ILUSTRAÇÃO: Christina Chung/ICIJ
Nova base de dados rastreia implantes defeituosos pelo mundo
Criado pelo ICIJ, banco de dados internacional traz informações inéditas sobre falhas em dispositivos médicos em 11 países
* Esta reportagem faz parte do Implant Files, projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, com sede em Washington, DC. O Implant Files reúne 252 profissionais de 59 veículos de 36 países, que investigaram dezenas de fabricantes e distribuidoras de dispositivos médicos em todo o mundo. No Brasil, participam da apuração a revista piauí e a Agência Pública. Este texto foi produzido por Emilia Díaz-Struck.
Tradução de Anna Beatriz Anjos.
Pacientes ao redor do mundo agora têm acesso a informações sobre dispositivos médicos com defeito ou perigosos para a saúde – inclusive aqueles que oferecem ameaça à vida – graças à publicação de uma base de dados sobre falhas nesses aparelhos em diferentes países. Desenvolvido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, e parceiros como parte do projeto Implant Files, um banco de dados supre uma necessidade crítica por informações confiáveis a respeito desses aparelhos.
A Base Internacional de Dados sobre Dispositivos Médicos (IMDD, na sigla em inglês) traz um olhar inédito sobre um sistema em colapso. Nessa primeira versão, ela permite que os usuários explorem mais de 70 mil recalls – quando um implante é retirado do mercado por trazer problemas à saúde –, alertas e avisos de segurança de campo executados em onze países. Pode-se fazer a busca pelo nome do dispositivo, fabricante ou país. Com isso, o ICIJ traz à tona informações de interesse público para fornecer alertas de segurança vitais e potenciais recursos a pacientes que, em grande parte do mundo, não tinham acesso a esses dados até agora.
O Implant Files descobriu que menos de 20% dos países do mundo oferecem pela internet informações públicas que permitam às pessoas encontrar alertas de segurança e dados sobre recalls relacionados a dispositivos médicos. A equipe do projeto enfrentou resistência constante das autoridades durante a produção da base de dados e análise de milhões de documentos, registros de recall e alertas de segurança. Do total de recalls nos Estados Unidos, mais de 2 100 estavam relacionados a defeitos com “uma chance razoável” de causar “sérios problemas de saúde ou morte”. No Canadá, 347 recalls desse tipo foram identificados.
Os dados disponibilizados pela IMDD incluem mais de 6 700 registros da Espanha, Finlândia e México nunca antes divulgados publicamente. Eles foram obtidos por meio de leis de acesso à informação, com pedidos feitos por parceiros do ICIJ nesses países.
Agora, a IMDD oferece a inédita chance de explorar falhas de dispositivos médicos e recalls ao redor do mundo. Em muitos casos, estão descritos o nível de risco associado ao uso do produto recolhido, as causas da ordem de recolhimento e as ações tomadas para corrigir os problemas.
O design dos dispositivos é a causa mais comum (22,7%) de recalls de implantes registrada na última década pela agência de regulação norte-americana Food and Drug Administration, o FDA, seguido por controle de processos (11,2%) e “material ou componentes inadequados” (9,8%). Produtos ortopédicos, gastroenterológicos, urológicos e cardiovasculares são os que mais acumulam recalls nos Estados Unidos. O fabricante com o maior número de recalls é a empresa chinesa TK.
Apesar do sofrimento que os dispositivos defeituosos causam aos pacientes, o FDA baniu apenas dois produtos por meio de uma lei de 1976 que conferiu à agência o poder de garantir a efetividade e segurança dos implantes: luvas descartáveis e próteses capilares. Fora dos Estados Unidos, é incomum dispositivos médicos serem retirados do mercado, mesmo quando ocorrem problemas mais graves.
Normalmente, uma empresa suspende a circulação de um dispositivo médico ou detecta um problema com um dispositivo que exigiria a emissão de um alerta e informa as autoridades. De acordo com o FDA, os recalls preveem que sejam tomadas medidas de correção ou a remoção do produto por um fabricante para resolver problemas em um dispositivo. Um recall não necessariamente obriga um paciente a deixar de utilizar um produto ou a devolvê-lo à empresa. Às vezes, a determinação significa apenas que um implante precisa ser revisado, ajustado ou corrigido.
A indústria de produtos para a saúde é globalmente organizada, mas as funções de fiscalização dos governos acabam nas fronteiras. Um mesmo produto pode mudar de nome conforme o país e os números de registro, variar, o que dificulta o rastreamento de dispositivos objetos de recall.
