O poderoso banqueiro paulista do jogo do bicho escoltado por policiais civis do GOE, em junho de 1996 (Foto: Paulo Giandalia/Folhapress)
A morte de Ivo Noal, 88, o maior bicheiro de São Paulo
Discreto ao longo e ao fim da vida, o líder da jogatina no estado entre os anos 1950 e 2000 deixa uma disputa familiar por sua herança
Conhecido até os anos 2000 como “o maior bicheiro do estado de São Paulo”, o empresário Ivo Noal morreu aos 88 anos, no Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista. A certidão de óbito registra como causas pneumonia bacteriana, infecção por coronavírus, acidente vascular encefálico isquêmico e insuficiência cardíaca. A cremação foi realizada no Crematório Municipal Doutor Jayme Augusto Lopes, na Vila Alpina, na Zona Leste de São Paulo.
A morte aconteceu às 9h33 do dia 12 de novembro de 2023. Um mês atrás. Não foi noticiada. O contraventor que dominou o estado de São Paulo teve no fim da vida a discrição da qual quase sempre usufruiu em seu reinado.
Enquanto no Rio de Janeiro os chefes do jogo do bicho fizeram fortuna se digladiando por territórios e fama, como patronos das escolas de samba, em São Paulo Ivo Noal reinou sozinho durante décadas. No início dos anos 2000, aos 65 anos, seu patrimônio era estimado em 561 milhões de reais, em torno de 2,46 bilhões de reais em valores corrigidos. Investigadores da época listavam mais de setenta propriedades, entre casas, prédios e fazendas, além de uma empresa de aviação e helicópteros, uma fábrica de utensílios domésticos e outros.
Era formado em direito e possuía uma “fortaleza” de onde operava as atividades clandestinas do jogo do bicho, assim como o carioca Castor de Andrade (1926-97): um prédio na Avenida Angélica, na porção mais valorizada do bairro de Santa Cecília. Seu filho, Luiz Noal Neto, na época com 36 anos, foi preso em flagrante. Pagou fiança, e foi liberado. Outra similaridade com Castor é que Ivo Noal pouco ficou na prisão. Quando foi encarcerado ao menos três vezes entre as décadas de 1950 e 1990, passou alguns meses detido por acusações diversas, como exploração do jogo do bicho, formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva. Viveu seu auge até 1995, quando uma operação policial começou a minar sua atuação. A influência da família permaneceu por muito tempo. O sobrinho Eduardo Noal enveredou para jogos eletrônicos e, em 2007, teve seu cassino clandestino em Moema estourado pela polícia.
Aos poucos, o jogo do bicho de São Paulo se fundiu a outras contravenções, como máquinas caça-níqueis, e seu comando passou a ser mais pulverizado. Segundo o promotor Fábio Bechara, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado de São Paulo (GAECO), a contravenção hoje deixa menos rastros, à medida em que a lavagem de dinheiro se aprimorou, “seja no mercado de apostas, seja em outros mercados como o de criptoativos”.
Ivo Noal morreu acumulando em torno de 21,2 milhões de reais em dívidas e enfrentando processos judiciais milionários, mas a dimensão do seu patrimônio é desconhecida. A família está em litígio por seu espólio.
Um de seus imóveis mais valiosos irá a leilão online na próxima sexta-feira, dia 15 de dezembro, até 9 de fevereiro de 2024. Já há cinco interessados cadastrados. Trata-se, porém, do cumprimento de uma decisão judicial que é em parte fruto de uma ação de dez anos atrás dos advogados Oswaldo Segamarchi Neto e Manoel Manzano Júnior para o pagamento de pensão alimentícia a João Vitor Delgado Noal, neto de Ivo Noal. Avaliada em 21,9 milhões de reais e construída em 1697, a casa de estilo colonial tem onze quartos, piscina e está localizada em um terreno de 42 mil m2 na na Praia da Feiticeira, em Ilhabela, Litoral Norte de São Paulo. Foi adquirida pelo patriarca há 38 anos.
“Houve um decreto de prisão por falta de pagamento alimentício contra Ivo Noal Filho, e em virtude disso o advogado da época pediu para que o avô, Ivo Noal, fosse o responsável pelos alimentos”, explica Oswaldo Segamarchi. “O senhor Ivo Noal assinou um termo que é válido até hoje para que ele assumisse essa responsabilidade junto com o filho.”
No entanto, João Vitor ficou sem receber pensão durante cinco anos. Em 2021, para evitar que a “joia da coroa” fosse leiloada, uma parte da dívida foi quitada em 750 mil reais. Restam 612,2 mil reais em débitos. “Quando vimos que o imóvel não estava em nome de Ivo Noal, a gente foi atrás para ver onde foi passada essa escritura”, diz o defensor Segamarchi. “Ivo Noal junto com Sandra Noal foram passar esse imóvel no estado do Paraná em uma cidade chamada Maria Helena, distrito de Umuarama. Chegamos para o juiz e comprovamos toda a arquitetura fraudulenta do processo.”
Os advogados relatam que João Vitor teve contato próximo com o avô durante um período. “Ele tinha um relacionamento com o Ivo Noal de ir uma vez por ano na casa deles passar umas férias para poder ter um relacionamento, mas a partir da disputa judicial esse relacionamento esvaziou, esfriou, e não teve mais nenhum contato”, diz Segamarchi. Ele foi criado pela mãe solo, Selma. Ela atua como cuidadora de idosos fora do Brasil.
