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    ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO

questões jurídicas

Na era da Lava Jato, Supremo nunca afastou juiz

Tribunal recebeu 190 pedidos de suspeição de magistrados desde 2014 e rejeitou todos

Allan de Abreu e Luigi Mazza | 18 jun 2019_08h31
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Impedir um magistrado de julgar ação judicial por considerá-lo suspeito é prática rara no Judiciário brasileiro. Nos últimos cinco anos, o Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e os cinco Tribunais Regionais Federais deram 1 432 decisões contrárias ao afastamento de juízes por suspeição e apenas dezenove favoráveis. Há um afastamento, portanto, para cada 75 pedidos. É o que mostra levantamento da piauí nesses dois tribunais superiores e nos cinco TRFs, cortes em que tramitam os processos da Lava Jato.

No Supremo, a chance de um pedido desse tipo prosperar é ainda mais rara. De 2014 até agora, a Corte rejeitou 190 pedidos de suspeição de juízes feitos por advogados e pelo Ministério Público; no período, nenhum requerimento de suspeição foi concedido.

É justamente o STF que vai analisar, no próximo dia 25 de junho, um habeas corpus do ex-presidente Lula. A defesa de Lula alega a suspeição do ex-juiz federal Sergio Moro, atual ministro da Justiça e Segurança Pública, na condução da ação penal que condenou Lula por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex no Guarujá, litoral paulista. O ministro Gilmar Mendes havia pedido vista do caso, mas decidiu levar a questão à Segunda Turma do STF diante da revelação, pelo site The Intercept Brasil, de conversas atribuídas a Moro, ao procurador Deltan Dallagnol e a outros membros da força-tarefa da Lava Jato. Nesses diálogos, o então juiz dá dicas para os procuradores e discute aspectos da ação da força-tarefa.

A última vez em que o STF declarou um magistrado suspeito de julgar um processo foi em abril de 2013. Naquele mês, a Segunda Turma da Corte acatou recurso do Ministério Público e entendeu que treze dos 23 desembargadores então em exercício no Tribunal de Justiça do Espírito Santo eram suspeitos para julgar a ação penal decorrente da Operação Naufrágio, em que a Polícia Federal desvendou um esquema de venda de sentenças – entre os 26 réus havia quatro desembargadores e quatro juízes do estado.

O próprio Moro foi alvo de 21 pedidos de “exceção de suspeição” por réus da Lava Lato, inclusive Lula, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região – em um dos recursos, o ex-presidente pediu ao TRF a suspeição de Moro por conta de uma palestra do então juiz em Nova York patrocinada pelo Grupo Lide, do tucano João Doria. Todos os pedidos foram negados. O STJ e o STF mantiveram as decisões do Tribunal.

Para Willey Lopes Sucasas, presidente da Comissão de Processo Penal da OAB de São Paulo, a suspeição de juízes raramente é concedida pelos tribunais devido à dificuldade de se provar a parcialidade do magistrado. “É preciso comprovar um vínculo íntimo entre o magistrado e uma das partes, o que é muito difícil e de valoração subjetiva”, diz. Outro obstáculo, segundo ele, é o corporativismo do Judiciário. “Há uma nítida tendência [dos juízes] ao protecionismo de seus pares.”

O artigo 254 do Código de Processo Penal prevê a suspeição do juiz em seis situações. Quatro delas são objetivas: por exemplo, se o magistrado é sócio de uma das partes ou se é credor ou devedor do réu. Mas duas delas, segundo Sucasas, dão margem a interpretação: se o juiz é “amigo íntimo ou inimigo capital” do réu ou, no caso que pode se aplicar a Moro, se “tiver aconselhado qualquer das partes”. “Deve haver uma prova cabal desse vínculo ou aconselhamento. Simples encontro casual em um bar não basta”, afirma um desembargador do Tribunal de Justiça paulista, que conversou com a piauí sob a condição do anonimato.

Das dezenove exceções de suspeição concedidas pelos sete tribunais pesquisados pela reportagem, nenhuma trata de juízes que aconselharam uma das partes. Em um caso parecido com o que Moro enfrenta atualmente, o ex-governador de Roraima Neudo Campos acusou o juiz de uma ação a que ele respondia na 1ª Vara Federal de Boa Vista de suspeição após o réu ter flagrado o magistrado em reunião na capital federal com o então procurador-geral de Justiça, em 2005. Após sucessivos recursos, o caso chegou ao Supremo. Gilmar Mendes rejeitou o pedido, diante da “evidência de comportamento ético e prudente” por parte do magistrado.

