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    Ilustração: Carvall

questões canábicas

A nova cara da maconha nas favelas

Empreendedorismo em torno da planta começa a gerar interesse dentro das comunidades historicamente mais afetadas pela guerra às drogas

Anita Krepp | 08 ago 2023_11h19
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Quando criou a Associação das Mulheres de Paraisópolis, em 2006, Renata Alves “não sabia o que ia fazer, mas sabia que precisava fazer algo”. O mesmo sentimento veio à tona em 2020, durante a pandemia. Por influência da ativista e de outras lideranças, a centenária favela da Zona Sul paulistana se organizou para suspender o baile funk ao longo de sete meses e entregar cestas básicas às famílias locais, o que lhes permitiu ficar em casa. Moradora de Paraisópolis desde que nasceu, há 43 anos, Alves conhece bem a comunidade e sua vizinhança, uma área onde vivem mais de 100 mil pessoas. “Aqui nós já compreendemos que não adianta correr atrás do poder público”, diz. “Governança de verdade a gente faz por conta própria.”

O senso de urgência para agir em prol da favela se manifestou novamente no ano passado. Diante da necessidade de implantar fontes alternativas de renda em Paraisópolis, a ativista se reuniu com outros líderes comunitários e concebeu o Legado Hub. O espaço de coworking busca incentivar o empreendedorismo por meio da formação profissional em diferentes áreas, como fotografia, gestão cultural, marketing e vendas. Embora se julgue criativa, Alves nunca havia pensado que a instituição pudesse oferecer cursos sobre cannabis. Ela não conseguia relacionar a erva com uma profissão legalizada. Toda vez que pensava em maconha, logo se lembrava dos estragos que a política antidrogas vem provocando nas inúmeras comunidades pobres do Brasil.
Há poucos meses, porém, uma parceira de ativismo e na administração do Legado Hub, Tatiane Cruz, lhe propôs trabalhar com a cannabis num projeto que unisse o asfalto à favela. Em 2021, Cruz fundou a Galáxia Beauty, startup de Paraisópolis que treina revendedoras autônomas de cosméticos. Para se aprimorar, ela decidiu frequentar o CIVI-CO em Pinheiros, bairro abastado de São Paulo. Trata-se de um coletivo que tem a missão de fomentar atividades econômicas sustentáveis. Ali Cruz acabou conhecendo a aceleradora de negócios canábicos The Green Hub (TGH) e passou a trocar figurinha com Alex Lucena, o diretor de inovação. “Na periferia, onde cresci, a cannabis costuma ser associada à criminalidade. Por isso, sempre mantive distância do assunto. Mas, quando passei a circular pelas áreas mais ricas da cidade, descobri outros modos de enxergar a maconha”, conta a empreendedora.
Ela vislumbrou, então, a possibilidade de fazer cosméticos com substâncias da erva e capacitar mulheres pobres para comercializá-los via Galáxia Beauty. Escolheu começar o treinamento por Paraisópolis e propôs a colaboração ao Legado Hub, de olho num mercado que até 2030 deve movimentar 8,6 bilhões de dólares no mundo, conforme relatório da Grand View Research, empresa de consultoria sediada em São Francisco, nos Estados Unidos.

“Foi perfeito. Eu buscava uma oportunidade assim havia muito tempo. Queria que o empreendedorismo da cannabis ultrapassasse o território das elites e chegasse à periferia”, afirma Lucena. Ele fez a ponte entre Cruz e a CBeDifferent, empresa criada e gerida por brasileiros no Uruguai que a TGH apoia e que cultiva maconha com o objetivo de confeccionar produtos de beleza.

A linha de três cosméticos desenvolvida pela Galáxia em parceria com a CBeDifferent será lançada entre outubro e dezembro. Inicialmente, o creme para o corpo, o hidratante labial e o sérum não usarão o CBD (ou canabidiol), substância extraída da erva. No lugar dele, empregarão o CBA (ou Cannabinoid Ative System), uma mistura de óleos essenciais derivados de plantas amazônicas. Os efeitos dos dois princípios ativos se parecem. A legislação brasileira, no entanto, ainda proíbe a utilização do CBD em cosméticos e só permite a do CBA. Assim que a lei mudar, a Galáxia e a parceira do Uruguai substituirão o CBA pelo canabidiol. O kit de beleza será vendido de porta em porta ou pela internet. 

No Rio, a fundação RedWood, criada por brasileiros nos Estados Unidos, iniciou um programa que oferece assistência médica e insumos de cannabis para mais de trezentas crianças com transtornos neurológicos no Complexo do Alemão, conjunto de favelas na Zona Norte do Rio. A instituição pertence aos proprietários da USA Hemp, empresa que comercializa diversos produtos canábicos, de fitoterápicos a tinturas, pomadas e sais de banho. Desenvolvido em parceria com duas ONGs do Alemão (Educap e Núcleo de Estimulação Estrela de Maria), o programa já arrecadou mais de 1 milhão de reais em doações.

Rafaela França recebeu o presidente da Fundação Redwood, José Rocha, no Complexo do Alemão para apresentar o trabalho do NEEM nas favelas do Rio de Janeiro. | Foto: Pedro Magalhães

 

Renata Alves, uma das fundadoras do Legado Hub e do Legado Talks. | Foto: Daniel Eduardo


Como sempre acontece quando se fala em cannabis, a educação precisa vir antes de qualquer plano. A CEO da CBeDifferent, Ticiana Santana, sabe disso. “Para conseguir que o empreendedorismo canábico seja rentável dentro das favelas, temos que educar, já que ainda há muita ignorância sobre o assunto”, diz a executiva. As futuras vendedoras da nova linha de cosméticos deverão passar por um treinamento que abordará desde questões comerciais até as propriedades terapêuticas do CBD para a pele, como o combate às manchas, à acne e ao envelhecimento, tudo isso com um risco baixo de causar alergia, segundo vários estudos clínicos (a comunidade científica, porém, ainda não entrou em consenso a respeito do tema).

