Nas ruas de Tóquio, a imagem do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe - Foto da AFP
Mortes por Covid-19 crescem 13 vezes após Japão adiar Olimpíada
País decreta estado de emergência em meio a subnotificação, falta de testes e hospitais lotados
É domingo do mais longo e popular feriado do Japão, o Golden Week. O cenário, no entanto, é desolador. As sempre apinhadas ruas de Tóquio estão praticamente vazias. Lojas, bares e restaurantes, fechados ou funcionando com muitas restrições. Aviões e trens-bala (os famosos “shinkansens” que cortam o país), quase todos parados ou operando com ocupação mínima. A queda de reservas para o período no setor turístico chega a 90%. Até os milhares de corvos que sobrevoam ostensivamente a cidade não estão tão presentes, já que a falta de vida não gera o alimento, no caso o lixo, especialmente nos parques. Com poucos carros nas ruas, o silêncio é quebrado pelas sirenes de ambulância que insistem em ecoar durante as 24 horas do dia e pelos tradicionais alto-falantes oficiais instalados em bairros que martelam duas vezes ao dia o mantra “fique em casa”. Depois de tentar garantir a todo custo as Olimpíadas e preservar a economia acima de tudo, o Japão se rendeu à pandemia em meio a muitas incertezas e polêmicas.
Até o dia 23 de março, na véspera do adiamento oficial das Olimpíadas, o Japão contabilizava apenas 1.128 casos confirmados e 42 mortes. A média diária de novos casos era de 42. A partir do dia 24, com os jogos olímpicos já reprogramados para 2021, e até o dia 5 de abril, a média diária de casos confirmados salta para 205. E depois de decretado o estado de emergência em sete estados, no dia 6 de abril, e a extensão da medida para todo o país, no dia 16, passa progressivamente a 426 casos por dia. Até quarta (6 de maio), eram cerca de 16 mil casos confirmados e 550 mortes. O governo japonês não explica a mudança brusca de número de casos. Limita-se a defender que o número de infectados e mortes até o momento é baixo se comparado aos de grandes centros urbanos, e que se deve à abordagem de rastreamento de casos e ao isolamento de grupos de contaminação.
Especialistas discordam da tese e da realidade dos números. Kenji Shibuya, diretor do Instituto de Saúde da População, do King’s College, em Londres, disse que a estatística oficial é inconsistente e pede um maior número de testes na população. “Os números diários de casos positivos que recebemos indicam apenas a data de compilação ou notificação de casos que já existem há semanas. Esses números são um indicador de atraso, um instantâneo estreito. Se testes muito mais extensos estivessem sendo feitos, particularmente em casos assintomáticos e pré-sintomáticos, teríamos uma imagem mais completa e atual da disseminação”, aponta Shibuya. Há ainda os casos de subnotificação de mortes. Se não há testes em massa, muitos óbitos acabam não tendo o carimbo do coronavírus.
A maratona em busca de um teste já virou rotina na cena pandêmica no país. No dia 14 de abril, a analista de negócios e tradutora e intérprete norte-americana Jordain Hayley, 24 anos, residente em Tóquio, recebe o telefonema de uma amiga, desesperada. Ela tem a voz rouca, muita dor de garganta e uma febre que perdura há quatro dias. Tem dificuldade para respirar, mesmo sentada, e dor contínua no peito. Suspeita de Covid-19. A amiga, também estrangeira, não consegue ligar para a central de saúde do governo que atende em inglês. E só funciona durante o dia. Jordain, que fala fluentemente japonês, liga então para a central da língua local. Depois de quatro tentativas, fala com o operador, que recomenda que a amiga ligue para o serviço em inglês na manhã seguinte. “Explico que a situação é urgente e não podemos esperar até de manhã. Ele me diz de forma educada que além de ela mesma chamar uma ambulância, não pode fazer nada. E desliga”, relata Jordain à piauí. Ela resolve esperar até o dia seguinte. Liga para o serviço em inglês e é direcionada a uma clínica. Faz um raio-x do tórax, o médico suspeita de Covid-19, mas o nível de oxigênio no sangue ainda é alto e insuficiente para uma internação. É mandada de volta para casa.
No dia 16 pela manhã, a amiga continua se sentindo mal e resolve ligar para o serviço de ambulância. Sempre em linha no telefone com a amiga Jordain. Consegue o veículo e fica rodando duas horas pela cidade, atendida por paramédicos. Depois de ser recusada por quinze hospitais, é atendida. De novo, é submetida a um raio-x e o médico sugere que ela faça um teste PCR no dia seguinte, mas é necessário agendá-lo via telefone, na central de atendimento do bairro. A jornada pelo sistema médico japonês em busca de um único teste dura uma semana. Inclui cinco horas de ligações telefônicas, duas visitas a hospitais e um transporte de ambulância e resulta em um teste negativo – foi provavelmente vítima de uma bronquite aguda.
