Cena de "Nada de Novo no Front" (2022), coprodução entre Alemanha e Estados Unidos Foto: Divulgação
Nada de Novo no Front
Assistir à adaptação do livro de Erich Maria Remarque é notar que, um século desde a Primeira Guerra, seguimos num ciclo de barbáries
A tradução literal de Im Westen nichts Neues (2022), título original da mais recente adaptação para o cinema do célebre romance homônimo de Erich Maria Remarque, seria No Oeste Nada de Novo. No entanto, Nada de Novo no Front, título adotado no Brasil, não só é melhor como, na verdade, mais adequado, inclusive do que o nome dado à conhecida versão americana de 1930, dirigida por Lewis Milestone – All Quiet on the Western Front –, que se manteve fiel à tradução publicada na Inglaterra, em 1929, um ano depois de a edição original alemã vir a público em forma de série no jornal Vossische Zeitung.
Entre Nada de Novo no Front, de um lado, e All Quiet on the Western Front (Tudo Quieto no Front Ocidental), do outro, além da diferença de idioma, há uma discrepância conceitual.
A nova adaptação cinematográfica foi coproduzida na Alemanha e nos Estados Unidos, dirigida por Edward Berger e financiada pela Netflix. Acaba de ser indicada para concorrer a nove Oscars, inclusive os de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional – este último pelo fato de ser filmada fora dos Estados Unidos e ter diálogos em francês e alemão.
Após estrear no Festival de Toronto e na Alemanha, em setembro de 2022, Nada de Novo no Front foi lançado nos Estados Unidos e entrou no catálogo da Netflix em outubro. Indicado para catorze prêmios da Bafta – os British Academy Film Awards, a serem entregues em 19 de fevereiro –, é o concorrente com o maior número de indicações.
Com roteiro de Berger, Lesley Paterson e Ian Stokell, o filme começa e termina com a mesma paisagem ampla e silenciosa – a floresta em declive no primeiro plano, o morro distante, nuvens carregadas e uma faixa clara de céu. As duas imagens se diferenciam apenas pela progressão da luz do amanhecer entre uma e outra.
Depois de assistir às 2 horas e 28 minutos de Nada de Novo no Front, é razoável concluir que o plano inicial e o de encerramento sinalizam bem mais a falta de novidade do que a quietude. Mais o imutável do que o silêncio. Mais a persistência de valores do que as transformações.
Passaram-se 104 anos entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a invasão da Ucrânia por tropas russas, em fevereiro de 2022. Nesse pouco mais de um século, ocorreram inúmeras guerras. Cada uma teve suas peculiaridades, além da transformação de armamentos e novos recursos tecnológicos disponíveis. Mas predominou em todas a mesma barbárie na qual o protagonista de Nada de Novo no Front, o estudante Paul Bäumer (Felix Kammerer), de 17 anos, e seus três amigos mergulham com entusiasmo, no quarto ano do conflito. O absurdo desumano da situação em que eles se veem envolvidos e na qual perdem a vida se repetiu ao longo do século passado e persistiu, à medida que os conflitos se sucederam nas primeiras décadas do novo milênio.
A primeira sequência de Nada de Novo no Front, após o prólogo e o título, é explícita no propósito de destacar a selvageria cíclica, que contraria a perspectiva ilusória de quem procura amenizar conflitos proclamando que tudo está tranquilo ou quieto. Antes dos soldados serem enterrados, seus uniformes são retirados dos corpos amontoados para serem lavados e remendados. O de Heinrich Gerber (Jakob Schmidt), jovem morto em combate, com seu nome ainda costurado numa etiqueta de identificação, acaba sendo entregue a Paul no centro de recrutamento. Revelando sua tremenda ingenuidade, ele faz menção de devolver a farda, crente que pertence a outro recruta e lhe foi entregue por engano.
A reutilização dos mesmos uniformes, à medida que a tropa é renovada, estabelece o elo que une os jovens mortos ao longo da guerra. Levas de soldados se sucedem, mas no essencial – a preservação da vida –, a ameaça fatal permanece a mesma e não há sinais de que será extinta.
