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    FOTO: DANIELA PINHEIRO

anais da medicina

“Não espere de mim comiseração. Não é meu estilo”

Inocentada pela Justiça quatro anos depois de ter sido acusada de matar pacientes em uma UTI em Curitiba, a médica Virgínia Soares de Souza reflete sobre o passado, o futuro e os efeitos da cannabis

Daniela Pinheiro | 28 abr 2017_17h38
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Havia exatamente uma semana que a médica Virgínia Helena Soares de Souza via o mundo, como ela mesmo disse, “com mais cor”. No dia 20 de abril, quatro anos e dois meses depois de ter sido acusada de matar sete doentes terminais na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Evangélico em Curitiba, ela havia sido absolvida pela Justiça. Eram dez da manhã de um dia chuvoso e a doutora estava no escritório de seu advogado, Elias Mattar Assad, no bairro de Juvevê, no centro de Curitiba. Ela conversava com uma das filhas dele, também da área jurídica. “O paciente que é coronariano não melhora. Ele ter dislipidemia é fator de risco, mas não é o problema. Mas ele foi revascularizado três vezes. Coronariano é um paciente que tenho muito receio. É aquele que você está conversando e, de repente, ele pum: morre.”

Dos pés à cabeça, a doutora usava tons violáceos: capa de seda cor de uva, blusa roxa, saia comprida de veludo cereja escuro, cinto de couro bege, meia-calça marrom e sapato de salto agulha roxo vivo. A maquiagem acompanhava a paleta. Os olhos amendoados circundados por lápis kajal negro, as pálpebras da cor de mirtilo, o batom rosa escuro. As unhas das mãos estavam pintadas com um esmalte quase negro.

Sem que lhe fosse perguntado, ela se adiantou explicando que a advogada precisara de um parecer técnico para um caso e lhe fora indicado um cardiologista conhecido. “Só estou dando uma opinião”, disse. Em seguida, ela atravessou a sala segurando uma xicrinha de café e reclamou do salto “que estava bambo”. O grupo tomou o elevador até a cobertura do edifício, que faz as vezes de salão de festas da família do advogado.

Na sala em tons de bege e fendi, com poltronas marrons e sofá de couro capitonê, ela se acomodou em uma cadeira pouco confortável. “Não espere de mim comiseração”, disse em tom meio grave, meio aveludado. “Não é meu estilo”, avisou.

Naquela manhã, uma entrevista dela – feita por meio de bilhetes respondidos à mão – havia sido publicada no UOL. Ela disse nunca ter acompanhado nas redes sociais o que se falou ad nauseam sobre o caso. Tinha a temperatura das notícias por meio do filho ou dos advogados de defesa, basicamente. Não tem e-mail, não sabe usar o Google, nunca visitou o Facebook. “Eu sou ziraldo. Eu sou caneta e papel. Meu celular toca, eu atendo e é isso”, disse. Comentou que uma conta em uma rede social havia sido criada em seu nome – com críticas e xingamentos –, mas que fora apagada posteriormente.

Na edição de junho de 2013, piauí publicou o perfil que escrevi sobre a doutora. A reportagem relatava um componente de animosidade pessoal contra ela entre os que a denunciaram. Subordinados se achavam maltratados, colegas preteridos e superiores, desafiados pelo jeito mercurial e pouco diplomático da médica. A descrição de como ela, que era chefe da UTI, supostamente matava pacientes também era dissonante. Nos depoimentos, havia muitos “ouvi dizer”, “todo mundo sabe”, “era óbvio que ela fazia isso”. Entrevistados, profissionais de outros hospitais lançavam dúvidas sobre o teor das acusações. A imprensa embarcou no sensacionalismo do caso. As manchetes de jornais, revistas e sites traziam palavras como “a doutora morte” e a “assassina da UTI”.

A doutora e outros sete funcionários do hospital foram denunciados pela promotoria por homicídio e formação de quadrilha. Ela chegou a ficar presa por um mês. Nos outros quarenta e nove enquanto durou o processo, ela se impingiu uma prisão domiciliar esperando julgamento. À exceção dela, todos os demais continuaram trabalhando até o desfecho do caso. “Uma delas, uma enfermeira mais nova, me culpa pela situação, eu sei”, disse. Todos foram absolvidos por falta de provas. Ela já havia sido inocentada no Conselho Regional de Medicina. E também ganhou uma ação trabalhista contra o hospital que totaliza 4 milhões de reais – soma que a defesa acredita nunca irá receber.

O advogado Elias Mattar Assad está escrevendo um livro sobre o caso. “A medicina foi para o banco dos réus, não a doutora”, comentou. “Médicos podem ser investigados? Claro, mas é preciso que seja examinado por gente que tenha expertise no assunto. Não pode ser um policial, um delegado, um procurador”, disse Assad, que havia se juntado ao grupo. Assim que o “caso do Hospital Evangélico” veio à tona, a doutora teve o salário cortado. Como não tinha poupança e morava de aluguel, a situação se complicou. O advogado lhe cedeu um apartamento de 120 metros quadrados, onde ela passou a viver – e ainda vive – com o único filho, Leonardo, que é solteiro e músico. Segundo ela, a readaptação foi fácil, haja visto a desenvoltura com a qual a cachorrinha, Naomi, absorveu o novo endereço. “Ela ficou mais tranquila, parou de ter medo de trovão e de fogos de artifício”, comentou. “Dizem que animais têm essa sensibilidade. Eu não sou mística, não sei, mas parece que é assim.”

