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    Matheus Ribeiro, um dos seguidores da Geração Jesus Cristo. Eles acreditam que a Lava Jato estourou "como fruto direto de nossas orações" FOTO: BRENO LIMA

questões político-religiosas

Não votarás

O primeiro pastor brasileiro condenado por intolerância religiosa apela à antipolítica para conquistar fiéis no Rio de Janeiro

Bruna de Lara | 26 dez 2017_08h00
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Em uma manhã de domingo de outubro passado, todas as cadeiras plásticas de um pequeno templo no Morro do Pinto, na Zona Portuária carioca, estavam ocupadas. Mais de cem homens e mulheres, muitos com bíblias e camisas pretas estampadas com a frase “Morrer por Deus, sim, pela pátria, nunca”, ouviam atentamente o homem atrás do púlpito branco. A pregação era intensa. Em pouco mais de quarenta minutos, o pastor Tupirani da Hora Lores, líder da Igreja Geração Jesus Cristo, deixou clara a linha principal de seu credo: o ódio à política, às leis e ao sistema judiciário. “Se eu tivesse uma metralhadora, botaria os juízes e promotores em fila”, anunciou aos berros o pastor. À sua frente, a reprodução em gesso de duas mãos em prece – unidas, curiosamente, por meio de algemas – decorava o púlpito. À sua esquerda, uma placa de acrílico exibia o lema que seus seguidores vêm levando a muros e túneis do Rio de Janeiro: “Bíblia sim, Constituição não.”

Desde meados de agosto, o slogan da igreja vem aparecendo em bairros como Jardim Botânico e Barra da Tijuca, e nas cidades de Niterói e Rio das Ostras, grafitado em grandes letras pretas de estêncil. Bancadas pelos fiéis, as pichações são feitas de madrugada “para evitar problemas”, disse o pastor à piauí. Ele explicou que a ideia da transgressão foi uma “revelação de Deus”, rapidamente acatada por cerca de trinta seguidores – ele só conseguiu apontar três pichadores, porém, mesmo em meio à multidão de fiéis que conversava após os cultos.

Presença recente nos muros fluminenses, o bordão começou a ser usado alguns anos atrás, depois de o pastor e Afonso Henrique Alves Lobato, um de seus fiéis, se tornarem, em 2009, os primeiros presos por intolerância religiosa no Brasil. Na época, uma série de vídeos e sermões com ofensas a diferentes credos rendeu a Tupirani dezoito dias na carceragem da Polinter da Pavuna, bairro do subúrbio carioca. Três anos depois, veio a condenação (pagamento de dez salários mínimos a entidade beneficente e prestação de serviços comunitários) e, atualmente, o caso aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal. Desde agosto, está sob responsabilidade do ministro Edson Fachin.

A reprodução de duas mãos em prece, unidas por algemas, decora o “Templo Pós-Prisão” – a igreja criada por Tupirani Lores, condenado por intolerância religiosa em 2012
A reprodução de duas mãos em prece, unidas por algemas, decora o “Templo Pós-Prisão” – a igreja criada por Tupirani Lores, condenado por intolerância religiosa em 2012 FOTO: BRENO LIMA

As pichações contra a ordem legal são a mais nova tática de Tupirani para conquistar atenção para seus discursos. Mesmo antes da prisão, a conduta agressiva da Geração Jesus Cristo já atraía os holofotes por meio de ações que abraçavam a intolerância. A igreja se tornou manchete pela primeira vez em junho de 2008, quando Afonso e outros três jovens invadiram e depredaram o Centro Espírita Cruz de Oxalá, no Catete, Zona Sul do Rio, depois de insultarem um grupo de frequentadores.

Libertado do confinamento, o pastor construiu a atual sede do ministério e a batizou sugestivamente de “Templo Pós-Prisão”. Ali, as pregações de Tupirani, antes focadas em passagens bíblicas (geralmente, resultando em mensagens de ódio) passaram a ter como foco a revolta com o período atrás das grades. A data de sua prisão foi transformada pela igreja no “Dia do Pastor Perseguido” (19 de junho), e a campanha da Bíblia versus Constituição foi criada para denunciar a “injustiça das leis” e o “complô” no Ministério Público que, para ele, o tornaram o primeiro pastor preso pela “Ditadura Democrática no Brasil”. 

