Não, Bill Gates não está por trás do surto de dengue no Brasil
Diferentemente do que diz um post falso que anda circulando pelas redes, a doença não se alastrou por obra da Fundação Bill & Melinda Gates
Um post falso afirma que o “surto de dengue no Brasil aumenta em 400% após os mosquitos OGM [geneticamente modificados] de Bill Gates serem liberados propositalmente”. O texto cita o “Programa Mundial de Mosquitos da ONU” e um “plano para liberar bilhões de mosquitos geneticamente editados no Brasil durante um período de 10 anos”. A publicação diz ainda que “um ano após o início desta iniciativa ‘genial’ contra os mosquitos, desafiando a própria natureza, os casos de dengue aumentaram exponencialmente, em vez de diminuir”. E questiona a eficácia da vacina Qdenga: “Será que funciona? Os efeitos adversos começam a ser reportados, pelo próprio Diretor do Departamento do Programa Nacional de Imunização, Eder Gatti”. Até o dia 21 de março, a publicação somava 163 mil visualizações e mais de sete mil interações.
O Programa Mundial de Mosquitos (WMP, em inglês), parcialmente financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates, não tem relação com o atual surto de dengue no Brasil, diferentemente do que afirma post viral. O projeto foi fundado pelo cientista Scott O’Neill, que estuda a dengue desde os anos 1990 e, ao contrário do que diz a publicação falsa, não tem relação com a ONU. A fundação é uma associação sem fins lucrativos que “trabalha para proteger a comunidade global de doenças transmitidas por mosquitos, como dengue, zika, febre amarela e chikungunya”.
Em março de 2023, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Ministério da Saúde fecharam uma nova parceria com a entidade para expandir a atuação do programa com a instalação da maior biofábrica – instalação que utiliza processos de biotecnologia para cultivar organismos vivos – do mundo no Brasil. O local vai abrigar a criação de mosquitos Aedes aegypti com a bactéria Wolbachia, método do projeto de combate à dengue, zika e chikungunya. Diferentemente do que alega o post aqui investigado, a biofábrica ainda não foi inaugurada. O local começou a ser construído em março deste ano em uma unidade do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), em Curitiba. A previsão é que comece a operar em 2025, segundo o líder de Relações Institucionais e Governamentais do WMP, Diogo Chalegre.
O post também mente ao afirmar que o método contribui para o avanço das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. Em Niterói, no Rio de Janeiro, por exemplo, o programa em parceria com a Fiocruz começou em 2015 e, desde então, os casos de dengue vêm diminuindo ano após ano. Mesmo agora com o surto, a cidade, que tem mais de 500 mil habitantes, contabiliza quase 600 casos prováveis da doença e nenhum óbito.
No restante do país, de fato, houve crescimento de 400% no número de diagnósticos da doença em relação a 2023. O motivo, no entanto, não envolve o Programa Mundial de Mosquitos. “Nós temos um aumento natural de casos, frequentemente a cada cinco ou seis anos, dentro de todo o ciclo histórico de doença”, explicou ao Comprova o médico infectologista Jean Gorinchteyn, do Hospital Albert Einstein e do Hospital Emílio Ribas. “Mas, especialmente no último ano, nós tivemos questões climáticas envolvidas, como aumento recorde de temperaturas, grande índice de chuvas, fazendo com que houvesse um ambiente muito favorável à proliferação dos mosquitos”, diz.
Atualmente, a campanha de vacinação contra a dengue no Brasil contempla jovens de 10 a 14 anos de idade com doses da Qdenga, fabricada pelo laboratório japonês Takeda. Uma nota técnica emitida pelo Ministério da Saúde esclareceu que os efeitos adversos após a imunização, sendo a maioria reação alérgica, são raros e não evoluem para internações. A vacina pode reduzir em 80% os casos sintomáticos da doença e em 90% as hospitalizações, segundo a farmacêutica.
Os mosquitos criados pelo programa financiado por Bill Gates não são geneticamente modificados, como alega o post aqui verificado. OGM é a sigla para “organismos geneticamente modificados”, ou seja, que tiveram alterações genéticas manipuladas por cientistas. O programa do empresário é considerado natural e sustentável por não apresentar riscos ao ecossistema em que é liberado, diferentemente do uso de inseticidas em larga escala, por exemplo. A técnica é diferente daquela desenvolvida pela empresa Oxitec, que também atua no Brasil.