Uma etapa anterior a essa se deu no último 24 de junho – “um sábado, para todo mundo poder ir”, ressalta Tatiane Cruz. O Legado Talks, série de conversas sobre os diferentes contextos em que a maconha está inserida atualmente, realizou sua primeira edição na sede do Legado Hub, em Paraisópolis. O evento durou o dia inteiro e reuniu cerca de cem convidados, todos moradores da favela. Entre os palestrantes, havia empresários, profissionais de saúde e líderes comunitários, a exemplo do historiador Danilo Biu, vice-presidente da Gaviões da Fiel, torcida organizada do Corinthians, e um dos fundadores do Legado Hub.

“Como você explica para os familiares de um jovem preso por vender maconha que o óleo da erva vai melhorar a vida deles?”, pergunta Renata Alves. “Não adianta falar apenas de empreendedorismo ou de sobrevida em casos de doenças graves. É necessário contar a história da planta e mostrar por que, a partir de certo momento, o uso dela se tornou ilegal.” A ativista prefere empregar a palavra maconha em vez de cannabis. “Quando digo cannabis, acabo restringindo quem participa da conversa.”



A primeira edição do Legado Talks deverá ser levada a outras periferias, como os bairros da Brasilândia e de Cidade Tiradentes, em São Paulo, e a Rocinha, maior favela carioca. O evento dialoga com um movimento global pela mudança dos paradigmas que transformaram as comunidades pobres no alvo principal da guerra às drogas. Esse debate ainda engatinha no Brasil, embora esteja bem adiantado nos Estados Unidos, no México e na Colômbia, cujos presidentes já reconheceram o quanto a repressão vem prejudicando as camadas mais baixas da sociedade. Por aqui, dentro e fora das periferias, apenas se começa a perceber que há algo muito errado quando alguns empresários lucram fortunas com uma planta enquanto milhares de pessoas são encarceradas por causa da mesmíssima planta.

A deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP) diz que, independentemente do modelo regulatório a ser adotado em relação à cannabis, o país tem o dever de reparar as populações periféricas, sobretudo a negra, pela ação violenta da polícia no combate às drogas. “Quando esse mercado se tornar legal, poderemos criar uma rede de empregos em torno dos óleos medicinais ou de outros derivados da maconha e colocar as vagas nas mãos de quem vive nas favelas. Isso vai gerar, inclusive, mais impostos para o Estado”, argumenta a parlamentar. Ela pertence a uma ala de políticos que pressiona o Congresso a votar o PL 399/2015. O projeto de lei regula o uso da cannabis em diferentes setores, como o de alimentos, bebidas e cosméticos, além do medicinal. Também prevê o plantio em solo brasileiro, hoje proibido, o que baratearia os produtos derivados e popularizaria o acesso a tratamentos de saúde com a erva.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já autoriza a importação por pacientes de fitoterápicos à base de maconha pela Resolução DC 660 e permite, via Resolução DC 327, a comercialização de mais de 25 produtos do gênero em farmácias. Nos dois casos, o paciente precisa apresentar um pedido médico. “Apesar de a autorização da Anvisa ser positiva, necessitamos de uma regulação mais ampla, que abarque o cultivo de cannabis em território nacional”, diz José Bacellar, CEO e fundador da VerdeMed, empresa que vende fitoterápicos de cannabis nas farmácias do país, mas os fabrica no Canadá por causa das normas vigentes no Brasil.

Enquanto o Legislativo resiste a tratar do assunto, devido à pressão contrária de grupos como as bancadas da bala e da Bíblia, o Judiciário está sendo requisitado pela sociedade para arbitrar a questão. Em março, o Superior Tribunal de Justiça atendeu uma solicitação da empresa paranaense DNA Soluções em Biotecnologia e, nos próximos meses, vai decidir se autoriza o cultivo da cannabis para fins industriais e medicinais no país. Já o Supremo Tribunal Federal retomou, na semana passada, o julgamento sobre a descriminalização do porte de entorpecentes ilícitos para uso pessoal. Ao longo das discussões, o ministro Alexandre de Moraes fez um discurso de uma hora e meia em que escancarou o racismo da atual política antidrogas. O julgamento foi adiado a pedido de Gilmar Mendes. O magistrado propôs que a corte só o retome em alguns dias, quando chegar a um consenso sobre certos detalhes, como a quantidade de droga que caracterizaria o uso pessoal e se outras substâncias além da cannabis serão descriminalizadas. 

 

Na Escola Estadual Brigadeiro Gavião Peixoto, em Perus, extrema periferia de São Paulo, uma ex-aluna assumiu a responsabilidade de passar informações a respeito da maconha para adolescentes do ensino médio. Biomédica, Lih Vitória trabalha com a cannabis e organizou uma série de palestras na escola em que os aspectos sociais, econômicos, terapêuticos e históricos da erva serão debatidos por especialistas como a advogada Cecília Galício, da Rede Reforma, que agrega juristas empenhados em mudar a política brasileira de drogas. As conversas ocorrerão durante as aulas da professora de biologia, Úrsula Lopes.

O ativista Felipe Gomes – um dos organizadores da Marcha das Favelas, movimento social contrário à proibição das drogas – defende que o governo ofereça cursos de empreendedorismo e administração aos moradores das comunidades e transforme, por exemplo, os gerentes de boca em gerentes de coffee shops. “É necessário capacitar o pessoal das favelas o quanto antes. Só assim ele terá condições de disputar mercado com empresários de fora, que entrarão no país com muito dinheiro para explorar o comércio de maconha.”

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