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    Atividade do projeto TTT na Cracolândia, em São Paulo Foto__Victor Moriyama

questões urbanas

Nas ruas de São Paulo, a luta contra o crack começa nas artes

Batalha de rima no centro paulistano é a porta de entrada para dependentes químicos que estão em busca de casa, trabalho e tratamento contra a droga

Victor Moriyama, de São Paulo | 27 out 2024_09h58
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É meio-dia de uma quinta-feira em julho no Centro de São Paulo. Um grupo de pessoas composto por palhaços, cantores, dependentes químicos e produtores culturais caminham cantando num microfone plugado a uma caixa de som improvisada num carrinho de supermercado. Descem a Avenida Duque de Caxias embalados pelo ritmo do funk e do trap declamando poemas e canções de protesto contra um sistema que os oprime. Em frente a Sala São Paulo, policiais da Guarda Civil Metropolitana (GCM) fazem uma abordagem rotineira em dois homens negros que cumprimentam, de mãos para trás, o cortejo musical. A atividade se chama Slamis, um show de calouros que acontece há quatro anos todas as quintas-feiras no mesmo horário no coração do “fluxo”, como é popularmente conhecida a maior concentração de usuários de crack a céu aberto na América Latina.

Inspirado nos Slams, batalha de rimadores feita na rua, o Slamis foi criado em 2020 pela dupla de palhaços Andréa Macera, artista cênica, e Flávio Falcone, palhaço e psiquiatra atuante há uma década no território da Cracolândia. Qualquer pessoa pode chegar e mostrar seu talento, ou sua insatisfação através da música, da poesia, da dança ou das artes cênicas. Ao final do espetáculo com duração de aproximadamente duas horas, há um júri popular que decide os três vencedores daquele dia, que receberão 50 reais como prêmio. A atividade é como uma miragem de curta duração que suspende por algumas horas a energia densa e violenta que impera no fluxo. Um respiro para centenas de pessoas mergulhadas em suas paranoias individuais vivendo uma realidade paralela na cidade.

Naquele dia, o Slamis foi impedido de entrar no fluxo por policiais da GCM, a Guarda Civil Metropolitana, alegando situação de risco durante a limpeza urbana rotineira que acontece na região. “Como podemos ser impedidos de andar pelo território?”, questiona Falcone. O grupo então se direciona ao revitalizado Parque Estação da Luz, onde realiza o show de calouros sem interrupções e com baixa participação do público-alvo. A percepção de quem frequenta o local é de que as operações policiais na região se intensificaram neste ano eleitoral. Procurada pela piauí, a Secretaria de Segurança Pública não informou quantas operações policiais foram feitas em 2024. 

O Slamis é a porta de entrada para o projeto Teto, Trampo e Tratamento, o TTT, inspirado no programa Braços Abertos, instituído por Fernando Haddad (PT) entre 2014 e 2016, quando o atual ministro da Fazenda foi prefeito da capital paulista, em uma tentativa de reduzir os danos causados à população vulnerável na região da Cracolândia. Falcone, que atuou como psiquiatra na administração petista, explica que o TTT elege a arte como forma de estabelecer o vínculo com os usuários. “O vínculo é a coisa mais importante para sustentarmos os três pilares do projeto. O Slamis mobiliza a pulsão de vida deste grupo de pessoas que são chamadas por parte da sociedade de zumbis, como se não estivessem mais vivas.”

Segundo pesquisa da Open Society Foundation (2017), o programa De Braços Abertos obteve resultados expressivos: 84% dos participantes conseguiram emitir documentos de identidade, algo fundamental para ter acesso a benefícios sociais, e 73% ingressaram nas frentes de emprego oferecidas pelo programa. Além disso, ao menos 65% dos usuários atendidos diminuíram o uso após participarem do programa. A iniciativa, no entanto, foi encerrada por João Doria (PSDB) assim que o tucano assumiu a prefeitura, em janeiro de 2017. Na ocasião, ele avisou que a gestão municipal faria dobradinha com o governo do estado no programa Recomeço, de 2013, cuja proposta principal era auxiliar os dependentes químicos e seus familiares numa vida plena e saudável, integrada à sociedade. 