O país realizou até o dia 6 de maio apenas 186.343 testes. Acumulava 1,4 testes por 1 mil habitantes, comparado aos 12,3 da Coreia do Sul e 22 dos Estados Unidos, de acordo com dados do OurWorld. “O país precisa realizar 100 mil testes por dia para fazer frente à pandemia”, defende Shibuya. “O número real de infecções provavelmente é pelo menos dez vezes maior que o número atualmente relatado pelos canais oficiais”, completa. Hiroshi Nishiura, professor da Universidade de Hokkaido e membro importante da força-tarefa do Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar em grupos de coronavírus, tem projeção ainda mais alarmante: “Levando em consideração a taxa de infecção em outros países, os infectados podem chegar a 850 mil, e o número de mortos em 400 mil.”
Mesmo com testes direcionados apenas para os casos sintomáticos graves, o sistema hospitalar já se aproxima do colapso em algumas regiões. Tóquio, com seus cerca de 13 milhões de habitantes, reservou 2 mil leitos para os infectados, mas tinha 2.619 pacientes hospitalizados, segundo o último levantamento da NHK, rede pública de TV, divulgado no dia 27 de abril. Hotéis passaram a receber os doentes com sintomas leves, um modelo que está sendo replicado em todo o país. Com isso, o isolamento social ganha ainda mais relevância, com direito a embates entre os governadores e o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe. Nada diferente do que ocorre, por exemplo, no Brasil e nos Estados Unidos, mas dentro das regras da cultura e da diplomacia japonesa. Ou seja, sem provocações, bate-bocas e protestos públicos. A estrela dessa batalha é Yuriko Koike, 67 anos, governadora de Tóquio. Até o início de março, ela fazia coro com o governo central na defesa da manutenção da data original das Olimpíadas. A partir do adiamento dos jogos, ela resolveu encampar a campanha por isolamento social e restrições de atividades econômicas e industriais. E pressionou o até então apático premiê a levar adiante no parlamento a aprovação do estado de emergência.
Conservadora nacionalista, Koike tem biografia incomum para um político japonês, no qual as mulheres têm um papel secundário, reflexo de uma cultura de gênero das mais desiguais do mundo. Frequentou uma universidade no Egito e fala árabe fluentemente. Divorciada, foi também apresentadora de telejornal. A experiência na TV ajudou-a na construção do personagem que desempenha nesta pandemia, como contraponto a um insosso e centralizador primeiro-ministro, de quem já foi ministra da Defesa em 2007 e com quem rompeu para se candidatar ao posto maior da capital do país. Faz aparições diárias em entrevistas coletivas transmitidas ao vivo, sempre com máscara e o bem cortado terninho, interage com influenciadores digitais nas redes sociais e até se transformou em personagem de um mangá num jogo eletrônico, que a representa com uma máscara cirúrgica e o poder mágico de criar a distância de 2 metros entre as pessoas, enquanto sussurra apenas “mitsu desu” (algo como “isto é aglomeração”).
Enquanto Koike viraliza nas redes e assume o comando dos apelos que pedem que os moradores da capital japonesa levem a sério o aumento de casos de coronavírus, o primeiro-ministro Shinzo Abe, 65 anos, oito anos no poder, o mais longevo desde o pós-guerra, agoniza e perde popularidade. Para mais de 80% das pessoas ouvidas pela agência Kyodo, o premiê conservador demorou para declarar estado de emergência como medida de contenção do novo coronavírus no Japão, preocupado em manter as indefensáveis Olimpíadas e pressionado por questões econômicas. E partiu para ações desastrosas. Insistiu em usar cerca de 46 bilhões de ienes (435 milhões de dólares) do orçamento na compra de máscaras de tecido para distribuir à população. Duas por família, não importando quantos integrantes a compõem. A ação do governo virou meme e foi tachada ironicamente de “Abenomask” (“máscara de Abe”). O termo faz alusão às políticas econômicas adotadas pelo Japão em 2012 e conhecidas como “Abenomics”. Não terminou por aí: muitas máscaras chegaram às residências sujas e com insetos mortos. Foram, claro, recolhidas.
