A médica Nise Hitomi Yamaguchi depôs na CPI da Covid nesta terça-feira - Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
No palco com a cloroquina
Medicamento sem eficácia comprovada contra a Covid virou uma jabuticaba: só no Brasil se fala dele, e a CPI acaba alimentando debate inócuo
O início da CPI da Covid-19 no Senado deu esperanças a boa parte da população, angustiada com a falta de vacinas, o recorde de mortes e o avanço de uma possível terceira onda, de que as dúvidas sobre a atuação do governo federal na pandemia fossem elucidadas. O governo comprou vacinas? Ajudou no desenvolvimento das mesmas? Forjou a quebra de regras de isolamento? Fez campanha por medicação sem comprovação científica?
As primeiras sessões pareciam promissoras, com os convocados alinhados ao presidente Jair Bolsonaro tentando reforçar a versão governista – tudo o que podia ser feito foi executado, em especial no Ministério da Saúde. As agências de checagem, tão importantes na eleição de 2018, ganharam o auxílio de usuários comuns das redes, que municiam os senadores com informações em tempo real – apontando contradições nos depoimentos dos convocados. Parecia que chegaríamos a algum lugar.
Passados os primeiros depoimentos, a base governista se articulou em torno de uma linha de defesa que, se não tem garantido uma vitória dos apoiadores do presidente nas redes sociais online, ao menos consegue manter a sua base fiel. E uma das “iscas” dessa estratégia de defesa tem sido – sempre ela – a tal da cloroquina.
O debate tem girado em círculos, com governistas como a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro afirmando que existem estudos comprovando a eficácia do remédio. Ou a oncologista e imunologista Nise Yamaguchi, que, ao insistir em afirmar que inúmeros trabalhos sobre a cloroquina apontam dúvidas na comunidade científica internacional, acabou por ser confrontada pelo senador Otto Alencar (PSD-BA) com uma pergunta simples: a diferença entre protozoário e vírus – diferença que ela não soube explicar, gerando um dos momentos de maior constrangimento na comissão diante do desconhecimento da especialista. Ao fim de sua fala, o senador ressaltou que as respostas da médica desinformavam e tergiversavam sobre o tema.
O fato é que, de uma forma ou de outra, a cloroquina segue sendo um cavalo de troia para os governistas e para o presidente Bolsonaro, que insistem em jogar essa dúvida no ar: talvez funcione, por que não arriscar? Utilizam um sofisma, como em diversas outras situações, ludibriando as pessoas e, ao fim ao cabo, desinformando.
Enredados nessa trama, a pergunta que fazemos é: para além das discussões sobre os trabalhos científicos – cujos resultados já geraram um consenso quanto à ineficácia da hidroxicloroquina – como é feito esse debate nas redes sociais online no mundo? A melhor metáfora que encontramos após conferir os dados é: a cloroquina virou uma jabuticaba.
No dia 22 de fevereiro de 2020, foi identificado o primeiro tuíte em português relacionando a cloroquina à Covid-19. Curiosamente, foi um “quote tweet” (um retuíte com comentário) de uma publicação de um perfil chinês (@Echinanews). Talvez os apoiadores do tratamento com a medicação até repensem agora.
De lá pra cá, o que se viu no Brasil foi uma massiva campanha de comunicação, estrelada pelo presidente da República, em defesa do medicamento. Tal esforço se evidenciou no debate público no Twitter, onde foram identificadas 18,7 milhões de publicações em português sobre cloroquina desde a decretação da pandemia pela OMS (março/2020). Sendo o Brasil o país de maior população lusófona do planeta, é razoável afirmar que se trata de posts daqui. No mundo, até agora, foram 58,1 milhões de posts. Representamos 2,75% da população do mundo e produzimos 32,5% das publicações sobre a medicação no Twitter. Nada razoável neste caso.
Nos idos de 2020, especialmente nos meses de abril e maio, existia uma expectativa em torno do tratamento com a cloroquina, e não apenas aqui. Contudo, com a evolução dos testes com vacinas, especialmente no segundo semestre, houve um considerável arrefecimento desse debate tanto no Brasil como no restante do planeta. Só uma pessoa, vira e mexe, não deixava o remédio cair no esquecimento: Jair Bolsonaro. O governo brasileiro inclusive encomendava milhares de comprimidos aos laboratórios do Exército.
Se não fosse suficientemente estranha a distopia de 2020, o que se viu em 2021 foi ainda pior. Apesar do início da vacinação em outros países ainda em dezembro de 2020, e no Brasil em 17 de janeiro de 2021, observou-se a ressurreição dessa tese curandeira. Neste ano, as menções em português correspondem a 62,7% do total, frente a 27% no ano passado.
Vale aí destacar o mês de maio, com mais de 1,7 milhão de posts e picos que coincidem, não por acaso, com os dias de depoimentos na CPI da Pandemia, em especial os do ex-ministro Nelson Teich (05/05), do diretor da Anvisa, o contra-almirante Barra Torres (11/05), do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello (19 e 20/05) e da secretária Mayra Pinheiro (25/05).
O governo e a oposição têm ficado entretidos num debate que sequer faz sentido do ponto de vista da ciência, numa armadilha argumentativa cujos caminhos tentados até agora obtiveram pouco sucesso. Isso tudo alimenta a desinformação.
A CPI, no fim, tem sido um dos únicos palcos ainda disponíveis na defesa da hidroxicloroquina, alimentando um debate inócuo sobre um medicamento que está esquecido no resto do mundo para o combate à Covid-19. No Brasil, a meia-vida da cloroquina está durando bem mais do que em outros países.
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Correção: Versão anterior desse artigo continha dados errados a respeito do número de posts sobre cloroquina no mundo.
Sócio da Arquimedes, consultoria de análise de mídias sociais. É mestre e graduado em administração pela Fundação Getulio Vargas.
Advogado, mestre em Ciências Sociais pela UnB e pesquisador associado do Cepesp/FGV
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