 

Autoproclamado como o último Elias, profeta bíblico radical que combatia a veneração de falsos deuses, o homem por trás das pichações na cidade tem passado a maior parte do tempo bradando contra políticos e instituições do Estado. “Não tem esse papo de que é lei”, disse aos fiéis durante o culto. “O panaca do Congresso que limpe o nariz com a lei.” Para quem é de música, os sentimentos nada republicanos são traduzidos em versos. Das dezoito canções da igreja cadastradas no site Letras, onze criticam o Judiciário, o Exército, o voto. “A minha geração pisou nos magistrados/Venceu as legiões, algema e delegado!/Exército e Marinha já estão irados/Diabo está fardado em nome do Estado/A ele eu não me curvo, Estado não é Deus/A Constituição não é problema meu!”, entoou o pastor naquele domingo, com voz desafinada e oscilante, acompanhado por um coro entusiasmado de fiéis e um adolescente desanimado na guitarra.

“Falo de política praticamente 24 horas por dia. Os políticos estão mostrando quem são e os fiéis sabem disso. Só enfatizo a questão”, disse Tupirani. Aos 51 anos, o pastor é um homem branco, barba bem-feita e cabelos grisalhos e bem alinhados. Atrás de um par de óculos retangulares de armação fina, seus olhos castanhos se apertavam a cada pergunta. “Tudo que está acontecendo agora no cenário político é fruto direto de nossas orações. Foi quando clamamos para Deus desenterrar toda a podridão dos políticos que a Lava Jato estourou”, disse, sem nenhuma modéstia.

Sua fúria contra os magistrados, chamados no culto de “raça maldita” e “desgraçados”, não o impedia de admitir que ele e seus discípulos – que respondiam com clamores de “Fogo neles!” –, andavam “orando muito pelo Sérgio Moro”. A postura beligerante contrastava completamente com a serenidade do pastor durante a entrevista. A aparente contradição faz parte da estratégia de Tupirani – segundo um pesquisador que se debruçou durante dois anos sobre a Geração Jesus Cristo para uma dissertação de mestrado. Sociólogo e antropólogo pela Universidade de São Paulo, Milton Bortoleto explica que o pastor, depois de preso e empurrado para o debate público, passou a buscar audiências mais amplas. “No culto, o discurso é de guerrilha. Com a imprensa, é mais moderado, porque ele quer se legitimar e construir a imagem da igreja como uma família”, comentou, em uma conversa no fim de novembro.

Minutos depois de afirmar que pastor político é “pastor canalha”, Tupirani passou a elogiar Marcelo Crivella, atual prefeito do Rio. “Se ele concorresse à Presidência, apoiaria que assumisse. Só não com o meu voto”, disse. Há anos sem votar, o líder religioso prega aos fiéis que não participem dos pleitos. Em um monólogo colocado no canal de YouTube da igreja, que reúne gravações das celebrações (transmitidas ao vivo por meio de três roteadores), Tupirani vocifera: “Quero deixar claro: se alguém vota, não se considere membro da Geração Jesus Cristo.” Apenas quem “vestir a camisa” da igreja, ele alerta, e se afastar dos perigos da política será salvo. A quem cogita contrariá-lo em 2018 e outros pleitos, ele avisa: “Na hora em que você precisar da Geração Jesus Cristo, eu vou te dizer: apartai-vos de mim, nunca te conheci.” Ou, como disse uma seguidora chamada Luciana Müller, em uma playlist temática da igreja com vídeos de 45 fiéis: “Recebemos uma ordem direta de Deus para não votar.”

Sentado em uma mureta com o cotovelo esquerdo apoiado numa Bíblia mantida sobre o joelho, Matheus Ribeiro, de 22 anos, narrou sem pressa sua desilusão com a Assembleia de Deus pela proximidade com a política – a denominação tem o maior número de representantes na Bancada Evangélica do Congresso. “As leis do Congresso são dispensáveis porque não foram elaboradas por Deus. Tudo que é necessário está na Bíblia”, justificou, enquanto o pai o esperava num carro com o slogan da igreja colado no vidro traseiro. Desde então, há dois anos, Ribeiro frequenta o ministério de Tupirani, convicto de que a saída para o caos político é um mundo governado pelas escrituras. “Deus não divide seu reino com ninguém.”

