Beth Carvalho em uma das cenas de Andança Foto: Ivan Klingen
“Não dá para fugir dessa coisa de pele”
Documentário sobre Beth Carvalho mostra como a cantora viu no samba uma arma contra o racismo e a favor da democracia
As imagens são de 1986. Têm textura VHS e estética caseira de filmagem de festa de aniversário. Paredes descascadas, conversas animadas, copos de cerveja pela metade sobre as mesas, uma mangueira enrolada num canto, um prato farto de feijoada, um pôr do sol no terraço num horizonte sem prédios, uma roda de samba que ganha a noite. Em off, ouve-se a voz de Beth Carvalho, aniversariante do dia, que completava 40 anos: “Eu fui me profissionalizando, eu fui entendendo as engrenagens da máquina, do sistema. Porque, graças a Deus, pais muito esclarecidos me deram muito respaldo nesse sentido de eu entender o lado político do país, o lado social deste país. E isso tem a ver com todo o meu trabalho. O fato de eu cantar samba tem a ver com isso. Não só pelo ritmo, não só pela beleza que é. Mas tem a ver com o lado político e social. Assumir a minha negritude.”
Localizada exatamente no meio das quase duas horas do documentário Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, dirigido por Pedro Bronz, a cena condensa muitos dos sentidos do filme. Feito a partir do extenso arquivo de áudio e vídeo produzido e armazenado pela própria cantora no decorrer da vida, o longa-metragem costura com leveza essas duas dimensões: de um lado, uma trajetória pessoal, íntima; de outro, o caráter público e coletivo do samba como força civilizatória, como afirmação de uma visão de mundo, como espaço de resistência política pela alegria, pela festa.
Nos primeiros segundos de Andança, é anunciada de forma poética a perspectiva escolhida para o filme e a origem do material que a sustenta. O que vemos são imagens de uma câmera operada pela própria Beth, chegando ao bar Bip Bip, reduto do samba em Copacabana, e encontrando ali gente como os compositores Mário Lago, Walter Alfaiate, Moacyr Luz e Wilson Moreira. Intimidade e história trançados, sob o olhar da cantora.
Os vídeos e áudios impressionam e emocionam pela extensão de seu alcance. Vão do ouro puro da memória da música popular brasileira à suposta desimportância do cotidiano. Não se trata, portanto, de um compêndio de momentos históricos, apesar de muitos deles estarem ali: Cartola mostrando As Rosas não Falam e O Mundo É um Moinho para Beth, e dizendo que achava que ela cantaria bem a primeira, mas não a segunda; o áudio original da fita cassete que Zeca Pagodinho entregou à amiga com o hoje clássico Camarão que Dorme a Onda Leva, que gravariam juntos em 1983, lançando a carreira do cantor; o registro da Noitada de Samba, evento semanal que ocupou o Teatro Opinião ao longo dos anos 1970; a coleta em campo, gravador em punho, de sambas de compositores da Velha Guarda da Portela, como Manacéa, Casquinha e Monarco.
Há, porém, as imagens que capturam a banalidade na qual a vida se dá e onde o samba se afirma. Beth dançando madrugada adentro em frente à televisão, que transmitia um baile, num Carnaval em que ela se viu longe da rua, por força das circunstâncias. Uma roda de partido alto na qual Arlindo Cruz e Beto Sem Braço fazem rimas de improviso deliciosamente maliciosas, que tinham “farinha” como tema (“Eu sei que todo mundo quer/ Mas a gente também alucina/ Não quero ver é nego doidão/ Se atirando na piscina”). A cantora, grávida de sua filha Luana, barrigão ao sol na praia, logo antes de cobri-lo ao vestir orgulhosamente uma camisa do Botafogo.
A qualidade de “madrinha”, cantora responsável por revelar uma série de sambistas, atravessa o documentário também, de forma mais sutil do que a simples reafirmação do clichê repisado. É notável como boa parte das imagens aponta menos para Beth do que para quem ela ilumina – de Nelson Cavaquinho a Luiz Carlos da Vila, de Dino Sete Cordas a Arlindo Cruz. Ou seja, documenta-se o olhar da madrinha, mas sem nomeá-lo.
Como Os Sertões de Euclides da Cunha, que nos apresenta em sequência a terra e o homem antes de chegar à luta, o filme se ocupa primeiro de nos revelar o contexto e a personagem antes de se mostrar marcadamente político. A terra (o Brasil sob a ditadura, caminhando para a redemocratização e se firmando nela) é o pano de fundo sobre o qual a mulher se desenha, para que a luta se explicite na segunda metade do documentário.
Mesmo na atmosfera algo naïf do início de carreira bossanovista (Beth voz-e-violão, estilo Nara Leão em seus primeiros anos, tocando e cantando Apelo) já há centelhas da postura da cantora frente ao samba, à vida. O fascínio com Clementina de Jesus; a crítica ao elitismo das reuniões da bossa nova; a busca pelas quadras das escolas de samba e ambientes onde a música se desse de modo mais popular e livre de cerimônias; a ida para uma gravadora pequena a fim de ter condições de fazer um disco de samba nos moldes e com a liberdade que desejava.
Mas é a partir da cena do aniversário de 40 anos que se amarra com firmeza o senso político do filme, do samba e da vida de Beth. Fica evidente que passa por ali o desejo declarado de a cantora estabelecer um diálogo direto com o povo – seja defendendo junto ao maestro Rildo Hora o uso de um acorde mais simples num arranjo, seja estando à vontade em um botequim com compositores, servindo-se prazerosamente dos tira-gostos.
É especialmente ilustrativa a maneira como, em 1984, frente ao microfone num comício das Diretas Já, ela escolhe, em vez de fazer um discurso, declamar e depois cantar, acompanhada do público, os versos do samba Virada: “O que adianta eu trabalhar demais/ Se o que eu ganho é pouco/ Se cada dia eu vou mais pra trás/ Nessa vida levando soco/ E quem tem muito tá querendo mais/ E quem não tem tá no sufoco/ Vamos lá rapaziada/ Tá na hora da virada/ Vamos dar o troco.” O canto soa mais alto do que qualquer fala.
Ou, ainda, quando Beth faz na estação Carioca do metrô um show ao lado dos chamados “pagodeiros”, artistas como Jovelina Pérola Negra e Fundo de Quintal. Ali, afirma a negritude do samba e a sua própria ao entoar, junto do autor Jorge Aragão, Coisa de Pele (“Podemos sorrir/ Nada mais nos impede/ Não dá pra fugir/ Dessa coisa de pele”). Ela canta com uma autoridade que dá voltas no parafuso (ao mesmo tempo apertando-o e afrouxando-o) do debate contemporâneo sobre apropriação cultural e identidade racial.
A presença de Fidel Castro, Leonel Brizola e Mercedes Sosa no documentário deixam nítidas as convicções políticas de Beth. As mesmas convicções se manifestam em seu hábito de, a cada disco, organizar uma espécie de assembleia democrática para que fossem votadas as canções que entrariam no álbum – no filme, é mostrado o debate referente ao repertório de Brasileira da Gema, lançado em 1996. Vibra na mesma frequência a última encomenda que a cantora – já bem doente, no fim da vida (Beth morreu em abril de 2019, aos 72 anos, de infecção generalizada) – fez a Arlindo Cruz. Ela pediu ao amigo um samba para as enfermeiras, classe de trabalhadoras que passou a admirar ao ter com elas o contato frequente e próximo que sua condição exigia. O samba, enfim, como atuação social, modo de existir solidário.
A emergência do pagode nos anos 1980 – na qual a cantora teve um papel fundamental ao chamar a atenção para a Geração Cacique de Ramos, como ficou conhecido o grupo de artistas formado por Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Fundo de Quintal, Arlindo Cruz, Sombrinha, Almir Guineto e outros – é vista por ela não como manifestação musical pura e simples, mas como o anúncio de um “novo Brasil”. Beth cantava por e para um país a ser fundado sobre as bases democráticas do samba.
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