O desfecho foi o mesmo de um processo por suspeição movido em 2015 contra um juiz federal de Tupã, interior paulista. Na ação, o magistrado foi acusado de ter prestado consulta à parte acusadora – no caso, outro juiz. Os filhos de ambos estudavam na mesma escola. O processo foi remetido ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que rejeitou a suspeição. Na avaliação do colegiado, como não houve “reunião a portas fechadas” entre o juiz e a parte acusadora, mas apenas um “normal e corriqueiro encontro esporádico”, não se configurou quebra de imparcialidade.

O próprio juiz pode se declarar suspeito para atuar no processo por iniciativa própria ou se for provocado por uma das partes – nesse último caso, a ação é automaticamente redistribuída para outro magistrado. Se, mesmo provocado, ele negar a autossuspeição, a parte pode ingressar com recurso denominado “exceção de suspeição” na instância judicial superior, a quem caberá julgar se mantém ou não o juiz no caso. Nesse caso, a tramitação do processo é suspensa até o julgamento do recurso pelos tribunais.

“Muitos advogados forçam a suspeita onde ela não existe. Já recebi casos em que pediram minha suspeição só porque eu havia condenado o réu em outro processo”, afirma o juiz federal Marcus Vinicius Costa, titular da 1ª Vara Federal de Vitória. Para ele, o abuso desse recurso judicial não deixa de ser uma maneira de manipular a distribuição da ação entre as varas judiciais. “Os grandes escritórios de advocacia sabem o perfil de cada juiz e tentam usar o recurso da suspeição como chicana para escolher o julgador.” Procuradas, nem a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) nem a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) quiseram se manifestar.

Em 2016, o TRF da 3ª Região multou em 10 mil reais o advogado Marcos Alves Pintar por litigância de má-fé. O imbróglio começou em 2012, quando Pintar pediu ao Tribunal a suspeição de um juiz federal de São José do Rio Preto, interior paulista, a quem coube julgar uma ação de calúnia e difamação movida por Pintar. O processo tramitou em segredo. Dois anos depois, o Órgão Especial do TRF negou a suspeição do magistrado. O advogado ingressou com mais treze ações de suspeição, uma para cada desembargador que participara do julgamento. Em 2016, quando o mesmo Órgão Especial rejeitou as treze ações, o advogado concluiu que “boa parte dos doutos julgadores haviam julgado matérias do interesse deles próprios” e ingressou com outras 26 ações de suspeição contra os mesmos desembargadores, o que motivou a decisão do TRF de multá-lo por litigância de má-fé. “Talvez não seja problema nem de ordem ético-disciplinar, mas de faculdade psíquica”, disse o desembargador Baptista Pereira no julgamento. Pintar ingressou ainda com catorze recursos no STJ. Perdeu todos.

Sem entrar em detalhes, o advogado critica o que chama de corporativismo na magistratura. “Em regra, eles se protegem uns aos outros, tendendo a não reconhecerem a suspeição, de modo a que o juiz suspeito possa atuar e impor prejuízos àquele que considera como desafeto. É uma estratégia da magistratura nacional, visando manter seu poderio.” Pintar, que ainda não pagou a multa imposta pelo TRF, pretende levar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

 

É comum que os processos por exceção de suspeição sejam tratados pelos juízes como tentativas de protelar o desfecho do julgamento. Em uma das ações movidas por Marcos Alves Pintar, a desembargadora Cecília Marcondes, do TRF-3, afirmou que o advogado estava “ávido por tumultuar o feito e impedir a célere resolução do conflito”.

Essa mesma leitura foi feita pelo juiz da Lava Jato no Rio de Janeiro, Marcelo Bretas, em uma série de processos por suspeição movidos pelo ex-governador Sérgio Cabral em 2017. À época, a defesa de Cabral – que respondia a onze ações penais por diferentes crimes – ingressou com quatro recursos ao TRF da 2ª Região, no Rio, em que acusava o juiz de parcialidade. Para os advogados do ex-governador, Bretas teria feito prejulgamento numa entrevista que deu ao jornal Valor Econômico. O magistrado dissera na reportagem que, ao avaliar as joias adquiridas por Cabral, ainda tinha dúvidas se eram caso de “propina e ostentação” ou apenas lavagem de dinheiro.

A suspeição foi negada por Bretas. “Onde o prejulgamento? Ante a obviedade do caso, entendo suficiente a simples leitura da referida reportagem e considero dispensáveis maiores considerações para seu esclarecimento”, afirmou em relatório. No TRF, a exceção de suspeição foi descartada por “completa ausência de elementos” que comprovassem a parcialidade do juiz.

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