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    Dantas cumprimenta Lula em sua cerimônia de posse como presidente do TCU, em dezembro de 2022. No mesmo mês, foi criada a SecexConsenso (Ricardo Stuckert)

anais da coqueluche

O balcão do TCU está de volta, com a bênção de Lula

Como o presidente escanteou a AGU e entregou ao Tribunal de Contas da União plenos poderes sobre os acordos do governo com grandes empresas – uma vitória de Bruno Dantas costurada com o apoio de ministros 

Breno Pires, de Brasília | 27 jul 2024_16h44
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Foram apenas 22 dias. Em 4 de julho, um decreto assinado pelo presidente Lula e pelo chefe da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, confirmou uma prerrogativa legal da AGU: a de autorizar ou não o ingresso de qualquer órgão público federal (inclusive ministérios) interessado em negociar um acordo com empresas privadas a respeito de contratos controversos no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU). O órgão vem selando negociações vultosas em favor de grandes empresas, frequentemente muito bem relacionadas com o Palácio do Planalto. Em outras palavras, o advogado-geral, Jorge Messias, poderia abortar na fase inicial negociações que não seguissem os requisitos da lei e pudessem trazer problemas jurídicos para o governo no futuro. 

Na última sexta-feira, dia 26, em um novo decreto, assinado desta vez com o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e sem Messias, Lula retirou da AGU o papel de fazer o filtro daquilo que pode entrar ou não em negociação. Dessa forma, Lula reforçou o poder do TCU, concentrado no presidente do tribunal, Bruno Dantas.

Foi um recuo e tanto, cedendo às pressões de Dantas, que se enfureceu com a primeira canetada alegando, em conversas reservadas, um esvaziamento de sua Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos, a SecexConsenso – o nome formal do balcão de acordos. Em reação, ele suspendeu temporariamente reuniões da secretaria, paralisando, assim, as negociações.

O recuo de Lula veio após pressão de Rui Costa e do ministro Renan Filho, dos Transportes – que trabalha em boa sintonia com Dantas, assim como outros ministros de infraestrutura (Alexandre Silveira, de Minas e Energia, e Juscelino Filho, das Comunicações). A criação da SecexConsenso, em dezembro de 2022, estreitou esses laços. “Essa secretaria virou uma coqueluche, e todos os ministros do governo têm demandas para essa nova secretaria”, declarou Dantas em uma entrevista para o SBT.

Agora, restou ao advogado-geral da União um papel secundário, praticamente de carimbador daquilo que o tribunal de contas aprovar. Messias sai encolhido do episódio.

Como a piauí relatou em uma série de reportagens, o balcão do TCU é alvo de controvérsias. Alguns desses acordos vêm sendo firmados apesar da oposição dos auditores especializados e do Ministério Público Junto ao TCU (MPTCU), que apontam prejuízos e desvantagens nos negócios, como nos casos da Âmbar Energia, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, e da Oi S.A., que teve a participação do banqueiro André Esteves devido à sociedade entre uma empresa do Banco BTG, a V.tal, e a gigante combalida das telecomunicações.

Na pressão para que voltasse a ter plena autonomia, Dantas havia suspendido as atividades da secretaria de consenso sem interromper os prazos de negociação dos acordos sob análise, que são de 90 dias, prorrogáveis por no máximo 30. Deixar o relógio correndo foi uma forma de colocar o governo contra a parede. A concessionária do Aeroporto de Viracopos e a concessionária rodoviária ViaBahia são algumas das empresas que poderiam ver seus acordos descartados pela superação do prazo. Há outros três acordos de concessionárias de rodovias na fila do TCU. Nas comunicações, a Vivo também aguarda apreciação no tribunal. E há muitos outros casos.

A decisão de Dantas foi seguida de notícias de “bastidores” indicando que o decreto “esvaziava” a mediação do TCU, seria “centralizador” e trazia “insegurança jurídica” em relação aos acordos em negociação. Essa confusão formou uma planejada cortina de fumaça. 

A entrada da AGU nas discussões na SecexConsenso não inviabilizava acordos. O decreto estabelecia que a participação do órgão era obrigatória em mediações e negociações que envolvessem a União ou suas autarquias e fundações, justamente para garantir que todas as transações fossem conduzidas com segurança jurídica e sob controle de legalidade. Como a piauí mostrou, a medida encontrava respaldo na Lei 9.469/1997, que obriga o Advogado-Geral da União a examinar acordos para garantir a legalidade e a legitimidade das transações, especialmente quando envolvem valores acima de 50 milhões de reais. O decreto tentava corrigir a ausência da AGU nas conversas de mediação que o TCU vinha conduzindo sem essa análise prévia. Muitas das tratativas despertaram polêmica, com empresas inadimplentes que causaram prejuízos à União, muitas delas envolvidas em práticas de corrupção. Além disso, é a AGU que representa a União perante o Poder Judiciário, onde os acordos poderão ser questionados — como já aconteceu com a Oi.

A piauí procurou a Casa Civil, o TCU e o Ministério dos Transportes para comentar o tema. Só o ministro Renan Filho, dos Transportes, respondeu. A reportagem perguntou em que o decreto anterior atrapalhava o andamento dos acordos. “No mérito, não atrapalhava em nada, mas a construção poderia ter sido feita de forma mais coletiva, para garantir segurança institucional para todos os agentes”, disse Renan, que acrescentou: “A solução consensual é um procedimento mais célere para encontrar solução nova para problema antigo no país. Por isso, ela precisa ter segurança institucional e jurídica adequadas para que a gente conclua os entendimentos”.