Foto_Victor Moriyama
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Dados da Prefeitura de São Paulo divulgados em março deste ano mostram que o fluxo na Cracolândia aumentou nos períodos da manhã e da tarde, em relação ao mesmo período do ano passado. No matutino, o crescimento foi de 17,4%, de 442 para 519 pessoas. Já no turno vespertino o salto foi de 44,3%, de 503 para 726 usuários. Desde janeiro de 2023, a prefeitura paulistana monitora a região captando imagens aéreas por drones. 

A noção de Teto dentro do TTT vem do conceito Housing First (moradia primeiro), criado nos Estados Unidos no início dos anos 1990 para população em situação de rua com distúrbios mentais, e compreende que é papel do Estado prover moradia digna e acolhimento a esta parcela populacional. “Estou no fluxo há 23 anos. Morando na calçada. Passei uns meses trabalhando 4 horas por dia varrendo a rua no programa De Braços Abertos, e só agora consegui uma vaga no TTT”, lamenta Simone de Souza, 39 anos. Limitados por um orçamento reduzido proveniente de patrocinadores, o TTT trabalha com um grupo de 20 a 25 pessoas, instalado em quartos, agora compartilhados, em um hotel da região da Luz. “Ter um teto fez toda diferença na minha vida. Ninguém quer dormir na rua nesse frio, tomando esculacho da polícia e perdendo os pertences para o rapa todo dia. Muita gente queria estar onde estou mas não pode, o projeto não tem estrutura para receber mais pessoas” diz Vanilson Santos Conceição, 37 anos, conhecido como Jamaica, que há mais de dezessete anos vive no fluxo e é um dos primeiros beneficiados pelo projeto. Não há regras para horários de entrada e saída dos participantes.

Importantes para o programa social, esses hotéis também estão na mira da polícia. Iniciada em junho do ano passado, a quinta fase da operação da polícia civil batizada de Downtown mirou estabelecimentos da região, que segundo as forças policiais, eram utilizados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) para operar o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro na Cracolândia. Usuários do TTT foram jogados na rua. “Eu estava dormindo pelada, o cara já me revistou logo cedo enquanto eu dormia. E não tinha policial feminino. Não tá certo isso aí, né?”, afirmou uma das usuárias. Em nota oficial, a assessoria da Polícia Civil informou à piauí que foram identificadas 28 hospedarias envolvidas no que eles chamaram de “Ecossistema Financeiro do Tráfico na Cracolândia” com saldo de 14 presos, 26 contas bloqueadas e 27 mil reais apreendidos. Desde o ano passado, as operações policiais e inspeções realizadas pela Subprefeitura da Sé na região têm se intensificado para fiscalizar as hospedarias. Segundo investigação da Polícia Civil, a aquisição dessas hospedarias pela organização criminosa fazem parte de um plano para mover o fluxo da Cracolândia sem comprometer a logística do tráfico. 

Após a operação policial, os usuários foram transferidos para uma nova acomodação, um hotel localizado na Rua dos Gusmões, onde o pernoite sai por volta de 30 reais. Agora, as cerca de vinte pessoas dividem um número reduzido de quartos num extenso corredor do penúltimo piso. Antes havia um cômodo para cada um. Há dois banheiros no final do pavimento, separados por gênero. O local é próximo ao Grande Hotel Bristol, um ícone das hospedarias próximas à Estação da Luz que pertenciam aos barões de café e posteriormente acolheram trabalhadores e comerciantes durante o boom da industrialização no século XX. A urbanização da região se deu, desde o princípio, a partir de um viés popular com a instalação da rodoviária e a consolidação de cortiços, pensões, hotéis e hospedarias que abrigava a mão de obra recém-chegada. A percepção da opinião pública sobre a região como um território marginalizado se cristaliza nos anos 1950 com a proliferação da prostituição, batidas policiais e detenções, surgimento da população transsexual e consumo de drogas. Nas décadas seguintes, o local se tornaria popularmente conhecido como Boca do Lixo, polo cinematográfico símbolo de resistência durante a ditadura militar. 

