Na cadência bonita do samba de Ataulfo Alves
Quero morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba, o desejo da boa morte, de morrer sambando foi cantado por uma multidão de brasileiros. Este canto começou no Rio de Janeiro e se espalhou por quase todo o Brasil, geográfica e temporalmente, pois ele persiste até hoje. Quase todo mundo conhece este samba de Ataulfo Alves em parceria com Paulo Gesta:
Na cadência do samba.
Canta Cássia Eller
A quantidade de sambas imortais que Ataulfo criou é impressionante. O motivo? Ele poderia, quem sabe, responder dizendo o nome de um de seus sambas: É um quê que a gente tem. Pois é, Ataulfo tinha aquele quê, um modo de dizer e sentir as coisas que penetrava direto na alma popular. É certo que nem sempre seus sucessos foram espontâneos e que muitas vezes ele teve que dar uma mãozinha extra para que o samba fosse bem executado nas rádios, mas isso não tira o valor e a grande força comunicativa da sua canção. Para ilustrar e encurtar a estória, depois de Ai, que saudades da Amélia, o nome de Amélia ganhou novo sentido, o de companheira fiel, que ficava ao lado de seu homem mesmo diante das dificuldades da vida e foi parar no dicionário de Aurélio Buarque de Holanda como “mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem.” É a canção popular criando um novo sentido para uma palavra.
Sérgio Cabral, seu biógrafo, conta a estória deste samba: ele nasceu de uma brincadeira que o irmão de Aracy de Almeida, o baterista Almeidinha, fazia: ele interrompia qualquer conversa que tivesse como tema a mulher para falar de uma antiga empregada: “Ah! A Amélia! Aquilo sim é que era mulher! Lavava, passava, engomava, cozinhava, apanhava e não reclamava.” Brincadeira sem graça, machista, que via a mulher como empregada, obediente, submissa, trabalhadeira… Mas que originou este samba genial. Disse Mário de Andrade: “Gostei, sim, muitíssimo do Amélia, é das coisas mais cariocas que se pode imaginar. (…) Ora, o sujeito estoura naquela bruta saudade da Amélia, só porque está sentindo dificuldade com a nova, você já viu coisa mais humana e misturadamente humana? Tem despeito, tem esperteza, tem desabafo, tristeza, ironia, safadeza de malandro, tem ingenuidade, tem pureza lamacenta: é genial. Acho das manifestações mais complexas que há como psicologia coletiva.” Como disse o jornalista Hugo Sukman, “Amélia elevaria Ataulfo à condição de um dos maiores artistas da cultura brasileira, um artista que mudou para sempre o sentido da palavra Amélia”.
Um dos elementos que caracteriza os sambas de Ataulfo é que eles estão repletos de ditos populares – “Morre o homem, fica a fama”, “ Atire a primeira pedra”, “Perdão foi feito pra gente pedir”, “Laranja madura, na beira da estrada…”, “ Eu era feliz e não sabia”, “Quem é bom já nasce feito”, “Pretensão e água benta, cada um toma o que quer”, ”Nessa vida tudo passa”.
Ataulfo nasceu numa cidadezinha mineira, Miraí, a 2 de maio de 1909 e morreu na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de abril de 1969. De família muito pobre, o pai, Severino de Souza, era trabalhador nas plantações de café em Minas e era também repentista, violeiro e sanfoneiro. Foi com ele que o menino Ataulfo aprendeu a versejar: “Mesmo quando colhia café, mostrava suas qualidades de repentista. E eu estava sempre ao lado dele”, contou Ataulfo. Seu pai morreu quando ele tinha 10 anos e sua mãe precisou trabalhar para sustentar e educar os sete filhos. Não demorou muito para que os filhos também fossem trabalhar. Ataulfo, quando não estava estudando, fazia de tudo um pouco: foi leiteiro, carregador de malas, engraxate, entregador de marmita, moleque de recado. Nas brincadeiras com seus amigos de infância, gostava de cantar e tocar as modinhas mineiras e “Quando não entendia os versos originais, inventava novos versos”, contou no depoimento que gravou para o MIS. Parece que em 1927 foi morar no Rio, primeiro como auxiliar de médico e empregado doméstico, trabalho exaustivo, que ele abandonou logo, pois não lhe sobrava tempo para nada. Aí foi morar num quarto próximo ao Largo do Estácio e, sem saber, foi se embalar no berço do samba carioca. Pulando de emprego em emprego, Ataulfo estudou um pouco de música e buscou se aproximar daqueles que estavam criando o novo gênero musical, o samba: Ismael Silva, Baiaco, Brancura e Bide, que viria ser para ele uma espécie de padrinho musical. Ataulfo, um pouco tímido, ficava ouvindo e olhando de longe aquele pessoal que havia criado, em 1928, a Deixa Falar, que seria considerada a primeira escola de samba. Começou a tocar cavaquinho e violão e ajudou a criar o bloco carnavalesco Fale quem quiser, visivelmente inspirado nos bambas do Estácio. Foi aí que Ataulfo se destacou como compositor, pois nada menos do que cinco sambas seus foram cantados pelo bloco.