Abe também se intrometeu no tratamento médico contra o coronavírus. Seguindo o mesmo caminho dos seus parceiros nacionalistas, Bolsonaro e Trump, que exaltaram o antimalárico hidroxicloroquina de forma inconsequente, o primeiro-ministro vem defendendo o medicamento caseiro e antiviral conhecido como Avigan. Tem utilizado suas entrevistas coletivas para vender o produto. Já fez propaganda do remédio até na reunião dos líderes do G7, e não ficou só na retórica: destinou quase 130 milhões de dólares para triplicar um estoque do medicamento. Ainda se ofereceu para fornecê-lo gratuitamente a dezenas de outros países. Assim como a hidroxicloroquina, não há evidências sólidas da eficácia do Avigan. Pior: tem um efeito colateral potencialmente perigoso – defeitos congênitos. O próprio Abe observou em uma entrevista coletiva na segunda (4) que o efeito colateral foi “o mesmo que a talidomida”, que causou deformidades em milhares de bebês nas décadas de 1950 e 1960.
No afã de não perder de vez o trem da história, o premiê resolveu seguir os passos da sua desafeta, a governadora de Tóquio, mas sem o mesmo talento midiático. A partir da decretação do estado de emergência, ele aderiu ao coro pela necessidade de diminuir o fluxo de pessoas nas ruas para achatar a curva de contaminação. Imitando vários artistas japoneses, pegou carona no post que o cantor Gen Hoshino fez sobre ficar em casa, e gravou um vídeo em que aparece sentado na poltrona, acariciando seu cachorrinho e bebendo café. Fechou com uma mensagem de incentivo ao auto isolamento. A iniciativa, no entanto, rendeu muitas críticas e poucos elogios. “Muitos cidadãos estão sofrendo. Seu lugar é no Parlamento” foi o comentário mais compartilhado.
Reduzir o distanciamento social da população no Japão, no entanto, vai além de recomendações governamentais e bons exemplos. Há grande dificuldade de o trabalhador assalariado (chamado localmente de “salaryman”) exercer sua profissão em casa, mesmo que parcialmente. Faltam espaço, privacidade, equipamentos e conexões de internet apropriadas na maioria das casas. Além do mais, boa parte das empresas de médio porte japonesas não está preparada para o trabalho remoto. Há também barreiras culturais que remontam a milhares de anos. Japoneses preferem fazer transações em dinheiro do que de forma eletrônica. A maioria dos contratos e acordos celebrados no país depende de reuniões presenciais, envios de documentos em papel e assinaturas com selos, conhecidos como “hanko” ou “inkan”. Os selos, criados há 5 mil anos como símbolo de autoridade, carregam ainda hoje mais peso do que uma assinatura manuscrita. A revisão dessas regras seculares já está em pauta no parlamento para ajudar na meta de reduzir o contato humano em 80% para combater o coronavírus.
Enquanto o isolamento social flutua entre 52% e 85% nos principais regiões do país, o primeiro-ministro Shinzo Abe anunciou nesta segunda (4) a extensão do estado de emergência até o dia 31 de maio. Atendeu, na realidade, a uma pressão dos governadores e de especialistas. Mas anunciou ao mesmo tempo a revisão de suas diretrizes para ressuscitar as atividades econômicas e sociais, mantendo a saúde pública. O relaxamento prevê a abertura de parques, museus e bibliotecas públicas, com a adoção de uma série de regras de distanciamento social e com a desinfecção recorrente e completa dos locais. Yuriko Koike e Hirofumi Yoshimura, governador de Osaka, já disseram que não vão tomar medidas de relaxamento nesse momento e vão avaliar com calma a situação nas próximas duas semanas. Tóquio, após a decisão de relaxamento do governo federal e mesmo com a diminuição de casos nos últimos dias, anunciou que pagará mais ajuda financeira às empresas da capital que permanecerem fechadas em maio.
Além da queda de braço constante com os estados, Shinzo Abe encara ainda o enorme desafio de tirar do papel o pacote de ajuda econômica de pelo menos 108 trilhões de ienes (US$ 990 bilhões), o equivalente a 20% do PIB anual. Entre as medidas, o pagamento de 100 mil ienes (US$ 930) mensais para 126 milhões de pessoas, durante três meses, e apoio ao pequeno e médio empresário, setores que já contabilizam um grande número de demissões e falências. O Japão, que estava caminhando para uma recessão, com o PIB desabando 6,3% a uma taxa anualizada no quarto trimestre, já tem dificuldades de enxergar a luz no fim do túnel da economia. Nem mesmo as Olímpiadas, adiadas para 2021, parecem factíveis no horizonte em tempos de pandemia. Por enquanto, resta ao país ser resiliente a um “novo estilo de vida”, abundante em regras e limitações, e tentar aplacar o mal-estar público com o dano econômico causado pela prolongada crise.
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