Suzana Herculano-Houzel embarca nos próximos dias para Nashville, no Tennessee, onde vai assumir o posto de professora dos departamentos de Psicologia e Ciências Biológicas da Universidade Vanderbilt. Frustrada com as condições precárias para a prática da ciência no Brasil, a pesquisadora carioca preferiu trabalhar num ambiente com mais recursos no qual poderá se dedicar a suas atividades de pesquisa.
Herculano-Houzel escolheu piauí para se pronunciar em público pela primeira vez sobre sua decisão, comunicada algumas semanas atrás ao Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, ao qual é vinculada. No artigo Bye-bye, Brasil, publicado na edição de maio da revista, que começa a circular nesta quarta, dia 4, ela enumera os fatores que motivaram sua decisão de deixar o país. Assinantes podem ler o artigo antecipadamente.
Como pesquisadora da UFRJ, a neurocientista conduziu estudos que ajudaram a entender do que são feitos os cérebros de dezenas de espécies de mamíferos, a humana inclusive. Em 2005, desenvolveu com o colega Roberto Lent um método que simplificou a contagem do número de células do cérebro. A técnica permitiu recalcular a quantidade de neurônios do cérebro humano – 86 bilhões – e elucidar diferenças de composição entre os cérebros de diferentes espécies. Num trabalho posterior, de grande repercussão na imprensa internacional, Herculano-Houzel e sua equipe defenderam a hipótese de que o domínio do cozimento de alimentos permitiu que ancestrais do Homo sapiens aumentassem a ingestão de calorias de forma a sustentar um cérebro maior, conforme relatado no perfil da neurocientista publicado pela piauí.
Mais recentemente, a pesquisadora propôs, em trabalho escrito a quatro mãos com o físico Bruno Mota, uma fórmula que explica como se dobra o córtex cerebral, uma questão importante que ainda estava em aberto na neurociência. Num artigo para a piauí em que relatou a descoberta, Herculano-Houzel festejou um estudo 100% brasileiro emplacado na revista Science. Mas reclamava de obstáculos para o estudo, como a burocracia para a importação de reagentes e financiamentos prometidos e não honrados. “Cheguei ao limite da minha cartola”, dizia.
Quando a situação financeira de seu laboratório ficou insustentável, em 2015, Herculano-Houzel empenhou seu prestígio nas redes sociais e lançou uma campanha de financiamento coletivo para continuar tocando as pesquisas de seu grupo. Em dois meses de campanha, arrecadou 113 mil reais, possivelmente a maior soma já levantada por cientistas brasileiros num crowdfunding. Os recursos permitiram bancar o laboratório por cinco meses.
As contrariedades só se agravaram desde então. No artigo em que justifica sua partida, Herculano-Houzel critica a derrocada do sistema de financiamento da ciência pelos governos federal e do estado do Rio de Janeiro e a carreira engessada e sem estímulos dos pesquisadores contratados como funcionários públicos em universidades federais. “Não importa o quanto um cientista produza, o quanto se esforce, quanto financiamento ou reconhecimento público traga para a universidade – o salário será sempre o mesmo dos colegas que fazem o mínimo necessário para não chamar a atenção”, escreve.
Além de seu trabalho como pesquisadora, Herculano-Houzel também tem atuação destacada na divulgação científica: é colunista da Folha de S.Paulo, já escreveu para a revista Mente e Cérebro e teve um quadro no Fantástico, da Rede Globo, e tem sete livros publicados para o grande público. O mais recente deles – The Human Advantage – acaba de sair pela MIT Press e não tem data prevista de publicação no Brasil.
No ano passado, ela recebeu um convite para se tornar pesquisadora da Universidade Vanderbilt, numa articulação coordenada por seu colaborador Jon Kaas, um antigo admirador de seu trabalho. A oferta incluía salário “confortável”, estabilidade, um laboratório muito maior que o que ela tinha na UFRJ e o apoio de uma máquina administrativa eficaz.
Numa conversa recente, a neurocientista deu um exemplo da eficiência e pouca burocracia da sua nova universidade. Ela solicitou a compra de um monitor curvo especial para visualizar imagens de microscópio, no valor de 1 100 dólares. “Dez minutos depois recebi um e-mail com a confirmação da compra”, contou, com ar incrédulo. No Brasil, o pedido provavelmente sequer teria chegado à fase de licitação.
O artigo de Herculano-Houzel desenha um quadro muito pessimista do ambiente para a prática da pesquisa no Brasil. É possível que desperte reações acaloradas de alguns colegas – e é desejável que suscite a discussão crítica de alguns pilares sobre os quais se assenta o sistema brasileiro de ciência, tecnologia e inovação.
O marido de Herculano-Houzel viajou para Nashville no último sábado. Os dois cachorros da família embarcam esta semana. A neurocientista aguarda a emissão do visto para definir a data de sua partida. Seu contrato com a Universidade Vanderbilt começa a valer no dia 16 de maio.