Na histórica Revista de Música Popular, editada por Lúcio Rangel nos anos 50, Paulo Mendes Campos, poeta e cronista, perguntou a Ary Barroso qual era o maior compositor brasileiro. Ary não pestanejou: “Ataulfo Alves”, foi o que respondeu. Pois é, segundo o compositor de Aquarela do Brasil, Ataulfo era o maioral! Na mesma época, em 1953, a revista Manchete realizou uma enquete para saber quais seriam os dez maiores sambas de todos os tempos. Em primeiro lugar ficou Ary e sua Aquarela e em segundo, Ataulfo e Mário Lago e sua Amélia. Os sambas foram escolhidos por um time de especialistas e, entre eles, o maestro Radamés Gnattali, o cantor Silvio Caldas e o poeta Vinicius de Moraes, que preferiam Amélia…
Ataulfo é considerado um grande estilista do samba, isso porque o samba que ele fazia era diferente do samba de Ismael Silva, Noel Rosa, João de Barro, Almirante. Uma das diferenças era que seu samba era mais arrastado, mais lento. Aracy Cortes, depois de ouvir alguns sambas de Ataulfo, disse o seguinte: “Parecem mineiro, andando, devagar, sem pressa, cheio de ginga, mas sempre chegando ao lugar certo.” E o compositor Eduardo Gudin: “ Ataulfo Alves era um sambista diferenciado. Na minha opinião, ele fazia um samba mais arrastado, mais chorado que os demais sambistas da época. Sua cadência é singular, de uma sutileza ímpar, às vezes quase não se percebe o quanto ele nos faz sambar por dentro. Sua melodias pertencem – ou quem sabe inauguram – às formas mais românticas do samba”.
Alguns de seus sucessos: Ai, que saudades da Amélia, Atire a primeira pedra, Leva meu samba, Mulata assanhada, Vai, vai mesmo, Pois é, Laranja Madura, Meu pranto ninguém vê, O bonde de São Januário, Oh! Seu Oscar, Errei, erramos.
É curiosa a parceria entre Ataulfo e o Wilson Batista. O primeiro sucesso da dupla foi Oh! Seu Oscar (1940), sucesso estrondoso.
Em 1941 veio o Bonde de São Januário e levou embora o malandro, colocando em seu lugar o operário trabalhador. É surpreendente a mudança de visão de Wilson Batista, pois ele fazia o elogio da malandragem em sambas que alimentaram sua famosa polêmica com Noel Rosa. Noel representava o bom moço e Wilson o malandro. Foi sob a influência da ideologia do Estado Novo, na qual era feita a apologia do trabalho, que Wilson deixou de fazer o elogio do ócio.
Lenço no pescoço – de Wilson Batista, canta Silvio Caldas.
Bonde de São Januário – Ataulfo Alves, Wilson Batista, canta Ataulfo e suas pastoras
Orlando Silva, o cantor das multidões, gravou no final de 1943 Atire a primeira pedra, dito popular, de origem bíblica, citação de São João Evangelista no Novo Testamento: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire a pedra”. O sucesso se espalhou pelo ano seguinte, com os foliões cantando a máxima cristã no carnaval:
Meu pranto ninguém vê/ Errei, erramos – Ataulfo Alves com Orlando Silva.