O Bristol hoje está ocupado pela Frente de Luta por Moradia, a FLM, organização que há anos tem pautado o debate sobre habitação com função social no Centro da cidade. Nas últimas três décadas, consolidou-se na Cracolândia uma dinâmica de desvalorização e consequente valorização do território na medida em que desapropriações abaixo do valor de mercado dão espaço para novas Parcerias Público-Privadas com retorno de investimento garantido pelo Estado às empresas parceiras. Para Aluízio Marino, coordenador do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo , este conceito de revitalização não se sustenta. “Precisamos de um serviço associado à moradia. Enquanto não pensarmos nesse sentido, veremos mais do mesmo. A nova sede administrativa do governo do estado vai despender um gasto gigantesco num momento de crise social, habitacional e climática extrema. Será usado mais ferro, mais cimento, mais vidro para construir novos prédios quando na verdade as cidades precisam se adequar à conjuntura climática”, afirmou ele à piauí.

Seu exemplo está relacionado ao investimento que beira os 4 bilhões de reais prometido pelo governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos), que aposta na construção da nova sede do governo na região como ferramenta para dispersar a Cracolândia. O projeto da Opera Quatro, do arquiteto Pablo Chakur, deverá ficar pronto em 2029 e prevê a desapropriação de ao menos 230 imóveis, além da realocação do Terminal Princesa Isabel. Marino acredita que a estratégia seja similar a outras em curso, que visam transferir o Fluxo de local. “Quando você faz qualquer tipo de movimentação do fluxo usando força e repressão, o que temos como resultado é a dispersão e multiplicação de novos espaços de consumo do crack. Segundo o Datafolha, existem hoje na cidade cerca de setenta minicracolândias.” A Secretaria Municipal de Segurança Urbana aponta 72 cracolândias pela cidade.

Num território em permanente disputa política, ter um teto é o primeiro passo para a redução do consumo de crack. Nele, os beneficiários do TTT ficam o tempo necessário até conseguirem sustentar financeiramente as diárias cobradas pelos hotéis da região. “Não se para com o vício da noite para o dia. Mas estando no projeto, o cara vai balizando o uso da droga, não é igual quando estamos na rua. Aqui tem um teto, tem um apoio, você não está mais à toa, tem pessoas por você, isso conta muito para mim”, reflete Jamaica.

O segundo eixo de atuação do TTT é o trampo. Giordano Magri, um dos coordenadores do TTT, afirma que o projeto busca uma parceria com o Programa Operação e Trabalho (POT) da Prefeitura de São Paulo, que possibilitará a criação de uma escola de artes para formação, profissionalização e geração de renda voltada às pessoas que participam do projeto. Os cursos devem começar nos próximos meses e terão carga horária de 30 horas semanais divididas em várias modalidades artísticas: cênicas, plásticas, música e atividades meios da indústria cultural como figurino, montagem e produção. Após dois anos de formação, os frequentadores poderão sair da iniciativa com um registro profissional para trabalhar em setores da indústria cultural. 

Os dois eixos – Teto e Trampo – desembocam em um terceiro aspecto: o Tratamento. Aqui, o conceito central é a redução de danos. Ela é pautada em um conjunto de estratégias vinculadas aos direitos humanos que visam melhorar a qualidade de vida dos usuários a partir da redução gradual do consumo e o restabelecimento da dignidade e do vínculo com a sociedade. A proposta vai na direção contrária da repressão e do uso da força, como argumenta o psiquiatra Dartiu Xavier. “As pessoas já aprenderam que as medidas coercitivas não resolvem o problema dessa população excluída, pelo contrário, elas agravam os problemas sociais, porque quem está em situação de rua precisa de acolhimento.”

