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    Foto: Sameer Al-DOUMY/AFP

depoimento

“Não sei como ainda estamos vivos”

Brasileira relata momentos de angústia e paranoia depois dos terremotos na Turquia

Sabrina Machado | 22 fev 2023_15h50
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Em depoimento a Lara Machado

 

Eram 4h17 da madrugada de uma segunda-feira, 6 de fevereiro, quando começaram os tremores. Todo mundo acordou assustado. Estava escuro, não dava para ver nada. Eu, grávida de sete meses, e meu marido saímos correndo pela porta de casa sem chave, sem documento, sem dinheiro, sem nada. Tínhamos medo de o prédio desabar a qualquer momento. Quando me dei conta, estávamos no meio da rua, de pijama. Chovia e fazia muito frio. Pela manhã, chegou a nevar. Penso que, se o terremoto tivesse acontecido de dia, as pessoas teriam conseguido fugir com mais facilidade. De noite foi tudo muito confuso.

Eu e meu marido moramos em Sanliurfa, uma das cidades mais afetadas pelos terremotos. Vim para a Turquia como turista, em 2018, mas acabei me apaixonado pelo país e, no ano seguinte, voltei para ficar de vez. Hoje trabalho como atendente numa empresa de entrega de comida, e meu marido é nutricionista. Desde que moro aqui, tive algumas experiências com terremotos. Em 2020, um sismo atingiu a região de Izmir, na porção Oeste do país. Não foi um tremor tão forte quanto o de agora, mas houve mortes. Na época, eu morava em Gaziantepe, cidade no sul da Turquia, longe do epicentro do terremoto, mas decidi viajar até Izmir e me voluntariar no apoio às vítimas. Eu queria colaborar do jeito que fosse, mesmo sem falar turco ou inglês. Ajudei na distribuição de roupas, agasalhos e sapatos. Jamais poderia imaginar que, dali a três anos, eu estaria na mesma situação que aquelas pessoas.

Eu nunca tinha vivido um terremoto como o deste ano. Depois de fugir de casa no meio da madrugada, nos abrigamos no apartamento do meu cunhado. Não sabíamos o que fazer. No dia seguinte, enquanto a cidade ainda se recuperava do terremoto, fui com meu marido e meus cunhados até nossa casa para buscar nossos documentos. Como havíamos deixado as chaves para trás, não conseguíamos abrir a porta. Tentamos destrancar a fechadura usando cartões de crédito e pedaços de uma garrafa pet. Enquanto fazíamos isso, veio o segundo terremoto. Estávamos no corredor do prédio e eu não tinha onde me segurar. Todo mundo começou a gritar e pedir por Deus. Quando o prédio parou de balançar, saímos correndo de lá. Não abrimos a porta. Lembro que as paredes do corredor estavam cheias de rachaduras.

No apartamento do meu cunhado, ficamos apertados: éramos dez adultos, três crianças e um recém-nascido. Minha cunhada dera à luz na semana anterior e ainda não tinha se recuperado totalmente do parto. Estava com os pontos da cirurgia e sentia muitas dores, mas o médico que cuida dela não podia recebê-la porque estava atendendo vítimas do terremoto. Enquanto isso, o fornecimento de energia elétrica e água era interrompido toda hora. Na primeira noite, não consegui ficar dentro de casa. Me sentia insegura. Decidi dormir no carro junto com meu marido, mas não peguei no sono. Nessa noite, senti mais um tremor. Deu para perceber que o carro estava balançando. Demorou até conseguirem me convencer de que eu poderia entrar em segurança num lugar fechado, com piso e teto.

A região de Sanliurfa tem muitos sismos, é algo rotineiro. Frequentemente eu sinto a casa balançar, mas nunca tinha visto isso acontecer de forma tão intensa. A família do meu marido, que sempre viveu aqui, é tão acostumada que nem percebe. Mas eu noto até os tremores mais sutis. Quando quero confirmar se houve um sismo, confiro um aplicativo de celular que atualiza constantemente as informações sobre terremotos da minha região.