Não há consenso internacional sobre padrões de segurança que garantam a comercialização de produtos para a saúde. Tampouco existe um sistema de aviso para propagar alertas a pacientes e operadoras de saúde para além das fronteiras nacionais.
Calcular as taxas de sucesso e de falhas de um dispositivo médico em diferentes mercados é uma tarefa dificultada por não haver processos consistentes de identificação do problema por órgãos reguladores e comunicação aos fabricantes. A ausência de um sistema de registro numérico universal com os dados disponíveis é a raiz de diversos problemas que levam pacientes de um país a receber implantes que foram objeto de recall em outro país por causa de riscos comprovados à saúde. Embora alguns países tenham criado legislações e defendido um sistema de registro numérico universal, até o momento nenhuma iniciativa foi posta em prática.
Uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde, a OMS, publicada em 2017 revelou que existem três diferentes sistemas de registro numérico sobre dispositivos médicos – e a maioria dos países não usa nenhum deles. Apenas 52% dos 174 membros da OMS que participaram do levantamento afirmaram usar algum sistema oficial para identificar produtos para saúde. Somente 28% dos países africanos dispunham de um sistema.
A qualidade das informações reunidas na IMDD sobre níveis de risco, modelos de dispositivos, ações tomadas, entre outros, também variou amplamente, já que poucos países têm uma classificação que indica o nível de risco associado a um recall específico.
O número de recalls difere radicalmente de país para país. Na última década, os Estados Unidos registraram mais de 26 700 ocorrências desse tipo, enquanto a Índia – com uma população superior – teve apenas catorze do início de 2013 até 2017, os únicos anos sobre os quais havia dados.
O México, que forneceu informações apenas sobre dois recalls aos parceiros locais do ICIJ, está entre os maiores mercados de produtos para saúde na América Latina. Os números escassos relativos a México e Índia podem refletir um quadro ou de falta de transparência ou de poucos recalls. Não há como os pacientes e cidadãos saberem o que de fato ocorre. Somente o FDA, o principal órgão regulador de dispositivos médicos do mundo, oferece detalhes sobre a possível distribuição, em outro país, de um produto alvo de recall nos Estados Unidos.
O impacto nos pacientes dos problemas em dispositivos é considerável. A cada ano, centenas de implantes médicos são identificados como falhos e motivam alertas de segurança ou recalls. Muitos dos problemas não são graves, mas há casos em que defeitos e falhas de design impõem riscos à saúde que exigem a interrupção da comercialização do produto.
Como parte da investigação, o ICIJ criou um algoritmo de inteligência artificial para analisar milhões de documentos sobre eventos adversos relatados ao FDA. Na última década, cerca de 500 mil relatórios descrevem cirurgias de remoção de dispositivos médicos, descobriu o ICIJ.
As notificações de eventos adversos revelam casos em que o dispositivo era suspeito de ter causado ou contribuído para a manifestação de uma doença grave ou morte, ou de histórias nas quais o produto apresentou uma falha de funcionamento que provavelmente implicaria danos. O ICIJ descobriu que, nos últimos dez anos, dispositivos médicos estiveram relacionados a 82 mil mortes e 1,7 milhões de ferimentos.
Em alguns casos, não fica muito evidente, na notificação de eventos adversos, a ligação entre o dano à saúde descrito e o dispositivo médico em questão. O FDA explica que conclusões sobre a segurança de um produto ou sua influência num ferimento ou morte não podem ser tomadas com base em uma notificação isolada.
A base IMDD abrange não só implantes, mas uma ampla variedade de dispositivos – de luvas a desfibriladores – que foram objeto de recall dos fabricantes e relatados às autoridades locais.
As chamadas para revisão dos produtos não são feitas ao mesmo tempo por todos os países – às vezes, meses e até anos separam o primeiro do último recall. O ICIJ constatou também que muito frequentemente os alertas vitais não chegam aos pacientes e médicos. Alguns dispositivos são oficialmente objetos de recall, retirados do mercado ou até banidos em alguns países, mas não em todos, o que reforça os questionamentos sobre o tratamento desigual de pacientes ao redor do mundo.
Mesmo quando os alertas de segurança são iniciados, pode ser difícil a localização dos pacientes afetados. Alguns percebem apenas anos depois que o implante que carregam no corpo foi alvo de recall. “Descobri recentemente, há cerca de quatro ou cinco meses, que O FDA classificou o meu dispositivo, com vários outros, como classe II para recall em 2009. Estou chocado”, afirmou um paciente em um relatório divulgado em 2014 pela FDA. O paciente, que usava um estimulante gástrico, relatou sentir severas “dores no coração”, e a determinação do recall alertava sobre a possibilidade de obstrução intestinal ou perfuração, com eventual necessidade de cirurgia. O paciente se queixou de “nunca ter recebido uma ligação, carta ou notificação relacionada ao dispositivo”.