Ao retirar a necessidade de aprovação da AGU, o TCU ganha uma autonomia notável nas negociações. Embora o tribunal tenha seus próprios mecanismos de controle, a ausência de um órgão central como a AGU pode levar a decisões que não sejam necessariamente as melhores do ponto de vista do interesse público ou que sejam mais suscetíveis a influências externas. 

Em março, o TCU havia alterado uma regra para facilitar a aprovação de acordos. Até então, era preciso a concordância de todos os integrantes da comissão de conciliação (um representante do ministério, outro da agência reguladora, outro da empresa e dois do TCU, sendo um da SecexConsenso e outro da unidade de auditoria especializada). Mas, como havia oposição em alguns casos, o TCU decidiu que não era preciso mais consenso na SecexConsenso. Os auditores que participam da comissão de conciliação podem até discordar de um acordo, mas ele irá adiante se o chefe do setor, vinculado a Bruno Dantas, desejar. 

A regra descartada pelo TCU visava trazer mais segurança jurídica aos acordos e garantir que o interesse público seja atendido. A entrada da AGU também. O recado é claro: tudo o que possa ficar no caminho dos acordos deve ser afastado. 

A AGU segue participando do processo, mas com pouca influência. Cada ministério e agência reguladora conta com procuradores da carreira da AGU, porém eles atuam representando esses órgãos, e não a União. Para acordos com contratos a partir de 50 milhões de reais, porém, a lei exige também a avaliação da cúpula da AGU, que é quem tem a visão global do Executivo e pode ser chamada a resolver divergências de entendimento entre órgãos federais diferentes, por exemplo. Pela nova regra, porém, a cúpula do órgão perde a chance de analisar o processo de construção dos acordos e só entra em cena na fase final, quando as bases da negociação estão formatadas. É muito mais difícil para um órgão técnico barrar o que já está sacramentado, devido às pressões políticas e empresariais. 

Em um contexto de fragilização das agências reguladoras, basta que o plenário do TCU – que Bruno Dantas mantém sob rigoroso controle –, o ministro de Estado e o empresário da vez queiram o acordo.

O advogado-geral, Jorge Messias, defendia a análise prévia da AGU como uma etapa importante para evitar problemas futuros. Ele tem algumas bombas em seu gabinete aguardando despacho: entre elas, um acordo com a Oi, considerado desvantajoso pelos auditores do TCU especializados em telecomunicações e pelo Ministério Público junto ao TCU. A empresa V.tal, do banqueiro André Esteves, participou do acordo e será a principal beneficiada com ele. Há também dois acordos da Rumo, do empresário Rubens Ometto. 

A maior de todas as bombas é a pendência sobre o acordo que o Ministério de Minas e Energia quer fazer com a Âmbar Energia, do grupo J&F, propriedade dos irmãos Batista, mesmo com o parecer contrário de auditores contratados e do MPTCU. A Âmbar havia sido contratada por 18,7 bilhões de reais para construir quatro termelétricas até agosto de 2022. Não cumpriu o prazo. O ministro Alexandre Silveira pediu uma conciliação no TCU, de onde saiu uma minuta de um novo acordo, de 9,4 bilhões de reais, para operar apenas uma usina, e ainda reduzir a multa de 6 bilhões de reais para 1,1 bilhão de reais. A empresa ainda deixará de ser obrigada a gerar energia ininterruptamente, passando a fazê-lo apenas sob demanda.

É um caso sobre o qual o Planalto e o TCU estão interessados em um mesmo desfecho (selar o acordo), ainda que em público por vezes pareçam estar em um embate, em um jogo de aparências e de empurra sobre responsabilidades.

Em comum entre essas empresas, além de estarem negociando acordos no TCU, está a proximidade com o Grupo Esfera Brasil, criado pelo sogro de Bruno Dantas, João Camargo, e presidido pela esposa do ministro do TCU, Camila Funaro Camargo Dantas. No III Fórum Esfera Brasil, no Guarujá, no início de junho, estavam presentes Wesley Batista  e André Esteves (que são patrocinadores), Rubens Ometto (palestrante), bem como os ministros Alexandre Silveira, Renan Filho e Silvio Costa Filho (de Portos e Aeroportos).

A teia de conflitos de interesse tem uma extensão ainda maior. Bruno Dantas já deixou circular em Brasília a informação de que, no próximo ano, quando não será mais presidente do TCU, poderá deixar o tribunal e ir trabalhar no mercado privado. Seu nome já foi ventilado como candidato para a Petrobras (antes de Magda Chambriard ser escolhida), para a Vale e, mais recentemente, para o próprio Banco BTG Pactual, que já firmou dois acordos na SecexConsenso. Todas essas empresas são jurisdicionadas do TCU e com negociações de acordos em andamento na secretaria que Dantas criou. A Vale ainda não está na SecexConsenso, mas o plano do ministro Renan Filho é levar para lá uma negociação, referente a uma ferrovia. 

Tudo será possível, com o novo decreto a reforçar que o importante são os acordos saírem, e não os aspectos formais e a governança.

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