Depois de passarmos alguns dias na casa do meu cunhado, decidimos voltar. Analisamos onde estavam as rachaduras do nosso prédio e concluímos que era minimamente seguro. Não lembro que dia foi isso. Olho para o calendário, mas não consigo guardar as datas. Estou fora de órbita, muito estressada e ansiosa. Depois que isso tudo aconteceu, imaginei que meu bebê não estivesse bem. Pensei que o estresse poderia ter afetado a saúde dele. Estou grávida de 31 semanas, e o medo tirou minha paz. Mas consultamos um médico e está tudo bem.

Nos dias seguintes ao terremoto, eu conseguia comer direito nem dormir. Quando vejo os vídeos do que aconteceu, me pergunto como ainda estamos vivos. Estou fora do prumo. Sinto um grau de cansaço tão grande que às vezes tenho a sensação de que estou alucinando. Muitas vezes a terra nem está tremendo, mas sinto como se estivesse. Passei a andar com uma garrafinha de água do meu lado o tempo inteiro, para monitorar os tremores: se vejo que a água está balançando, sei que está ocorrendo um terremoto. Também vivo olhando para os lados, para ver se alguma lâmpada ou cortina está se mexendo.

O momento em que sinto mais medo é à noite. Tenho visto luzes nos apartamentos vizinhos. Percebo que aos poucos as pessoas estão voltando para suas casas. Mas outro dia mesmo senti um tremor leve. Não consigo ficar tranquila. Tenho medo de dormir e ser pega de surpresa de novo, como naquele dia. É um fenômeno imprevisível. Fico pensando no que pode acontecer se, de repente, as placas tectônicas voltarem a se mexer bruscamente.

 

Hoje, quando ando na rua, vejo pouquíssimas pessoas. Muita gente foi embora. As companhias aéreas ofereceram voos gratuitos para quem quisesse sair da região. Eu, apesar de tudo, não penso em voltar para o Brasil. Sei que há muitas pessoas numa situação pior do que a minha. Eu pelo menos tenho trabalho e, por enquanto, um lugar para morar. Posso reconstruir minha vida e, além disso, quero ajudar as pessoas, assim como fiz em 2020.

O governo destinou áreas enormes para alojar os desabrigados, mas a infraestrutura é precária. Não há banheiros apropriados para tanta gente. A situação é tão ruim que a polícia começou a fazer rondas nesses locais. As pessoas estão em modo de sobrevivência. Numa cidade vizinha à minha, houve uma briga num supermercado por falta de alimentos.

Na semana passada, uma equipe da Defesa Civil veio até meu prédio. Eles estão visitando cada edifício da região para avaliar se há risco de desabamento. Se a estrutura do prédio estiver condenada, eles mandam as pessoas evacuarem e a construção é demolida rapidamente. Não interessa se você não tem para onde ir. Em alguns casos, as pessoas não têm permissão nem para recolher seus pertences antes da demolição. Andando pela cidade, tenho visto prédios isolados pela Defesa Civil e já desabitados. Em breve, vão ser colocados abaixo. No nosso caso, o prédio foi liberado. Mas isso foi antes do terremoto mais recente.

Na última segunda-feira (20), eu estava fora de casa, comprando pães e doces, quando a terra tremeu novamente. Dessa vez eu não senti. Mas, ao sair da loja, vi pessoas correndo em direção aos seus carros e descendo dos prédios carregando cobertores. Voltei para casa rapidamente. Nesse novo tremor, morreram ao menos seis pessoas. Desde aquele primeiro dia, na madrugada de 6 de fevereiro, já foram contabilizados quase 50 mil mortos. É difícil imaginar o que vai acontecer daqui em diante. Os terremotos continuam ocorrendo com frequência. Fico pensando que, a cada tremorzinho, meu prédio vai ficando mais frágil.

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