Em notas enviadas ao ICIJ, a AdvaMed, o mais importante grupo comercial norte-americano do ramo de dispositivos médicos, contestou a acusação de que as empresas enfrentam problemas para alcançar os pacientes depois de recalls. “Dispositivos médicos de alto risco, especialmente aqueles que mantêm pessoas vivas, contam com procedimentos de rastreamento específicos para garantir que as empresas possam notificar rapidamente os pacientes e as operadoras de saúde sobre quaisquer problemas significativos”, disse Janet Trunzo, chefe de tecnologia e questões regulatórias da AdvaMed.
COMO USAR A BASE DE DADOS
A IMDD inclui links para fontes primárias e um mapa interativo que permite a exploração por país, para aqueles em que os documentos estão publicamente disponíveis ou cujos dados foram obtidos por parceiros do ICIJ. Os usuários podem buscar eventos associados ao mesmo produto em diferentes países. O registro numérico também é apresentado, quando fornecido pelas fontes de dados oficiais.
A base de dados é simples de usar. Ao digitar o nome de um dispositivo no espaço de busca, é possível acessar resultados de recalls, alertas e notificações de segurança ocorridos em diversos países. Se o usuário está interessado em um evento específico, há a opção de clicar sobre ele e acessar todos os detalhes relacionados.
Há também outras opções que podem ajudar a encontrar conexões e explorar os dados. Por exemplo, é possível clicar no nome de determinado fabricante e ver eventos ligados a ele.
A categorização da base de dados permite, por exemplo, que pacientes com um dispositivo cardiovascular que moram em algum país onde não há informações publicamente disponíveis vejam se o produto foi classificado como de alto risco em algum outro lugar.
Mais informações sobre como usar a IMDD podem ser encontradas na própria base de dados interativa.
É importante que os usuários primeiro verifiquem se os implantes afetados são do mesmo lote descrito no episódio. Os pacientes devem confirmar com seus médicos para determinar se as informações são relevantes para o seu implante. A base de dados não pretende substituir o aconselhamento médico.
Composta por diversas fontes de dados, e cobrindo o período do começo da década de 90 até 2018, a base interativa conecta mais de 1 100 empresas de implantes e as suas subsidiárias a dispositivos distribuídos no mundo todo. Como parte da metodologia para criação do banco de informações, o ICIJ e seus parceiros em 36 países rastrearam sites de autoridades para identificar dados públicos sobre recalls, alertas de segurança e avisos de segurança de campo, e depois os coletam.
Em muitos países onde não havia registros públicos, os parceiros do ICIJ fizeram pedidos de acesso à informação para autoridades de saúde. Mesmo assim a base de dados pode não incluir informação de alguns países.
Os dados reunidos variam em estrutura e qualidade. Como não havia um sistema universal de registro numérico, o ICIJ ligou o nome do fabricante à empresa mãe. O ICIJ usou os relatórios da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos e da Dow Jones Factiva como fontes primárias para identificar as empresas matrizes.
A equipe usou os Painéis de Classificação de Dispositivos do FDA para identificar categorias amplas de especialidades médicas que usam implantes específicos, como cardiologia e ortopedia. Essa mesma classificação foi usada para outros países para facilitar a navegação.
Qualquer um que tenha informações para ajudar esse esforço investigativo deve ser encorajado a compartilhar dicas com o ICIJ e os jornalistas do projeto Implant Files, que continuarão a investigar e a construir essa base de dados de interesse público. A base de dados completa está disponível para download relativo a termos específicos.
Equipe que desenvolveu a base de dados IMDD: Emilia Díaz-Struck, Miguel Fiandor Gutiérrez, Pauliina Siniauer, Margot Williams, Pierre Romera, Hilary Fung, Karrie Kahoe, Delphine Reuter, Cécile S. Gallego, Spencer Woodman, Barnaby Skinner, Antonio Hernández Rodríguez, Fabiola Torres, Andrew Lehren, Emily Siegel, Valerie Ouellet, Ville Juutilainen, Minna Knus-Galan, Marco Visser, Daniele Grasso, Helena Bengtsson, Caelainn Barr, Boyoung Lim, Ricardo Brom, Yasuomi Sawa, Amy Wilson-Chapman, Hamish Boland-Rudder. Agradecimentos especiais aos repórteres mexicanos do Mexicanos Contra la Corrupción, Quinto Elemento Lab and Proceso.
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