Após estabelecerem um vínculo com as pessoas atendidas pelo projeto, o TTT dá início aos processos de obtenção dos documentos de identidade de cada indivíduo, que na maior parte dos casos foram perdidos pelas circunstâncias da vida na rua. A falta de documento de identificação impede que as pessoas acessem as políticas públicas destinadas a elas, intensificando sua situação de vulnerabilidade.

Neste domingo (27), a abordagem para o problema opõe dois candidatos que disputam o segundo turno da eleição paulistana. Ricardo Nunes (MDB), que tenta a reeleição, aposta no modelo encampado pelos agentes de saúde que atuam no território, dos dependentes químicos para o tratamento oferecido nas clínicas parceiras do município. Em seu plano de governo, a palavra Cracolândia aparece duas vezes, e só em uma delas há menção sobre uma política voltada à região. Ele diz que adotou “uma abordagem multisetorial, combinando ações articuladas de saúde, assistência social e direitos humanos”. Diz ainda que o investimento e o aumento de efetivo, “combinando tecnologia, valorização profissional e investimento em infraestrutura” são ações integradas para “reduzir ainda mais a criminalidade, a desordem urbana e a perturbação do sossego” na região. 

“Há uma ênfase nas ações policiais que ainda reflete uma visão militarizada de segurança pública fortemente influenciada pelo regime autoritário brasileiro”, destaca Marcelo Nery, coordenador de Transferência de Tecnologia do NEV. Para ele, é preciso compreender a complexidade dos fatores que levam as pessoas a uma situação de vulnerabilidade nas ruas, que muitas vezes se baseia numa realidade de abuso e violência doméstica intrafamiliar que se intensificaram na pandemia de Covid. “A ausência de políticas públicas eficazes nas áreas de habitação, saúde mental e assistência social agrava a vulnerabilidade das pessoas. É identificável uma negligência histórica do estado governado pela direita, ou uma ação feita mais por conveniência do que baseada em diagnóstico e evidência, o que resulta numa fragmentação das políticas de intervenção na cracolândia, o que tende só a piorar a situação.”

Muitos dependentes químicos possuem distúrbios mentais que se agravam com o consumo de drogas. Dados recentes numa pesquisa feita pela Unifesp apontam que 39% das pessoas na cracolândia estão no local há pelo menos dez anos, e 52% há pelo menos cinco anos. “Muitas pessoas naquele lugar observam, compreendem e sentem que lá existe alguma forma de coesão, de segurança social, uma vez que ali naquele local há pessoas que compartilham das mesmas dificuldades”, reflete Nery.

O oponente de Nunes, o psolista Guilherme Boulos, apresenta um conjunto de cinco ações específicas em seu plano de governo. Entre elas está a criação de um gabinete integrado focado na Cracolândia, submetido ao prefeito, com as Secretarias de Segurança Urbana, Saúde, Assistência Social e Direitos Humanos. O plano prevê também os CAPS móveis, no qual psiquiatras, assistentes sociais e psicólogos farão buscas ativas no território para oferecer acolhimento, moradia e uma posterior geração de renda atrelada ao tratamento de saúde. Ele defende ainda a instituição de uma inspetoria especial de segurança urbana dedicada à região formada pelos bairros da Luz, Campos Elíseos e Santa Ifigênia, também interligando saúde, segurança, bem-estar social e direitos humanos. Essa inspetoria, segundo Boulos, atuará em conjunto com as forças de segurança do governo estadual para combater irregularidades na região. 

“O Estado precisa dar mais atenção para o povo adicto da droga, dar mais apoio: ter psicólogo, abrir frente de trabalho, geração de renda. A gente precisa ocupar a mente, ter oficina, uma cooperativa, ter aulas, algo para desenvolver a mente. Se você vai parando com o crack mas não tem nada para colocar no lugar, o cara volta de vez para pedra”, finaliza Jamaica. 

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