Dra. Virgínia e seus advogados, Elias e Louise Assad.
Dra. Virgínia e seus advogados, Elias e Louise Assad. FOTO: DANIELA PINHEIRO

Na crise, alguns amigos sumiram. Outros ressurgiram do nada. A maioria, segundo ela, se fez mais presente do que nunca. Um deles, dono de uma clínica, a contratou para um serviço de atendimento ao cliente por telefone. “Uma criatura excepcional que me amparou em tudo. Ele inventou um jeito de eu trabalhar para poder sobreviver.” A função pode ser considerada menor para alguém que comandou uma das UTIs mais sobrecarregadas do país. O novo trabalho consiste em, depois da consulta, ligar para o paciente para saber se tudo correu bem, como foi o exame, se foi fácil estacionar, se há críticas ou sugestões. Outro amigo passou a pagar a diarista, que vai em sua casa duas vezes por semana. Durante meses, outros lhe mandaram comida, presentes, roupas. A manicure e o cabeleireiro de anos se voluntariaram para atendê-la em casa. Quando relatou a solidariedade recebida, ela chorou. “Eu nunca, nunca, vou poder pagar isso de volta.” Nas duas horas e meia de conversa, ela ainda se emocionou outras três vezes, sempre quando falou do apoio nas horas difíceis. Evitou os convites para casamentos, natais, festas, aniversários. “Eles insistiam, mas eu não queria constrangê-los. Era minha maneira de preservá-los, como eles fizeram comigo”, afirmou. “Sempre poderia ter alguém que acreditasse que aquilo era verdade, que eu era uma figura demoníaca.” Nas vezes em que circulou publicamente, ouviu “Olha a doutora morte”, “Olha a assassina”, mas, segundo disse, “nada de mais grave”. Também disse que muitas vezes a interpelaram perguntando “A senhora é a…” ao que ela prontamente respondia: “Sou eu sim.” E a conversa transcorria de forma civilizada.

Matava o tempo lendo, preparando as respostas para as audiências no CRM, fazendo o trabalho de telemarketing. No interregno, fez o que chamou de pós-graduação – um curso intensivo de dez dias no Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem, em São Paulo. A especialização também foi paga pelo médico amigo. “Se alguém lá me reconheceu, não demonstrou”, disse. Também atualizou a edição do livro que havia escrito com o marido – morto em 2006 – O Hospital: Manual do Ambiente Hospitalar. Mas pediu para tirar seu nome da capa. No meio do processo, a doutora foi diagnosticada com catarata bilateral e sofreu uma perda de visão severa. “Eu não tinha fator de risco para o que foi”, comentou. “Eu tava igual ao Mister Magoo. Eu só via vultos, meu filho fazia as vezes de guia de cego para mim.” Tornou-se hipertensa. Operou a vista.

Como estávamos em Curitiba, a conversa sobre a Operação Lava Jato foi inevitável. Perguntei à doutora se ela via algum paralelo entre a situação em que viveu e o denuncismo no processo que apura a corrupção no país. “Eu te pergunto uma coisa. Quem foi o juiz que botou o Sérgio Cabral na cadeia?”, indagou se referindo ao ex-governador do Rio, preso em Bangu, acusado de desviar mais de 200 milhões de reais dos cofres públicos. “Marcelo Bretas”, eu disse. “Você já o entrevistou?”, continuou. “Não”, falei. “Por quê?”, ela retrucou em tom sarcástico. “Ele não dá entrevistas”, respondi. Ela abriu uma nesga de sorriso, jogou o corpo para trás e colocou as duas mãos sobre a mesa como se tivesse acabado de abrir um jogo de áses no pôquer. “Então, é disso que estou falando. O juiz imparcial. O juiz discreto. A Justiça como ela tem que ser”, afirmou.

A experiência lhe trouxera algum ensinamento? “O que eu aprendi com isso? De bom? Nada”, disse enfática. Depois, refez a frase. “Não acho que estamos num país onde nada presta”, disse. “Fez-se justiça no meu caso”. Sobre o Ministério Público e a imprensa, ela tem uma opinião particular. Segundo ela, o esforço dos procuradores em incriminá-la poderia ter sido direcionado para melhorar o atendimento de saúde pública para a população, que enfrenta filas, serviços de péssima qualidade. Já o jornalismo, ela disse, havia sido uma decepção. “Fico chocada com algumas coisas. Com o português usado, por exemplo”. Também, ressaltou, o que chamou de “jornalismo de caras e bocas”. “Detesto”, deixou escapar. Ao fim e ao cabo, ela disse achar estar diferente, mais reflexiva, menos radical. “A parte a senescência, que está chegando, acho que mudei sim.” Contou ter chegado à conclusão que sua “personalidade estava fora de moda”. “Eu mantenho o salto alto, não sei usar um tênis porque pareço os Flintstones – que patinam e não saem do lugar. Meu filho brinca que eu sou uma dama do século XIX”, disse.

