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    As Cosmicômicas

Questões da Ciência

O Big Bang segundo Calvino

No mês passado, a imprensa do mundo inteiro relatou uma das notícias mais importantes da cosmologia nas últimas décadas: a possível confirmação da inflação cósmica, nome dado à expansão acelerada do universo instantes após o Big Bang. O pretexto é apropriado para relembrar a descrição muito peculiar que o escritor Italo Calvino fez da origem do cosmo. Tudo começou com um tagliatelle, conforme ele figurou num conto de 1965.

Bernardo Esteves | 25 abr 2014_15h41
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No mês passado, os jornalistas que cobrem ciência tiveram o privilégio relatar uma das notícias mais importantes da cosmologia nas últimas décadas: a possível confirmação da inflação cósmica, nome que os pesquisadores dão ao processo de expansão em ritmo acelerado do universo que aconteceu instantes após o Big Bang. A alegada prova – um padrão específico de polarização da luz da radiação cósmica de fundo – foi apresentada pela colaboração científica Bicep2.

Não pretendo entrar nos detalhes do estudo – a notícia foi amplamente divulgada na imprensa de todo o mundo, e foi tema de uma esquina na piauí de abril. Quero aproveitar o pretexto para resgatar a deliciosa visão do Big Bang tal qual imaginado pelo italiano Italo Calvino, figura destacada da literatura do século XX.

No início de tudo, como se sabe, os átomos que hoje compõem tudo o que se conhece estavam todos concentrados num único ponto, inconcebivelmente denso e quente. Nada mais natural que estivesse reunida ali toda sorte de tipos humanos, conforme imaginou Calvino num conto publicado em 1965. A fauna espremida naquele ponto incluía um velho rabugento, uma faxineira fofoqueira, uma família de imigrantes e a desejada sra. Ph(i)Nko. Em dado momento, a voluptuosa moça lamentou a falta de espaço para preparar um tagliatelle. Nesse preciso instante, conforme escreveu Calvino,

[…] o ponto que a continha e a nós todos se expandia numa auréola de distâncias de anos-luz e séculos-luz e milhares de milênios-luz, e éramos projetados para os quatro cantos do universo (o sr. Pbert Pberd foi bater em Pavia), e ela se dissolveu não sei em que espécie de energia luz calor, ela, a sra. Ph(i)Nko, aquela que em meio ao nosso fechado mundo mesquinho fora capaz de um impulso generoso, o primeiro, “Ah, pessoal, que tagliatelle eu prepararia!”, um verdadeiro impulso de amor geral, dando início no mesmo instante ao conceito de espaço, e ao espaço propriamente dito, e ao tempo, e à gravitação universal, e ao universo gravitante, tornando possíveis milhares e milhares de sóis, de planetas, de campos de trigo e de sras. Ph(i)Nko, esparsas pelos continentes dos planetas batendo a massa com seus braços enfarinhados, untuosos e generosos, enquanto ela se perdia a partir daquele instante, deixando-nos a recordá-la saudosos.

O trecho é parte do conto “Tudo num ponto” e foi publicado em As Cosmicômicas, volume que reúne relatos inspirados em descobertas da ciência. Narrados pelo protagonista palindrômico Qfwfq (Calvino era entusiasta da literatura potencial e membro do Oulipo), os contos oferecem uma visão muito peculiar de assuntos geralmente tratados de forma bem mais sisuda, como a formação da Lua, a origem da vida em terra firme ou a extinção dos dinossauros.

Os contos reunidos no livro foram publicados originalmente nos jornais Il Caffè e Il Giorno, segundo a Wikipédia em italiano (que não oferece fontes para amparar essa afirmativa). Publicado no Brasil pela primeira vez em 1992, o livro é um volume precioso para quem se interessa por ciência e por seus cruzamentos com as artes e a literatura.

(foto: nociveglia – CC 2.0 BY)

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