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    Folha de S. Paulo

Questões da Ciência

O bóson e as duas culturas

Numa famosa conferência de 1959, o químico e romancista britânico C. P. Snow diagnosticou uma fratura na vida intelectual do mundo ocidental, dividindo o universo das ciências naturais daquele das letras e humanidades. A julgar pela crônica “Eu e o bóson”, publicada por Ruy Castro na Folha de S. Paulo, o muro que divide as duas culturas não parece perto de ceder.

| 27 jul 2012_20h09
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Difícil não pensar no químico e romancista britânico Charles Percy Snow ao ler a crônica “Eu e o bóson”, publicada por Ruy Castro na em 27 de julho.

O cronista comentou a recente detecção do bóson de Higgs, coberta pela imprensa “com um entusiasmo que só costuma dedicar às grandes catástrofes, como tsunamis, desabamentos, chacinas”, segundo suas palavras. Castro disse ter ficado animado com a notícia a princípio: “Num primeiro momento, como todo mundo, regozijei-me e vibrei – até concluir que, apesar das explicações e dos gráficos, não entendia tostão do que estavam falando.”

Mais adiante, o cronista afirmou estar “cultivando um certo carinho pelo bóson”. “Aliás, já fui grande fã de seus primos mais velhos, os prótons, elétrons e nêutrons – e também nunca soube do que se tratava”, prosseguiu, antes de concluir: “Claro que, com tantos e súbitos admiradores, o bóson pode muito bem passar sem mim. E eu sem ele.”

Numa famosa conferência proferida em 1959 e depois lançada em livro com o título As Duas Culturas, C. P. Snow diagnosticou uma fratura na vida intelectual do mundo ocidental. Em sua análise, uma distância cada vez mais intransponível separava a cultura dos cientistas naturais, por um lado, e a dos homens e mulheres de letras e artes, por outro. Com a diminuição progressiva das referências comuns, o diálogo entre os representantes das duas culturas foi se tornando inviável.

Mas uma assimetria notável distingue a percepção social de ambos os campos, conforme apontou Snow. A falta de referências no universo das humanidades costuma ser percebida como condenável – é uma vergonha não saber quem foi Pablo Picasso ou que autor escreveu Crime e Castigo. Por outro lado, não é difícil encontrar gente ilustrada que desconheça a segunda lei da termodinâmica, para usar o exemplo dado por Snow – muitos se orgulham disso, inclusive.

A sofisticação conceitual que domina a vanguarda das ciências naturais – e da física, em especial – certamente contribui para aprofundar esse abismo. Não é trivial entender (e explicar) o modelo padrão da física de partículas, a previsão teórica e a detecção experimental do bóson de Higgs. Mas é verdade também, como notou o cronista, que os jornalistas e pesquisadores envolvidos com a divulgação de ciência nem sempre encontram soluções felizes para tornar inteligíveis as novidades da área, alimentando um círculo vicioso de incompreensão e desinteresse.

Ruy Castro tem razão, afinal. Podemos muito bem passar sem o bóson – como, de resto, podemos também prescindir de Nélson Rodrigues ou João Gilberto. Mas a bossa-nova e o modelo padrão parecem condenados a jamais serem reunidos numa mesma narrativa, como frutos notáveis, cada um a seu modo, da aventura intelectual humana. Cinquenta e três anos depois da palestra de C.P. Snow, o muro que divide as duas culturas não parece perto de ceder.

(foto: Victor Grigas)

Leia também: Sejamos pragmáticos: um bóson de Higgs serve para quê?

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