O filme, dirigido por Gabriela Amaral Almeida, peca também pela idealização dos desvalidos em contraposição à caricatura dos opressores
O Animal Cordial – horas de desespero em noite de cão
Para crítico, a violência extrema anula os propósitos libertários almejados pelo longa
A trama, ou situação dramática, de O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida, é bem conhecida e pertence à linhagem de Horas de Desespero (1955), filme noir dirigido por William Wyler, com Humphrey Bogart e Frederic March. Baseado no romance de Joseph Hayes, Horas de Desespero foi inspirado em fatos reais e, antes de chegar ao cinema, teve também encenação na Broadway.
A casa de Daniel C. Hilliard (Frederic March), pai de classe média, é invadida por um trio de presidiários foragidos liderados por Glenn Griffin (Humphrey Bogart), papel criado no teatro por Paul Newman. A família Hilliard é feita refém e ameaçada de morte. A partir daí, não é difícil imaginar os desdobramentos, mesmo sem ter assistido ao filme.
Na nova versão, lançada com o mesmo título, em 1990, Tim Cornell (Anthony Hopkins) e Michael Bosworth (Mickey Rourke) são os antagonistas, sob a direção de Michael Cimino, no que resultou em retumbante fracasso comercial.
Variante mais recente, Encurralados (2007), é um thriller dirigido por Mike Barker cujo título original é Butterfly on a Wheel, mas que na Europa foi batizado como Horas de Desespero. Dessa vez, o confronto é entre Tom Ryan (Pierce Brosnan) e Neil Randall (Gerard Butler). Nas três versões, trata-se, em resumo, de um singelo, mas amedrontador, confronto entre o bem e o mal.
Outras variantes são as duas versões de O Círculo do Medo, uma de 1962, outra de 1991 (intitulada Cabo do Medo). Na primeira, cuja filmagem chegou a ser planejada por Alfred Hitchcock e acabou sendo dirigida por J. Lee Thompson, o embate é entre Sam Bowden (Gregory Peck) e Max Cady (Robert Mitchum). A novidade é a motivação de Cady que, depois de passar oito anos preso por estupro, procura se vingar de Bowden, advogado ao qual atribui a responsabilidade por sua condenação.
Na nova versão, dirigida por Martin Scorsese, Nick Nolte e Robert de Niro recriam Bowden e Cady, mas já não se trata apenas do bem contra o mal. Os personagens são mais complexos, a violência extrema e o clima assustador beira o insuportável.
Outra referência que ocorre ao assistir a O Animal Cordial, embora a relação seja mais tênue, é Um Dia de Cão (1975), de Sidney Lumet, que começa como um assalto a uma agência bancária, baseado em roubo semelhante ocorrido no Brooklyn, em 1972. No filme, os funcionários do banco se tornam reféns de Sonny Wortzik (Al Pacino), o assaltante desastrado que a mídia transforma em celebridade.
O que O Animal Cordial faz é um mero rearranjo dessas situações dramáticas já consolidadas e desse tabuleiro de personagens cristalizados. E cria novos percursos e desfechos para cada um deles, fazendo emergir a bestialidade encoberta por aparências pacíficas. Esses seres metamorfoseados seriam os animais cordiais do título. Os dois ladrões, de seu lado, limitam-se a desencadear a ação, tornando-se a partir daí figurantes, sem se constituírem propriamente como personagens. No todo, não há grande novidade, apenas mudanças de posição e o esquematismo habitual do gênero quando quem contracena, destituído de individualidade, representa categorias sociais. A vítima se torna algoz e o algoz vítima, trama tão antiga quanto a Sé de Braga.
A inversão de lugares e a violência extrema a que chegam Inácio (Murilo Benício), dono de restaurante, e Sara (Luciana Paes), a garçonete, incorrem na espetacularização da barbárie que encobre e anula os propósitos libertários que O Animal Cordial pretenderia ter. Somam-se a esse autocancelamento a recorrente idealização dos desvalidos em contraposição à caricatura dos opressores.
Causam-me surpresa e soam exagerados, portanto, as loas de vozes respeitáveis ao filme de Gabriela Amaral Almeida e os aplausos generalizados com os quais a crítica acolheu O Animal Cordial. Mas quem sabe eu é que estou equivocado?
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