cineasta errante e engajado.

Naquele momento de crise institucional e polarização ideológica, no decorrer do governo parlamentarista de João Goulart, pouco antes do plebiscito que decidiria pela volta ao presidencialismo, a experiência adquirida por Ivens fazendo documentários sobre greves e guerras talvez fizesse dele quem teria melhores condições, entre os cineastas indicados, para orientar vocações nascentes, no Brasil.

Dos outros integrantes da lista proposta pela UNESCO, apenas François Reichenbach e Karel Reisz tinham alguma afinidade com a mudança técnica e de linguagem em curso no cinema mundial, inclusive o brasileiro com o lançamento, em 1962, dos primeiros filmes do Cinema novo.

Além de pouco conhecido na época, Reichenbach realizara apenas alguns curta-metragens, além do documentário América insólita, em 1960, e estava longe de ter “reputação mundial bem estabelecida”. Já Reisz fora um dos fundadores com Lindsay Anderson e outros, em 1956, do Free Cinema – movimento de renovação do documentário britânico.

Foram precisos nove meses para a Delegação do Brasil junto à UNESCO responder, em fevereiro de 1962, o ofício com os nomes dos realizadores indicados, manifestando a “preferência do governo brasileiro” por François Reichenbach e Joris Ivens, nessa ordem.


Festival de Cannes, 1959. François Reichenbach é o primeiro à esquerda, na terceira fileira de baixo para cima. Também na foto, François Truffaut, com cigarro na boca, o primeiro à esquerda na primeira fileira; Claude Chabrol, primeiro à esquerda na última fileira e Jean-Luc Godard, de óculos escuros, na última fileira.

No mesmo ofício, o diplomata brasileiro informa ter recebido instruções para deixar “a UNESCO escolher um dos outros indicados” caso nenhum dos dois “técnicos” preferidos possa ir ao Brasil.

E acrescenta que “o Ministério das Relações Exteriores […] foi informado que Jean Rouche [sic], que é muito conhecido no Brasil, talvez possa aceitar […].”

Reisz, cineasta com perfil adequado para o propósito do curso, foi solenemente esquecido. Quanto a Jean Rouch, não se sabe de quem partiu a indicação do seu nome, sendo no mínimo exagerado considerar que era “muito conhecido no Brasil”.

Em 9 anos, de 1956 a 1965, nos artigos escritos para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, Paulo Emílio não menciona Jean Rouch sequer uma vez.

Paulo Cézar Saraceni, Gustavo Dahl e Joaquim Pedro (foto ao lado) haviam conhecido Rouch pessoalmente, no ano anterior (1961), no Festival de Santa Margherita Ligure. Ouviram dele nessa ocasião, segundo Saraceni, como “fez A pirâmide humana e Eu, um negro sem dinheiro nenhum, com a câmera na mão. Disse ele que no cinema moderno não existe mais tripé, que os travellings são feitos com a mão, com a câmera andando, seguindo o personagem. Só a verdade importa.” É possível, portanto, que esteja aí a origem da menção a Jean Rouch e que tenha sido Joaquim Pedro a fazer a indicação.

Ausente da lista inicial proposta pela UNESCO, Rouch talvez fosse, de fato, assim como Ivens, capaz de dar contribuição significativa ao sucesso do projeto, além de se entrosar com os realizadores do Cinema novo.

Os documentos arquivados na UNESCO não voltam, porém, a mencionar nem Ivens, nem Rouch. Mas mesmo que Rouch tenha sido procurado, dificilmente poderia ter vindo ao Brasil. Depois de Crônica de um verão, dirigido por Edgar Morin e ele, receber o Prêmio da Crítica no Festival de Cannes, em 1961, Rouch filmou ou finalizou nada menos que cinco filmes em 1962, e outros dois em 1963. (cont.)

Nota:

Acima estão os dois primeiros capítulos deste folhetim que, a partir da próxima semana, passará a ser publicado às segundas e quintas-feiras.

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Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido (parte 2)

    

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