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    Foto: Daniel Tiberio Luz/Associação Floresta Protegida

depoimento

“Não vamos deixar o garimpo entrar na nossa terra”

Indígena de grupo reduzido a 140 pessoas diz que seu povo vai resistir ao avanço de garimpeiros no Pará

Mrynho re Kayapó | 24 maio 2022_11h40
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Aos 55 anos, Mrynho re Kayapó tem testemunhado uma ofensiva do garimpo sobre terras indígenas de uma forma que nunca tinha visto. O responsável pela ameaça: o kuben – que no idioma de seu grupo, os mebêngôkre-kayapó, quer dizer “homem branco”. Enquanto vê garimpeiros avançando sobre aldeias de outros grupos indígenas, ele garante que seu povo está preparado para manter afastado o kuben e, por conseguinte, o garimpo. Só assim Mrynho considera ser possível manter as tradições da Kubenkrãkenh, aldeia semi-isolada no Médio Xingu, no Pará, localizada a três dias de barco da cidade mais próxima. É ali que ele vive, com outros 139 indígenas, com a mesma cultura e costumes de seus antepassados, dispostos a resistir. 

Em depoimento a Felippe Aníbal

 

Eu sou do povo mebêngôkre-kayapó. Nasci, cresci e moro na aldeia Kubenkrãkenh, no Pará, na região do Médio Xingu. É uma terra muito longe dos kuben [homem branco]. Para chegar à cidade mais perto [Ourilândia do Norte], tem que viajar três dias de barco. É difícil. Tem tantas corredeiras que, em alguns trechos, todo mundo tem que descer e ir a pé, pela margem, puxando o barco com cordas, por mais de uma hora. Também dá pra ir à nossa aldeia de avião, mas é algo raro. Ainda assim, dá uma hora de voo. Mas isso [a dificuldade de acesso] também é bom: ajuda os mebêngôkre a continuarmos isolados, mantendo nossa cultura. É isso que queremos.

Na Kubenkrãkenh, somos 140 pessoas e até hoje mantemos as tradições, os rituais e o dia a dia, do mesmo jeito que faziam nossos antepassados. Na minha família, por exemplo, somos 19. Moramos em três casas de palha, vizinhas. Mas também tem algumas casas de tijolos, construídas na década de 1980 por madeireiros, quando a Funai apoiava esse tipo de atividade. Desde aquela época, há quarenta anos, os madeireiros estão fora da nossa terra. A nossa aldeia fica perto do rio, que tem muitas cachoeiras, onde as crianças gostam de nadar. Até hoje saio para caçar e pescar junto com outros homens da aldeia. Caçamos e pescamos com as mesmas armas de outros tempos, como arcos, flechas, lanças e bordunas. Alguns indígenas também já usam a espingarda kuben. Para pescar, também batemos o timbó [cipó que contém uma toxina que atordoa os peixes. A técnica consiste em cortar pedaços do cipó e, no alto de uma cachoeira, macerá-los a golpes de bastões de madeira, em ritual que chega a durar a noite inteira. A toxina contamina os peixes rio abaixo, facilitando a pesca]. Minha esposa, assim como as outras mulheres, sabe fazer cestas, colares, braceletes e brincos, além das pinturas de corpo, que são tão tradicionais para o meu povo. À noite, acendemos uma fogueira e contamos histórias. Até hoje, dormimos em esteiras de palha. Também mantemos todas as festas e rituais do passado.

Por outro lado, muita coisa mudou. Segundo os nossos antepassados, o kuben [homem branco], chegou em 1939, dizendo que eram missionários. Na época, o novo povo morava na apiekrere [aldeia antiga], que fica numa área perto de onde estamos hoje. Tinha quase mil mebêngôkre nessa aldeia. Depois, na década de 1950, fomos nos dividindo, formando outras aldeias, ali na região do Xingu. Quando eu era pequeno, já tinha kuben na Kubenkrãkenh, que eram missionários, ensinando os mebêngôkre a aprenderem a língua dos brancos e, também, aprendendo a língua indígena. Na época, só o cacique mais velho podia ir para as cidades dos kuben, junto com a Funai. Os outros indígenas ficavam na aldeia. Na década de 1980, alguns homens começaram a poder sair para estudar, para passar um tempo com os kuben e, depois, voltar para a aldeia. Mas ainda hoje, tem muita gente, principalmente as mulheres, que nunca saíram de Kubenkrãkenh nem sabem falar a língua dos brancos. 

Na primeira vez que fui para a cidade de kuben, eu tinha de 17 para 18 anos. Fiquei em Belém e, depois, em Altamira, com missionários. Lá, estudei a língua dos brancos e ensinei os kuben a falar kayapó. No total, fiquei entre cinco e seis meses. Achei tudo muito diferente: os costumes, a comida, as casas. Também sentia muita falta do meu povo, das nossas festas, de caçar. Mas o cacique, na época, disse que era importante aprender com os kuben, para a gente manter a cultura do nosso povo. Só entendendo os kuben é que nós conseguiríamos resistir. E por isso, para manter o nosso povo protegido, que alguns de nós participamos da política. Em 1988, por exemplo, fui a Brasília pela primeira vez, participar de uma luta, de uma manifestação pela Constituição. Tinha muitos indígenas, de muitas tribos, de muitos povos lá. Dançamos, fizemos nossos rituais, discursamos e deu certo!

Desde então, fui outras sete vezes a Brasília, participar dessas lutas. A mais recente foi em abril, quando estive no Acampamento Terra Livre [mobilização nacional realizada anualmente, desde 2004]. Como povos guerreiros, nossa luta é para que todo mundo saiba dos ataques que os indígenas estão sofrendo hoje. É pelo nosso direito à terra e pelo direito de mantermos as nossas tradições. Nosso povo está na terra há muitos séculos, desde muito antes da chegada do kuben. Agora, o kuben quer roubar a nossa terra. Isso não é certo. Tudo aquilo que os povos indígenas conseguiram com a Constituição, em 1988, voltou a ser ameaçado pelo kuben. Mas nós não vamos deixar. A Floresta Amazônica é dos povos indígenas. Nós sempre estivemos aqui. 

Nos últimos anos, aumentou muito a pressão do kuben, para entrar com garimpo nas terras indígenas. Nunca [a pressão] foi tão forte assim. Os madeireiros também voltaram. Os kuben vêm com força, fazem proposta, oferecem de tudo. Em algumas tribos lá pra cima [no Alto Xingu], o garimpo conseguiu entrar. Dizem que acabou com tudo. O garimpo leva morte e destruição. Mas nós, os mebêngôkre, estamos firmes. Não vamos deixar o garimpo entrar, porque o garimpo mata o rio, traz doenças e tudo de ruim que tem no mundo dos kuben. Se o garimpo entrasse na nossa aldeia, por exemplo, as tribos que estão abaixo [no curso do rio Riozinho] também sofreriam. Nós vamos continuar protegendo a terra indígena e nossas tradições. O kuben não vai entrar na nossa terra. Como povos guerreiros, nós vamos lutar por isso.

Eu vim a Curitiba [entre 13 e 18 de maio] para conhecer o Museu [Paranaense] e para ver as imagens [do Acervo Vladimir Kozák] e os objetos do povo mebêngôkre. Eu fiquei muito feliz de ver fotos e filmes dos nossos antepassados, dos nossos guerreiros e de reconhecer a nossa terra ali. Também vi muita coisa que não conhecia: provei pinhão e caqui e dormi com dois cobertores, porque fez muito frio! Foi uma aventura. Vou levar tudo isso [cópias digitais do acervo] e mostrar na minha aldeia. Vou explicar tudo ao meu povo e tirar as dúvidas. Tudo isso é muito importante para a nossa história e para manter a nossa cultura. 

Eu tenho cinco filhos, [com idades entre] 14 e 22 anos. Quatro deles estudam, estão terminando o ensino fundamental. Eu tinha o sonho de ver algum deles fazendo faculdade, mas sei que é impossível. É muito difícil para um mebêngôkre, ainda mais para um da nossa aldeia, que é tão isolada. Nós não temos ajuda. Mas eu fico muito feliz que meus filhos vão poder voltar para Kubenkrãkenh e ajudar o nosso povo com o que aprenderam. Fico feliz porque meus filhos também querem proteger a terra indígena e as nossas tradições. Então, a nossa luta vai continuar. A floresta é terra dos índios e tem que continuar viva.

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