Um dos laboratórios de criação dos mosquitos do WMP está localizado em Medellín, na Colômbia. “Eles atendem a todas as necessidades dos insetos à medida que crescem de larvas a pupas e até adultos, mantendo a temperatura ideal e alimentando-os com porções generosas de farinha de peixe, açúcar e, claro, sangue”, escreveu Bill Gates em um blog. São produzidos cerca de 30 milhões de mosquitos por semana.
Na fábrica, os cientistas introduzem a bactéria Wolbachia nos ovos do Aedes aegypti, sem alteração genética. Essa bactéria está presente em quase 60% dos insetos no mundo, incluindo moscas-das-frutas, mariposas, libélulas e borboletas, e pode impedir que os vírus da dengue, zika e chikungunya se desenvolvam no mosquito. Consequentemente, reduz a chance de o Aedes aegypti transmitir essas doenças para humanos.
“A Wolbachia vive dentro das células dos insetos e é transmitida de uma geração para outra através dos ovos dos insetos. Os mosquitos Aedes aegypti normalmente não transmitem Wolbachia, mas muitos outros mosquitos o fazem”, diz o site do programa. “Análises de risco independentes indicam que a libertação de mosquitos Wolbachia representa um risco insignificante para os seres humanos e para o ambiente.”
Os mosquitos são colocados em pequenas caixas e liberados no ambiente com ajuda da população local ao longo de 12 a 20 semanas. Outra opção oferecida pelo programa é a instalação de cápsulas, com ovos já criados com a Wolbachia, nas ruas ou dentro das casas dos moradores do local estudado. A própria população fica responsável por colocar água nas caixas até a eclosão do mosquito adulto, que ocorre entre uma e duas semanas.
Um teste realizado entre 2017 e 2020 na cidade de Yogyakarta, na Indonésia, mostrou uma redução de 77% na incidência de dengue e uma queda de 86% no número de hospitalizações pela doença na comunidade que recebeu o método com a Wolbachia. O programa comparou dados de uma região não tratada com o local que aplicou o teste. Na área com os mosquitos selvagens, foram registrados 318 casos de dengue e 102 internações. Já na região tratada, foram 67 casos e 13 hospitalizações.
A Fundação Bill & Melinda Gates financia o trabalho com a Wolbachia desde 2004 através do Programa Grandes Desafios na Saúde Global, iniciativa criada pela própria instituição. O investimento ultrapassa a marca de US$ 230 milhões, incluindo o aporte de US$ 50 milhões (respectivamente, R$ 1,1 bilhão e R$ 250 milhões) citado pelo post aqui investigado. O projeto recebe apoio de outras 23 entidades, incluindo os governos do Brasil, dos Estados Unidos, da Austrália, da Nova Zelândia, de El Salvador, além da empresa KPMG, o banco australiano Macquarie, a Fundação Comunitária do Vale do Silício e outras instituições ligadas à famílias de filantropos.
A cidade do Rio de Janeiro foi a primeira a receber a iniciativa no Brasil, em 2014. Os projetos em larga escala, no entanto, começaram a partir de 2017, com a liberação dos mosquitos não só na capital fluminense, mas também em Niterói (RJ), Belo Horizonte, (MG), Campo Grande (MS) e Petrolina (PE). Em 2024, a pedido do Ministério da Saúde, o projeto será ampliado para outros seis municípios: Joinville (SC), Foz do Iguaçu (PR), Londrina (PR), Presidente Prudente (SP), Uberlândia (MG) e Natal (RN).
Os trabalhos são acompanhados pela Fiocruz, que destaca a redução de 70% dos casos de dengue, 60% de chikungunya e 40% de zika em Niterói. “Depois desses dados, a gente vem acompanhando ainda toda a série histórica da cidade, mostrando resultados ainda superiores na redução dos casos das arboviroses. Estamos fazendo a compilação para publicar para a população e para a comunidade científica”, destaca o pesquisador da fundação e Líder do Programa Mundial de Mosquitos Brasil, Luciano Moreira, em nota enviada ao Comprova. Os resultados dos demais municípios ainda estão sendo levantados.
