Ilustração: Carvall
Negar racismo não reduz mortes de negros
Risco de um negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,6 vezes o de um não negro
Neste início de 2022, o Brasil discute três casos de violência letal contra pessoas negras. Todos eles foram noticiados pela imprensa e tiveram muita repercussão nas redes sociais. No primeiro deles, em 24 de janeiro, o cidadão congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi morto em um quiosque da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ele foi brutalmente espancado por diversos homens após cobrar pagamentos atrasados por seu trabalho. O Ministério Público denunciou três agressores, presos desde 2 de fevereiro, por homicídio triplamente qualificado.
Na noite de 2 de fevereiro, câmeras de segurança registraram Durval Teófilo Filho ser morto com três disparos de arma de fogo por Marco Aurélio Alves, sargento da Marinha do Brasil, em frente ao condomínio em que ambos moravam, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Em seu depoimento, Alves justificou que havia confundido Teófilo Filho com um assaltante. O sargento foi inicialmente autuado por homicídio culposo, isto é, como tendo agido sem a intenção de matar. Posteriormente, a Polícia Civil o indiciou por homicídio doloso duplamente qualificado, por motivo torpe, isto é, abjeto, e sem chance de defesa da vítima. Após denúncia do Ministério Público, Alves agora é réu.
No dia 14 de fevereiro, Hiago Macedo, de 21 anos, que vendia balas em frente ao Terminal das Barcas em Niterói, também na região metropolitana do Rio, foi morto com um disparo de arma de fogo por um policial militar que estava de folga após uma discussão. Imagens de câmeras de segurança mostraram que não houve ação criminosa ou violenta por parte de Hiago. O policial foi preso e indiciado por homicídio doloso qualificado por motivo fútil, ou seja, insignificante.
O que esses casos têm em comum? As vítimas são homens negros e os casos se deram na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em um deles, a vítima, imigrante, foi morta por civis, por espancamento. Os outros dois foram mortos por armas de fogo por agentes estatais fora de serviço.
Cenas como essas, infelizmente, não são raras no Brasil, um país que traz na sua formação política, econômica, social e cultural a ferida sangrenta e danosa da concordância por séculos da exploração da escravização humana. A desigualdade racial existente no país se expressa de maneira dramática quando olhamos para o cenário da violência.
A maior parte das vítimas da violência letal no Brasil são negras, isto é, pretas ou pardas. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, pessoas negras foram 76,2% das vítimas de mortes violentas intencionais. Esse percentual atinge 80% quando consideradas as vítimas entre 15 e 19 anos. Em 2020, as pessoas negras representaram 78,9% das vítimas de intervenções policiais, enquanto 62,7% dos policiais assassinados eram negros.
O Atlas da Violência demonstra que o risco de um negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,6 vezes maior do que a de um não negro. Além disso, esse quadro de desigualdade é persistente e se aprofunda no tempo. Enquanto a taxa de homicídio de negros cresceu 1,6% entre 2009 e 2019, a taxa de homicídio de não negros caiu 33% no mesmo período.
É importante ressaltar que a maior parte dessas mortes não é decorrente de violência racial, como poderíamos compreender crimes caracterizados pelo ódio nutrido pelos autores à população negra. Contudo, estão relacionadas com o que se convencionou chamar de racismo estrutural. Isto é, uma lógica histórica e complexa que está entranhada em percepções individuais, no funcionamento das instituições e no padrão das políticas públicas. O contexto policial é particularmente ilustrativo disso.
Entre policiais é comum a afirmação de que os criminosos são passíveis de reconhecimento por possuírem idade, cor, gírias, vestimenta, comportamentos e endereço pré-definidos. O chamado “tirocínio” policial, que seria, simplificadamente, a capacidade de distinguir criminosos do restante da população, associa majoritariamente a figura do suspeito ao jovem, pobre, negro e periférico, fazendo com que pessoas com esse perfil sejam abordadas, presas e vitimadas letalmente com uma frequência bem maior do que as de outros perfis.
Pesquisa coordenada pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC/UFSCar) traz evidências nesse sentido. Em Minas Gerais, entre os anos de 2013 e 2018, o risco de pessoas negras serem presas em flagrante foi de 2,3 a 3 vezes maior do que o de pessoas brancas. Entre 2013 e 2017, o risco de pessoas negras serem mortas em ações policiais foi entre 4 e 5 vezes maior do que a de pessoas brancas. Já no estado de São Paulo, entre 2014 e 2017, o risco de pessoas negras serem presas em flagrante foi de 2,2 a 2,4 vezes o de pessoas brancas, enquanto o risco de pessoas negras serem mortas em ações policiais, em 2018, foi 2,8 vezes o de pessoas brancas. Na cidade de São Paulo o risco de morte para pessoas negras foi sete vezes o de pessoas brancas.
Seja por ação ou omissão, a atuação do poder público não tem conseguido reverter o quadro de desigualdade racial presente nos mais diversos aspectos das políticas públicas no país, perpetuando a situação de vulnerabilidade à violência letal na qual se encontra a população negra. Bens sociais que poderiam funcionar como fatores protetivos contra a violência, como educação, habitação, saúde, trabalho e renda, também são desigualmente acessados pela população negra.
Tais fatores nos ajudam a compreender os casos que abrem e motivam este artigo, principalmente os crimes contra Durval e Hiago, que tiveram como autores agentes de forças de segurança.
As estratégias de não enfrentamento do racismo estão sempre a negar os fatos racializados. Isso alcança a imprensa, os Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, bem como toda a estrutura de educação nacional. Assim, há sempre a tentativa de tratar casos de xenofobia, LGBTfobia e racismo como algo isolado e pontual, mesmo quando está evidente o centro da questão. O racismo estrutural e suas ramificações não são fatos isolados.
É necessário e oportuno adotar cada vez mais políticas de direito antidiscriminatório, para usar um termo do professor Adilson Moreira.
A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, recentemente passou a ter status jurídico de Emenda Constitucional no país. Esta convenção foi aprovada em 2013 em Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Guatemala. Desde então, tramitou na institucionalidade brasileira, tendo sido aprovada na Câmara em 2020, no Senado em 2021 e promulgada pelo presidente da República em janeiro de 2022. O decreto do poder executivo consiste na ratificação brasileira ao texto aprovado pela OEA, quase dez anos depois.
Ao se tornar signatário do acordo internacional, o país se compromete a proteger todo ser humano contra discriminações e intolerâncias por meio de políticas públicas, educacionais, trabalhistas ou sociais que contribuam para a prevenção, proibição, eliminação e coerção de atos e manifestações de racismo, discriminação e formas correlatas de intolerância com base em raça, cor, etnia, origem, sexo ou orientação sexual. Além de oferecer definições para discriminação racial, racismo e intolerância, o acordo estabelece que o estado parte deve indicar uma autoridade central responsável pelo impulsionamento e coordenação das ações. É fundamental que todos cumpram o que foi pactuado e tão tardiamente formalizado. Trata-se de uma excelente oportunidade para que o Brasil avance nesta questão.
Sociólogo e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Sociólogo e tenente-coronel da reserva da Brigada Militar do Rio Grande do Sul
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí