IMAGENS: ARQUIVO PESSOAL DE LUIS FERNANDO VERISSIMO/UNISINOS
O baú de Verissimo
Guardados em caixas durante meio século, manuscritos, cartas e desenhos inéditos revelam a trajetória e o processo criativo de um dos maiores cronistas brasileiros
Por quase cinquenta anos, Luis Fernando Verissimo acumulou em pastas de plástico e caixas comuns de papelão um vasto material que dizia respeito ao seu ofício como escritor: rascunhos, originais com notas nas margens, esboços de cartuns e ilustrações nunca publicados, além de afetuosas cartas trocadas com o pai, Erico, ou com personalidades da política e das artes, satisfeitos ou não com seus textos. Verissimo nunca pensou em um destino para a papelada (boa parte inédita), e as caixas foram relegadas a um canto do escritório do casarão onde vive sua família desde os anos 40, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre.
O material ainda juntava poeira quando, dois meses atrás, veio a boa notícia: os documentos foram incorporados ao acervo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, na capital gaúcha. Assim que forem catalogados e organizados, ficarão disponíveis para o público, que pela primeira vez poderá observar as engrenagens do processo criativo e da trajetória intelectual de um dos maiores cronistas brasileiros.
Guardado em cerca de 150 caixas e pastas, o material – desenhos, roteiros, traduções e muitas crônicas, reunidos desde o primeiro trabalho de Verissimo, como redator publicitário, em 1969 – apresenta detalhes saborosos de seu percurso, e o característico humor sutil. Há correspondência familiar (como uma carta em que Erico pede ao filho, às voltas com a repressão do regime militar, que “não se deixe tomar pelo desânimo ou desesperança, haja o que houver – a não ser que a Fernanda [filha mais velha de Luis Fernando] passe a namorar um cabo da Brigada Militar”); e também um achado sobre o primeiro livro de Verissimo, O Popular, com dedicatória dele para ele próprio.
Cedidos em comodato para a Unisinos, os documentos devem ser liberados para pesquisa no primeiro semestre de 2018.
“Isso se houver interessados”, atalha Verissimo, com a verve habitual, ao receber a piauí em sua casa para falar do acervo. Ele se apressa a tratar da fugacidade da crônica. “Depois que o jornal dá o fato, vem o comentário, a imaginação do cronista, que são as anotações à margem do fato. Se você quer saber como era o Brasil nos anos 50, lê Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, e tem um retrato daquela época. Ao mesmo tempo que ela tem essa importância, a crônica é um texto efêmero, tem uma vida curta”, explica. “Ela perde o sentido muito rapidamente. Daqui a cinquenta anos, setenta anos, ninguém vai saber quem eu era ou o que eu fazia”, exagera.
Verissimo diz que se trata de uma visão “mais realista do que pessimista” – mas que reflete, sobretudo, a modéstia pela qual ele é conhecido. A pedido da piauí, o escritor comentou os destaques do acervo, depois de uma seleção feita junto com a filha, Fernanda. Ela saiu com as mãos cheias de poeira. “O pessoal da universidade vai ter trabalho…”
O PRIMEIRO LIVRO
A primeira edição que irá para o acervo da universidade leva uma dedicatória na folha de rosto. Nela, Verissimo autografa o livro para si mesmo: “Para o autor dos meus dias e outras grandes obras… Um abraço, Luis Fernando. Porto Alegre, 11/12/73.”
ESBOÇOSUma das tarefas mais difíceis dos futuros arquivistas será catalogar os materiais avulsos. São centenas de folhas soltas e desenhos variados que não chegaram a virar cartuns – esboços que Verissimo vai fazendo enquanto encara a tela em branco do computador à procura de uma fagulha inspiradora para o próximo texto.
CORRESPONDÊNCIA FAMILIAR
Nas cartas enviadas pelo pai, Luis Fernando era tratado carinhosamente como “Lico” ou “Louie”. Em junho de 1965, pouco após Erico Verissimo lançar O Senhor Embaixador, escreveu ao filho (que estava em viagem, fora da cidade) para contar sobre o alvoroço em sua casa, com visitantes e entrevistadores aparecendo quase diariamente: “O livro está vendendo como hot-cake (cacaca quente, as we say in Spanish)”, dizia. A correria era grande: Erico escrevia pouco antes de sair para uma sessão de autógrafos do novo romance, o antepenúltimo que publicaria antes de morrer em 1975.
Na época da carta, Luis Fernando e a esposa, Lucia, estavam a ponto de se assentar definitivamente na casa do bairro Petrópolis, onde ele havia crescido. Erico ofereceu um alento ao filho, para que mantivesse o ânimo diante do golpe militar de 64. “Louie, no tratado de Coexistência Pacífica que vamos assinar, só exijo uma única cláusula. Nela tu prometerás não te deixares jamais tomar de desânimo, desesperança ou qualquer sentimento dessa natureza, haja o que houver. (A não ser que a Fernanda passe a namorar um cabo da Brigada Militar.) Quanto à Lucia, não tenho cláusulas a impor”, escreveu Erico.