Mas, embora não reste dúvida de que a guerra e suas consequências trágicas acompanham a humanidade desde seus primórdios e preservam certas características básicas ao longo do tempo, é inegável ao mesmo tempo que o processo histórico não é estático. Prova disso é Nada de Novo no Front ser uma coprodução alemã, dirigida por um alemão, lembrando que o livro de Remarque foi queimado e banido pelo regime nazista, em maio de 1933, por ser considerado propaganda antialemã. Antes disso, a adaptação do livro produzida pela Universal Studios causou escândalo, sendo considerada um ultraje ao ser lançada na Alemanha, em dezembro de 1930.
No dia seguinte à estreia do filme de Milestone, em Berlim, integrantes da tropa de assalto do partido nazista, os infames camisas-pardas, destruíram as bilheterias da Mozartsaal, agrediram espectadores considerados judeus, soltaram dezenas de ratos brancos, jogaram no público bombas de fedor e pó que causava espirros. Em seu diário, Joseph Goebbels anotou: “A exibição é abandonada, assim como a seguinte. Nós ganhamos. Os jornais estão repletos do nosso protesto. A nação está do nosso lado. Resumindo, vitória!”
Akil N. Awan, professor associado de história moderna e violência política na Royal Holloway da Universidade de Londres, começa um longo artigo reproduzindo a motivação de Berger para fazer Nada de Novo no Front. O diretor e corroteirista do filme declarou que queria contar a história “a partir de uma compreensão social que é especificamente alemã, que abraça a culpa que também está ligada à memória da Primeira Guerra Mundial (…) [para] espelhar aqueles sentimentos com os quais todos nós crescemos, com os quais minhas crianças ainda estão crescendo (…). Para nós tem a ver com vergonha, com sentimento de culpa e dor. Isso é exatamente o que queríamos transmitir.”
Adiante no artigo, Awan comenta que “a Alemanha relaxou gradualmente sua orientação pacifista nos últimos anos, como é evidente a partir do envio de militares para o Afeganistão, integrando a missão da Otan. A beligerância russa e a invasão da Ucrânia levaram a reversões maiores da política estabelecida. Em junho de 2022, Lars Klingbeil, colíder do Partido Social-Democrata da Alemanha, disse que o país deve se esforçar para se tornar uma ‘potência líder’ e aceitar ‘a força militar como uma ferramenta política legítima’. (…) Esse tipo de retórica assertiva, para justificar um aumento significativo do orçamento de defesa que tornaria o exército da Alemanha o maior da Europa, naturalmente provou ser profundamente problemático para muitos alemães. O chanceler Olaf Scholz, percebendo a ruptura total com as visões pacifistas predominantes no país de longa data, usou um termo apropriadamente momentoso para descrever esta nova era para a política de segurança e defesa da Alemanha: zeitenwende, um ponto de inflexão histórico.”
Awan conclui o artigo afirmando que “talvez filmes como Nada de Novo no Front sejam necessários agora, mais do que nunca, como um lembrete para uma nova geração de alemães que se encontra nesta encruzilhada histórica.”
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Destaque (XXVII): “Nenhuma obra é criada no vácuo e há preocupações contemporâneas que também animaram Berger, ajudando a explicar o timing (ou, de fato, a urgência) desse filme [Nada de Novo no Front] nessa conjuntura histórica específica. Principalmente, há o atual contexto sócio-político de crescente nacionalismo, populismo, euroceticismo, intolerância cultural e o ressurgimento da extrema direita. Berger afirma: ‘Sou sensível aos movimentos nacionalistas, então com a ascensão de Trump e o Brexit, além de a extrema direita na Hungria e na Itália, é importante lembrar que cem anos atrás, tudo isso nos levou a uma catástrofe.’
Ele está certo em se preocupar. O ressurgimento, evolução e generalização da política de extrema direita em toda a Europa chocou e deixou muitos alarmados. Recentes vitórias eleitorais na Suécia, Itália e França de partidos políticos de extrema direita – com a expectativa de que outros sigam o exemplo – colocaram a Europa à beira de um precipício perigoso.” Akil N. Awan, idem citação acima. O artigo completo está disponível neste link.
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Estarei de férias nas próximas semanas. A coluna voltará a ser publicada em 1º de março. EE
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