A relação com o filho se estreitou. Era como se os papeis tivessem se invertido. Foi ela que passou a precisar de cuidados. “Mas ele nunca me imbecilizou.” Ela pediu licença para parafrasear o livro A Cabana, de William P. Young, que trata do assassinato brutal da filha do protagonista da trama, para justificar que em períodos de grande tristeza é muito difícil reagir. “Ainda que eu estivesse razoavelmente bem, cada vez que meu nome saía ou alguma coisa acontecia no tribunal, vinha tudo à tona de novo”.

FOTO: DANIELA PINHEIRO

O advogado passou a falar com ardor sobre o trâmite do processo. Ela escutava calada. Em um certo momento, ele captou o espírito da cliente. “Virgínia, eu não pretendo te esconder”, disse caminhando ao encontro dela. “Eu quero te ver na rua tomando um cafezinho daqui a duas semanas. Você está livre, acabou”, insistiu. Fez-se um longo silêncio na sala como se todos esperassem a resposta da médica. “Eu não quero virar aquele foco que eu virei”, ela balbuciou. Perguntei se a assustava a possibilidade de voltar a circular em público. “Não é assustador, é entediante.” Segundo ela, “a ficha ainda não caiu”. Por ora, se vê reclusa e trabalhando na Medicina que chamou de “burocrática”: a da papelada, da leitura. “Se eu pudesse, se eu fosse aceita, me ofereceria graciosamente para trabalhar para um CRM para fazer leituras de prontuários de pessoas acusadas”, disse. Em sua opinião, nada melhor do que quem passou por isso para ter o equilíbrio de fazer a coisa correta.

Quando pedi para tirar uma foto, ela se recusou peremptoriamente dizendo não ser fotogênica. Sugeriu que eu publicasse a mesma imagem que havia saído na revista anos antes. Argumentei que ela estava diferente, com a expressão mais leve e mais bem-vestida, já que na outra usava um roupão. “Roupão??? Aquilo é um caftã de seda podre de chique.” Depois de alguns minutos de uma batalha verbal, ela cedeu. Entretanto, pediu que não fosse retratada com o cigarro na mão. “Porque se eu ainda estivesse fumando maconha – o que eu deveria – seria mais simpático”, comentou irônica. O grupo se dirigiu para a varanda permeada de plantas exóticas, ervas e flores.

Em uma das audiências, no Conselho Regional de Medicina, ela contou que havia feito a piada da maconha. Foi quando passou a relatar sua única e frustrada experiência com cannabis. O primeiro marido havia lhe dado a ideia. Ela ficou curiosa e foi fazer a lição de casa. “Eu sabia toda a sintomatologia da cannabis, a alteração do hipocampo, a apaxia que pode ter, eu sabia tudo”, disse. Na época, fumava Charm e lhe prepararam, segundo disse, um cigarrinho nas mesmas dimensões. “Foi exagerado”, comentou.

Como era de se esperar, não gostou. “Primeiro é fedido. Segundo, você fica como um cerebelar, uma pessoa que tem um distúrbio. Depois, você fica toda gorda porque você fica com uma fome absurda. E, por fim, você fica como um idiota porque ri de qualquer idiotice. É a figura do Chico Anysio… ‘Faloooouu’”, imitou num tom de voz mole aludindo ao personagem Lingote. O ponto interessante, ela ressaltou, era que não se perdia a consciência. “Mas acho que duas tacinhas de champanhe são muito mais interessantes se você quiser ficar animadinha.”

A doutora posou na varanda. Gostou de uma das fotos em que ela aparecia cheirando um ramo de alecrim. O advogado, que havia deixado o grupo, voltou com um vaso de orquídeas azuis na mão. “São para você”, disse, colocando o arranjo no centro da mesa. A doutora encheu os olhos de lágrimas. “Eu adoro cores diferentes assim”, comentou. Ele contou que uma das primeiras perguntas que fez à cliente quando se conheceram foi: “Médicos choram?” Ela se recompôs rapidamente e passou a listar casos em que havia fraquejado, abraçada a familiares de pacientes que sucumbiram, ou diante de tragédias envolvendo crianças que chegavam só para morrer no hospital.

Era quase hora do almoço. Ela disse que voltaria para casa, trocaria de roupa, colocaria o caftã e “ficaria à disposição” – sem precisar o que isso queria dizer. No dia seguinte, ela tinha uma entrevista agendada com a equipe do programa Fantástico, da TV Globo. Quando eu me despedia do grupo, desejei “boa hora” à advogada, grávida de seis meses. A médica levou a mão à boca. “Ai, meu Deus, isso é a coisa mais brega que eu já ouvi nos últimos tempos!”, disse, caindo numa gargalhada. A doutora estava de volta.

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