CARTAS PARA ILUSTRES
“Um flechaço no ACM seria uma espécie de apoteose do exotismo nacional”, afirma Verissimo, ecoando, dezessete anos depois, o sentimento expressado na crônica. No texto que causou indignação ao senador, publicado em O Globo, Verissimo pontuava: “Que nada de mal lhe aconteça, longa vida para Antônio Carlos – mas pense um pouquinho. Se aquele índio tivesse trespassado o ACM com uma flecha diante das câmeras, não seria uma espécie de desenlace lógico da nossa História? A cena final que, num instante de revelação, dá sentido a toda a trama, faz as peças se encaixarem, desfaz todos os enigmas, torna tudo claro e inevitável?” No fax, o político baiano reclamava da “agressão desnecessária” que o texto fazia a ele. Para ACM, a “flechada” de Verissimo era “mais venenosa que a de qualquer índio”. “Respondi que ele não deveria se preocupar, minhas flechas tinham ponta de borracha”, relembra o cronista.
Nem todas as correspondências tiveram a mesma troca de flechaços. Em outra crônica, Verissimo elogiava os posicionamentos do senador paulista Eduardo Suplicy, mas reconhecia compreender pouco das suas falas. Após uma bem-humorada troca de mensagens, recorda Fernanda, “o pai disse para o Suplicy: não importa, senador, mesmo que eu não lhe entenda, eu concordo”.
CARTUNS
Entre os materiais preservados, os leitores poderão encontrar um “boneco” da primeira edição do livro As Cobras, publicado em 1975 pela extinta editora Milha, com colagens e orientações dadas, em alguns casos, pelo próprio Verissimo sobre mudanças nas páginas antes de seguir à gráfica. O traço era muito diferente daquele que depois se tornou conhecido: “As Cobras nasceram magrinhas, muito mal desenhadas. Depois melhoraram – ou eu melhorei”, divaga Verissimo. “Quando elas acabaram, estavam saudáveis e robustas.”
PRIMEIRAS EDIÇÕES
Há alguns anos, buscando conservar melhor os exemplares mais antigos, a família encomendou uma encadernação de capa dura para proteger os títulos dos anos 70 e 80. “Eu não sei onde fizeram, mas foi um trabalho horrível. Alguns livros voltaram cortados, inclusive. E também veio o Luiz”, conta Fernanda. “A verdade é que ele tem documentos com o ‘s’ e com o ‘z’. É um mistério que só a certidão de nascimento resolveria, mas ele sempre preferiu assinar Luis. Acha mais simpático”, diz a filha. Na capa original das edições, o “s” sempre prevaleceu – em alguns livros mais antigos, o nome ganhou um acento e virou Luís.
TRADUÇÕES
Ao ser publicado no exterior, ele passou a depender da confiança no tradutor – uma fé quase cega, especialmente quando se trata de idiomas indecifráveis para o próprio autor. “Saíram traduções de livros meus em várias línguas, até na Sérvia e na Coreia. Como eu só falo português e inglês, e mal, não posso julgá-las”, graceja. “Mas gostei de todas.”
Entre as traduções que Verissimo pôde avaliar, uma das suas favoritas é a versão em inglês de Borges e os Orangotangos Eternos. No mercado editorial anglo-saxão, Borges and the Eternal Orangutans passou pelas mãos da britânica Margaret Jull Costa, responsável por traduções de Fernando Pessoa e José Saramago.
O livro foi bem recebido por críticos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Em 2005, Thomas McGonigle, do Los Angeles Times, definiu a obra como “a perfect novel”. “Achei meio exagerado, mas gostei também”, comenta Verissimo.
ROTEIROS
PATO MACHO
Pretendia ser um semanário irreverente, uma espécie de O Pasquim gaúcho. “Mas naqueles tempos a irreverência tinha limites”, recorda Verissimo. “Como não podia gozar o regime e os políticos, o Pato gozava a burguesia local, e a burguesia local contra-atacou, e fomos censurados. Foi uma vida divertida, mas curta.” O jornal deixou de circular no mesmo ano em que foi lançado. Verissimo foi um dos idealizadores da empreitada, que teve a colaboração de outros membros da intelectualidade porto-alegrense, como Moacyr Scliar, Ruy Carlos Ostermann, Carlos Nobre, José Antônio Pinheiro Machado e Tatata Pimentel. “As reuniões eram aqui na sala de casa”, relembra Fernanda, que tinha 6 anos à época. “Mas, evidentemente, dava muito mais bebedeira do que jornalismo.”
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