Gal Costa: cantora morreu nesta quarta-feira aos 77 anos Reuters/Folhapress
No canto de Gal Costa, muitos Brasis
Do paraíso tropical à violência brasileira, arte multifacetada da cantora apresentou o país a si mesmo
“Não fui conhecer uma pessoa, e sim um canto”, me contou certa vez Caetano Veloso sobre a menina que disseram que cantava bem e que ele foi conhecer na galeria Bazarte, na Salvador de 1963. A menina era Gal Costa.
Morta neste 9 de novembro, aos 77 anos, Gal foi, para além de uma pessoa, um canto. Um canto ao qual o Brasil foi apresentado e que apresentou muito do Brasil a si mesmo. Sua voz carregava a beleza cristalina, pura e bucólica do paraíso tropical fundado em Pero Vaz de Caminha e perpetuado em Ary Barroso. Mas trazia também a modernidade cool que nos legou a Semana de 1922, a arquitetura de Niemeyer, a bossa nova. Assim como a língua popular manifesta em novelas e FMs. E, por fim, a violência que constitui o país desde 1500, que fincou pé ao longo da ditadura instaurada em 1964 e que encontrava representação e resposta na agressividade gritada de sua garganta.
Seu canto multifacetado, portanto, reflete uma nação multifacetada. Sobretudo a que ela testemunhou pulsar ao longo de sua vida: a experiência de uma nascente comunidade brasileira irmanada pelas ondas da Rádio Nacional; a revelação de João Gilberto ampliando essas fronteiras; a retração da ditadura; a distensão da redemocratização; a estabilidade político-econômica entre os anos 1990 e 2000; as convulsões que levaram a extrema direita ao poder. O país movia as cordas vocais de Gal e se movia com elas.
Gal surge como artista em 1964 na Bahia cosmopolita que, poucos anos depois, daria ao Brasil a Tropicália. Ela fazia parte de um grupo de jovens artistas locais (Caetano, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé, entre outros) que pensavam o país e o mundo de então pela lente da canção popular e se reuniram em espetáculos no Teatro Vila Velha. Os nomes dos shows, Nós, por exemplo e Nova bossa velha, velha bossa nova, revelavam a intuição de serem manifestações específicas de algo maior, uma amostra de vozes inseridas na corrente de uma tradição e de um movimento que ultrapassavam os limites da Bahia. Estavam certos.
O primeiro disco de Gal, Domingo, assinado por ela e Caetano e lançado em 1967, fotografava a inocência de um Brasil no qual “qualquer canção, quase nada/ vai fazer o sol levantar”. A despeito de três anos passados, a impressão era de que a ficha de 1964 ainda não havia caído com todo seu peso, e a afirmação da beleza pura ainda era uma possibilidade para a canção. Ali, a voz de Gal, precisa e tépida, se postava nesse lugar: a afirmação da beleza pura.
Naquele mesmo ano, o histórico festival no qual foram apresentadas, entre outras, Roda viva, de Chico Buarque, Domingo no parque, de Gil, e Alegria, alegria, de Caetano, inauguraria outro momento para o país. Consequentemente, para Gal.
Entre 1967 e 1968, uma década se passou, num tempo acelerado pelo passo da Tropicália. A voz da cantora que aparece em Baby e, sobretudo, em Divino, maravilhoso já responde a outras demandas — comportamentais e musicais. Além do canto que Caetano fora encontrar no bar em Salvador em 1963, Gal se tornara um corpo. Cabelos cacheados e curtos, olhar incisivo de aviso, roupas brilhantes. É preciso estar atento e forte. Atenção para o refrão. Uau!
Gal afirmava o Brasil que não tinha tempo de temer a morte. Com a prisão e o consequente exílio de Gil e Caetano em 1968, ela passou a ser a representante, o rosto da coragem tropicalista. Em diálogo com artistas como Jards Macalé, Waly Salomão e Hélio Oiticica, avançou no terreno da contracultura. Seu espetáculo Fa-tal, de 1971, condensava em sua densidade o peso dos anos de chumbo. E, em poética e sonoridade e postura de palco e canto, firmava pé na resistência, na possibilidade da existência num Brasil em que tudo estava certo “como dois e dois são cinco”.
Em Cantar (1974), desafiando os que a queriam sedimentada como líder da contracultura, Gal retoma o caminho solar. Ao longo da década de 1970, ela faz um movimento bonito de reconstruir o país quebrado, seja recorrendo a compositores de sua geração, seja apontando para aqueles que sonharam e desenharam essa nação muito antes, como Dorival Caymmi e Ary Barroso.
A transição do regime autoritário para o democrático é acompanhada por Gal, que explode em alegria e popularidade exatamente na década de 1980. É o tempo de baladas irresistíveis como Chuva de prata e Um dia de domingo, mas também da exuberância de Festa no interior.
Gal não simplesmente abandonava uma face e vestia outra, deixando a anterior para trás. Ela era todas e dispunha desse repertório num diálogo entre seus desejos e a sensibilidade de sentir a temperatura do Brasil, dos brasis. Um exemplo é o fato de em 1994 (ano em que se encerra a conturbada gestão Collor-Itamar na Presidência) ela ter retomado de maneira direta o impulso vanguardista no show O sorriso do gato de Alice, com direção de Gerald Thomas.
Certa pacificação institucional nacional entre os anos 1990 e 2000 teve em Gal, como resposta, um assentamento na carreira, com projetos revisionistas, voltado para compositores antigos. Seu canto ali era o canto de um Brasil sereno, sem entender seu lugar entre os sonhos do passado e os do futuro.
Seu interesse pelo Brasil que viria teve uma faísca breve em Hoje, disco de 2005 que trazia jovens compositores, mas sob um olhar em certa medida ainda vinculado ao passado. Porém, a partir de Recanto, disco de 2011 com canções inéditas de Caetano, Gal se conectou ao país que estava à beira da convulsão. Ele aparece ali, no encontro entre sua voz e as bases eletrônicas. No Brasil da fricção, Gal assume o canto da fricção.
Graças a pontes estabelecidas pelo produtor Marcus Preto, a partir de Estratosférica, de 2015, Gal se aproxima da nova geração: Emicida, Mallu Magalhães, Tim Bernardes, Rubel… Afina-se – na posição de matriarca, farol – com o Brasil que virá. No palco do Coala, festival no qual fez seu último show, em setembro deste ano, Gal falou para uma plateia de jovens sobre o futuro do país, lembrando as eleições.
Entrevistei Gal diversas vezes nos últimos vinte anos. Numa delas, a vi correndo os dedos pelo celular para procurar um texto do teólogo Rubem Alves, pegar os óculos para perto e ler: “Somos assim: sonhamos o voo mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece.” A cantora sacara o trecho para ilustrar o que a movia no disco que lançava então, Estratosférica: a vontade de se afirmar no presente, “sem medo nem esperança” como diz uma das canções do álbum.
Noutra, a ouvi refletir sobre a consciência do corpo e da idade, e do desejo de viver. “Estou malhando. Porque o show tem uma demanda física”, disse, antes de concluir com uma formulação que parecia verso: “A vida tem uma demanda física.”
Há pouco mais de dez anos, me disse: “Minha gravação de A rã (de 1974) me emociona. Aquilo é de uma pureza, parece que estou ouvindo um anjo. Aquela não sou mais eu. A beleza da vida é essa. A mudança.” Na época do Recanto, Caetano afirmou, referindo-se à cantora, que “a pessoa, quando pode, muda para se transformar cada vez mais naquilo que é”. O país que passa pelo canto de Gal também parece seguir o mesmo destino.
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