 

No dia 12 de agosto, Matheus tinha uma missão. Convocado por Tupirani e acompanhado por cerca de vinte outros integrantes de sua igreja, o jovem marchou rumo ao Arpoador, na Zona Sul do Rio, para participar da ação mais agressiva da igreja desde a depredação do Centro Espírita Cruz de Oxalá. Ao mesmo tempo que, a poucos quilômetros dali, centenas de cariocas se reuniam em um ato de solidariedade a Mohamed Ali, refugiado sírio hostilizado em Copacabana alguns dias antes, o grupo da Geração Jesus Cristo, todo vestido de preto, gritava e empunhava cartazes contra os muçulmanos. “O país é laico, eu não sou terrorista. Sou cristão”, informava uma das cartolinas, levada à orla por um homem de semblante aborrecido.

Ainda que despreze qualquer forma de governo, quando se trata de intolerância, Tupirani é democrático. “Discrimino todas as religiões”, afirmou, à época de sua prisão. Insulta, inclusive, outras denominações evangélicas. Caracterizada pelo pastor como “a maior fonte de idolatria na sociedade brasileira” e tema da canção Repúdio Universal, a Igreja Universal do Reino de Deus é alvo frequente de seus ataques. Em um vídeo de 2012, Tupirani chega a atear fogo no livro O Bispo, de Edir Macedo – fundador da Universal e tio de Crivella. A hostilidade é também estratégica. Pouco representativa no movimento evangélico, formado em sua maioria por denominações moderadas, a Geração Jesus Cristo sempre tentou se destacar por meio de seu extremismo singular, de acordo com Milton Bortoleto.

Pichação no Jardim Botânico, feita pelos seguidores de Tupirani
Pichação no Jardim Botânico, feita pelos seguidores de Tupirani FOTO: BRENO LIMA

A radicalização política em anos recentes permitiu que a igreja se tornasse mais barulhenta – entram aí as pichações e os atos organizados que agora chegam às ruas. “É muito cômodo ficar só aqui na igreja, mas isso não nos interessa. Se Deus tiver uma guerra, pode contar conosco”, disse o pastor, com tranquilidade, sobre o ato no Arpoador. A cena política conturbada favorece a retórica extremista, geralmente com a promessa de retomada de modos de vida que começam a se esvair. É uma lógica semelhante, mesmo que em proporções muito diferentes, à das manifestações que precederam o golpe militar de 1964, lembra Bortoleto, quando setores conservadores realizaram as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que diziam combater a “ameaça comunista”, e contribuíram para restringir liberdades individuais.

A descrença nas instituições (que não para de crescer no Brasil desde 2013, segundo estudo da Fundação Getulio Vargas divulgado em outubro) abre brecha para pregadores como Tupirani desvalidarem as leis para legitimar discursos de ódio. “Nosso objetivo é que o que temos a dizer seja considerado crime, racismo e homofobia. É claro que sou criminoso perante as leis dessa raça do Congresso”, argumentou o pastor nos primeiros minutos de seu culto – usando como exemplo, não à toa, uma das instituições de que os brasileiros mais suspeitam (apenas 7% dizem confiar no Congresso Nacional, segundo a pesquisa da FGV).

Apesar das falas de desapreço pela lei, é dentro do protocolo legal que Tupirani tem respondido à sua condenação. Ele se recusa a cumprir a pena – “seria admitir culpa” –, mas recorre a instâncias superiores desde 2012. Para o sociólogo Bortoleto, seu julgamento “sem dúvidas” vai acabar em uma nova condenação. “Mas não é problema para ele. Igrejas evangélicas vão encarar o caso como um ataque à liberdade religiosa e tentarão transformá-lo em mártir. É isso que ele quer”, arrisca. “O Tupirani está louco pra ser preso de novo.”

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