Segundo o líder de Relações Institucionais e Governamentais do WMP, Diogo Chalegre, o engajamento da população local tem sido expressivo. “Antes de liberarmos, fazemos uma atividade chamada de Engajamento Comunitário, onde informamos a população sobre nossas atividades. Ao final dela, fazemos uma pesquisa de aceitação. Os números de aceitação giram em torno de 90%”, disse.
Os resultados promissores levaram o governo brasileiro a firmar uma nova parceria com o projeto em março de 2023. A maior biofábrica do mundo está sendo construída em Curitiba e deve começar a operar em 2025, com a criação de 100 milhões de mosquitos por semana, atendendo 70 milhões de pessoas nos próximos 10 anos. O programa já conta com uma instalação no Rio de Janeiro, inaugurada em 2014. Além disso, uma terceira biofábrica construída em Belo Horizonte está passando por testes operacionais e vai atender 22 municípios da Bacia do Paraopeba a partir do segundo semestre deste ano.
“Não existe nenhuma relação entre esse surto atual com a liberação de mosquitos que têm no seu interior a Wolbachia ou mosquitos transgênicos. Pelo contrário, os lugares que fizeram isso conseguiram diminuir a população dos mosquitos, infelizmente de uma forma temporária. É um mecanismo extremamente caro, que impede que o gestor público institua isso como uma forma de controle para a epidemia”, pondera o médico infectologista Jean Gorinchteyn, que já foi Secretário de Saúde do estado de São Paulo.
A vacina Qdenga, do laboratório japonês Takeda, é recomendada pela Organização Mundial da Saúde para combate à dengue desde outubro de 2023. Na ocasião, a presidente do Grupo Consultivo Estratégico de Peritos em Imunização da OMS, Hanna Nohynek, enfatizou a eficácia do imunizante. “Essa é a primeira vacina contra dengue com potencial para uso mais amplo. Muitos países estão enfrentando surtos devastadores de dengue e prevemos o agravamento geral da situação com as alterações climáticas”, disse.
A farmacêutica, aliás, já recebeu financiamento da Fundação Bill & Melinda Gates, como afirma o post investigado. Em 2016, a instituição anunciou um aporte de U$ 38 milhões no programa de desenvolvimento e registro de uma vacina contra a poliomielite para 70 países em desenvolvimento. A Takeda, que está ativa há 70 anos, também trabalha com vacinas contra covid-19, zika e influenza.
No Brasil, a Anvisa aprovou o registro da Qdenga em março de 2023. Segundo a agência, “o valor de eficácia global da vacina, que é o objetivo primário do estudo clínico apresentado, atingiu o patamar de 80,2%”, combatendo os quatro diferentes sorotipos do vírus causador da doença. A bula indica o imunizante para pessoas de 4 a 60 anos, mas o Ministério da Saúde incluiu apenas jovens de 10 a 14 anos na campanha em razão da baixa produção pelo laboratório.
Em março deste ano, o governo emitiu uma nota técnica sobre o andamento da campanha. No universo de 365 mil doses aplicadas no país desde 2023, foram identificados 16 casos de reações alérgicas graves. Todos se recuperaram e não houve hospitalizações. Naquele momento, o diretor do Departamento do Programa Nacional de Imunizações, Eder Gatti, reafirmou que os benefícios superam os riscos. “Nem todos os casos estão relacionados à estratégia de vacinação. É um número pequeno frente ao número de doses aplicadas. Mas o Ministério da Saúde, prezando pela transparência e segurança, fez uma nota técnica de acompanhamento após a discussão com especialistas”, afirmou.
A publicação faz uso do nome de Bill Gates, bilionário cujo nome é constantemente citado em teorias da conspiração, para criar um tom alarmista sobre um assunto que se tornou rotineiro. O texto mistura nomes de instituições globais, como a ONU, e inclui diversos números para tentar passar credibilidade à mensagem, mas não se preocupa com a veracidade e o contexto das informações. O projeto da biofábrica citada no texto, por exemplo, faz parte de um plano real, mas o laboratório sequer foi inaugurado, portanto, não pode ter qualquer relação com o atual surto de dengue. Como são temas de interesse público, informações sobre doenças e vacinas podem ser confirmadas pelo próprio leitor em sites oficiais de órgãos públicos e também das instituições privadas, além da imprensa.
O Comprova entrou em contato com Karina Michelin, autora do post, mas não recebeu retorno até o momento da publicação deste texto. Ela já teve diversos conteúdos classificados como falso ou enganoso pelo Comprova.
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