Pois é (1955) em poucos dias estava em primeiro lugar nas listas de discos mais vendido. Surpreendeu a todos. Era o lado B do disco. Lúcio Rangel, na Revista da Música Popular, classificou o disco como o “disco do mês,” dizendo que este era um samba “com aquela característica do autor de Amélia, com as cantoras fazendo bela harmonização e o solista cantando muito bem”
Essas cantoras que faziam belas harmonizações eram as pastoras. O nome “pastoras” tem sua origem nas festas religiosas tradicionais, nos pastoris, que aconteciam principalmente no nordeste e foi incorporado ao carnaval carioca significando a mulher que canta no coro, acompanhando o solista. Foi o compositor Pedro Caetano quem sugeriu a Ataulfo que chamasse suas cabrochas de pastoras: Ataulfo gostou e batizou seu conjunto de Ataulfo Alves e suas pastoras.
Em 1961 Ataulfo foi apontado pelo cronista social Ibrahim Sued, do jornal O Globo e da revista Manchete, como um dos dez homens mais elegantes do Brasil, ao lado do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Ibrahim escreveu na Manchete: “E esse famoso sambista prova que a elegância não pode ser comprada a peso de ouro. É inata. E como! ‘Não basta vestir bem’, ele diz, ‘é preciso saber vestir.’” E continua Ibrahim: “Meu conceito de elegância é diferente do que muita gente pensa. Julgo o almofadinha desprezível. O veadeiro elegante não é um dândi, e pouco se preocupa com detalhes de seu traje. Ele reúne uma mistura quase indefinível de educação, aprumo e distinção, tanto na vida profissional como na família. Os dez mais elegantes de 1961 são assim.” E era assim Ataulfo. Depois de passado algum tempo, Ataulfo comentou este fato contando que o terno mais novo que usava naquela época tinha ao menos dez anos…
Passado algum tempo, o público de Ataulfo se surpreenderia, em 1968, com um samba – Você passa, eu acho graça – que ele havia feito em parceria com Carlos Imperial: “O que surpreendeu mais as pessoas que acompanhavam de perto a música popular brasileira”, explica Sérgio Cabral, “ não foi exatamente o sucesso do samba, mas a parceria de Ataulfo Alves com Carlos Imperial, cujas biografias estavam tão distantes uma da outra que nem se imaginava que havia alguma relação pessoal entre eles. Um dos mais expressivos representantes do samba tradicional, na época preocupado com os rumos do samba, com um pioneiro da divulgação do rock and roll no Brasil, marcado, na época, por um estilo musical que ele mesmo chamava de ‘pilantragem’ e que os analistas de música nunca levaram a sério.” Quem cantou o samba foi uma cantora até então desconhecida e que iria se tornar uma das maiores cantoras do Brasil: Clara Nunes.
O jornalista Hugo Sukman buscou uma resposta para a seguinte questão: como é que Ataulfo, um sambista que fez tanto sucesso em vida depois de sua morte foi tão pouco lembrado? Diferente do que aconteceu com seus contemporâneos Noel Rosa, Cartola, Lupicínio Rodrigues, Geraldo Pereira. Uma das possíveis explicações que encontra é que Ataulfo foi um sambista, em certo sentido, atípico, pois estes grandes sambistas citados sofreram dificuldades de toda sorte na vida e fizeram mais sucesso depois da morte, enquanto que ele foi muito bem sucedido: “Sucesso perene no samba, estabilidade financeira e familiar, biografia sem grandes sobressaltos eram coisas tão estranhas ao mundo do samba que tornaram Ataulfo distante demais do mito do sambista para ser cultuado.”
Passaram-se anos. Em setembro de 1995, na cidade de São Paulo, Itamar Assumpção gravaria o CD Para sempre agora, só com músicas de Ataulfo Alves. Sobre este trabalho Hermínio Bello de Carvalho falou que Itamar “incorporou” Ataulfo “num curta-metragem de policromia exuberante, diálogos precisos, contraplanos delirantes”
Em nosso imaginário, Ataulfo continua elegantemente vestido, passeando em seu célebre cadillac rabo de peixe amarelo navegando pelas ruas do Rio numa batucada de bamba, numa cadência bonita, cantando seus sambas, ele, seus parceiros e suas belas pastoras, cumprindo a profecia do dito popular, que o seu nome ninguém vai jogar na lama, ninguém vai jogar, morre o homem, fica a fama.
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