Em 2019, a família Noal entrou em litígio após o bicheiro sofrer um AVC. Com uma procuração, Sandra Regina Noal passou a administrar seu patrimônio. No entanto, os demais filhos de Ivo Noal argumentam na Justiça que ela afastou o pai da família e se apropriou de seus bens. Eles também afirmam no processo que a casa de Ilhabela foi transferida para o nome de Sandra Regina com assinaturas falsificadas de sua mãe, Ada Ripari Noal, em cartório, o que foi confirmado em laudo pericial grafotécnico, concluído em 15 de maio deste ano. Como Ada morreu em 2001, as comparações foram feitas com assinaturas antigas. Um microscópio com capacidade de aumento da imagem de 1.600 vezes ajudou a identificar catorze pontos conflitantes na assinatura, daí a conclusão de que é falsa.
Ivo Noal era viúvo da empresária Ada Ripari Noal e, segundo a certidão de óbito, não deixou um testamento. O documento cita dez filhos: Ivo, Luiz, Sandra Regina, Ivone Cristiane, Ricardo, Janaina, Marcello, Christian, Alexandre e Ana Paula. Os quatro últimos, no entanto, foram tidos como novidade para os advogados de João Vitor Delgado Noal. Não aparecem no inventário de Ada Ripari Noal e nem nos processos judiciais que os outros seis irmãos movem contra si. A reportagem telefonou três vezes para Sandra Regina Noal e enviou mensagens para seu número de WhatsApp, mas não obteve retorno. Nesta sexta-feira, dia 8, ela foi procurada por interfone em sua casa, em um condomínio do Morumbi, mas uma funcionária informou que estava fora da cidade.
A casa de Ilhabela data do período colonial brasileiro. Um relato de Sandra Regina Noal em laudo pericial do imóvel diz que uma taverna foi explorada no imóvel por antigos proprietários como ponto de encontro de piratas e marinheiros de navios negreiros e mercantes que aportavam ali.
Segundo os vizinhos, o imóvel sempre foi muito movimentado. “Era insuportável, né? Aquelas festas de final do ano, no meio do ano… Começaram a alugar para eventos, vários moradores ou proprietários que tinham casa na Feiticeira começaram a vender suas casas por causa disso”, me disse o desembargador aposentado Pedro Menin em uma entrevista à CNN Brasil, em 2020. Na mesma reportagem, para uma série documental da tevê, o advogado Renato de Luizi, também vizinho, me concedeu a seguinte entrevista: “À época em que eu construí a minha residência, jamais esperei que ela estaria do lado do Ivo Noal.” Ele contou que a mansão era palco de festas que atravessavam a madrugada. A perturbação o levou a entrar com uma ação judicial contra os Noal em 2017. Não conseguiu arregimentar outros vizinhos. Relata que logo recebeu um presente em seu escritório: uma caixa com uma galinha preta. Enviou para Sandra, que entendeu ser a destinatária. “Ela pediu milhões de desculpas, disse que errou.” Sandra nunca confirmou essa informação.
Paulistano do Brás, Ivo Noal entrou para o jogo do bicho na década de 1950. Herdou a jogatina do pai, o contraventor Luiz Noal, mantendo a tradição iniciada pelo avô. Ele tinha um apelido em italiano, ‘il capo di tutti capi”. Ou seja, era o chefão de todos os chefões. E o reinado parecia, na maior parte do tempo, pacífico.
No final da década de 1980, com a popularidade em alta, Ivo Noal tentou se eleger como deputado federal constituinte pelo PDT, mas teve a candidatura impugnada por antecedentes criminais. Em 1994, foi acusado de envolvimento na morte de um outro bicheiro. Acabou preso por alguns dias ao tentar fazer um novo passaporte, mas acabou por não ser indiciado. No ano seguinte, a polícia estourou a fortaleza de Noal em Santa Cecília e apreendeu documentos, contas bancárias, listas de funcionários e de pontos do jogo do bicho. Voltou para a cadeia, por alguns meses. Foi na década de 1990 também que, segundo as autoridades da época, acabou apontado como responsável pela invasão das máquinas caça-níqueis em São Paulo e pela manutenção de uma série de cassinos no bairro do Morumbi. No entanto, em julho de 1998, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou uma condenação a um ano de prisão em regime semiaberto pela exploração dos jogos ilegais.
Em 1999, a Direção Investigativa Antimáfia (DIA) de Roma, na Itália, obteve um testemunho do mafioso italiano Lillo Rosario Lauricella, apontado como liderança da Banda Magliana, até então um dos principais grupos criminosos da capital da Itália. Ele ligou Ivo Noal a uma rede do crime organizado internacional envolvida com tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Ao virar colaborador da polícia europeia, Lauricella afirmou ser associado a Ivo Noal na exploração de máquinas caça-níqueis em São Paulo. Em reportagens da época, o bicheiro paulista disse ser inocente. Uma investigação foi aberta, mas ele não foi preso nesse caso.
Segundo o Instituto Jogo Legal, as apostas clandestinas movimentam anualmente no Brasil 18,9 bilhões de reais: bingos, 1,3 bilhões de reais; caça-níqueis, 3,6 bilhões de reais; i-Gaming e pôquer pela internet, 2 bilhões de reais. O jogo do bicho permanece insuperável: 12 bilhões de reais.
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