O Botão de Pérola (II) – anotações
O relançamento de O Botão de Pérola no final de outubro ofereceu oportunidade de retomar o comentário publicado sobre o filme de Patricio Guzmán
O relançamento de O Botão de Pérola no final de outubro ofereceu oportunidade de retomar o comentário publicado sobre o filme de Patricio Guzmán, em julho, neste blog.
Se é verdade, conforme escrevemos há três meses, que Nostalgia da Luz (2010, disponível em DVD) e O Botão de Pérola formam um díptico, faltou acrescentar que, na verdade, são os dois primeiros filmes de uma trilogia ainda não completada, conforme Guzmán revela em entrevista ao programa espanhol La Tuerka, distribuído pela internet, em fevereiro deste ano (Otra Vuelta de Tuerka – Pablo Iglesias con Patricio Guzmán (programa completo).
Além desse detalhe menos significativo, tentar entender melhor a história do assim chamado Jemmy (James) Button justifica esta retomada de O Botão de Pérola. Button, aborígene da Terra do Fogo, cujo apelido (Jaime Botão) é nas palavras de Guzmán uma das “metáforas pequenas de coisas concretas” que serviram de inspiração para associar o massacre dos povos nativos ao assassinato dos prisioneiros políticos, ambos ocorridos no Chile, embora em épocas distantes uma da outra.
O elo de ligação entre os extermínios sem conexão aparente foram dois botões – o de nácar [madrepérola] pelo qual Jemmy teria sido trocado no início do século dezenove, e outro encontrado em um dos trilhos usados para assegurar que corpos de vítimas da ditadura Pinochet ficassem ancorados no fundo do mar.
Em suas declarações, Guzmán cultiva sutilmente a narrativa lendária acerca de Jemmy Button. No final da entrevista citada, ao programa La Tuerka, ele afirma:
“encontramos no sul, um botão […] de nácar que um indígena recebeu em troca de ir viver na Inglaterra. Digamos que disseram a ele: ‘venha conosco e vamos lhe presentear esses botões’ para que venhas. Ele aceitou, passou um ano na Inglaterra, voltou, desambientado, esqueceu sua língua original, sentiu-se perdido e morreu só.”
Na longa entrevista de Guzmán ao Le Monde, por sua vez, publicada em outubro do ano passado e disponível aqui, há pequenas variações sobre o mesmo tema. Jacques Mandelbaum, o entrevistador, refere-se a Jemmy Button como “o indígena seduzido por um botão de nácar e levado a Londres em 1830 por Robert FitzRoy, comandante da marinha real britânica que mapeava essa região [referindo-se ao arquipélago no extremo meridional da América do Sul] e abriu o caminho para a colonização”.
Nessa mesma entrevista, Guzmán, explica que duas visitas suscitaram a analogia entre os índios mortos e as vítimas de Pinochet:
“A primeira ao museu de Punta Arenas, onde fui para ver as fotografias dos índios. Foi lá que tomei conhecimento da história de Jemmy Button, esse índio que aceitou ir à Inglaterra em troca de um botão de nácar. Um ano mais tarde, ele voltou transformado em uma espécie de marciano em meio a seu povo. Esse história era para mim a imagem que anunciava a morte próxima dessa cultura.”
A outra visita à qual Guzmán se refere foi ao Museu Villa Grimaldi, em Santiago, onde viu “um desses trilhos aos quais os torturadores fascistas prendiam as vítimas antes de afogá-las, com um botão de nácar colado nele. A ligação com o outro botão se fez imediatamente na minha cabeça e o filme se construiu baseado nessa ligação.”
Há diferenças sutis, nas referências citadas acima, duas de Guzmán e uma do jornalista Jacques Mandelbaum. Ora Button é “o indígena seduzido por um botão de nácar e levado a Londres em 1830”, ora o “índio que aceitou ir à Inglaterra em troca de um botão de nácar”, ou, ainda, “um indígena [que] recebeu [um botão de nácar] em troca de ir viver na Inglaterra.”
Outras versões caracterizam o que ocorreu, de forma explícita, ao mesmo tempo como “sequestro” e “compra”.
Duas fontes acessíveis que pudemos consultar trazem informações sobre Jemmy Button que parecem precisas: Savage: The Life and Times of Jemmy Button, de Nick Hazlewood, publicado em 2000; e o artigo “Orundellico-Jemmy Button: o(s) lugar(es) e a(s) identidade(s)”, de Guillermo Giuci, publicado na Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, p. 107-126, disponível para download aqui.
Baseado no relato do comandante Philip Parker King sobre a primeira expedição à Terra do Fogo, realizada de 1826-1830, Giuci escreve: “Sobre os aborígenes da região próxima à ilha Dawson, que surgem seminus, com o corpo pintado e coberto com óleo de foca, chama a atenção dos marinheiros o cheiro forte, quase intolerável, de seus corpos e o extremo valor que davam a contas e botões; por essas bugigangas, os nativos venderiam ‘a canoa, a esposa, os filhos, seus cães e toda a mobília’.” (Narrative of the Surveying Voyages of His Majesty’s Ships ‘Adventure’ and ‘Beagle’, publicado em 1839).
Giuci indica que além de contas, carne, couro, cães, álcool, facas, ferramentas e armas, botões eram também um dos ítens do escambo feito entre europeus e fueginos.
O tenente Robert FitzRoy, aos 23 anos, assumiu o comando do Beagle, em dezembro de 1828. Em trechos do seu diário ele registrou suas impressões ao ter contato pela primeira vez, no ano seguinte, com os fueguinos: os “selvagens”, na expressão dele, seriam muito sujos com fisionomias que indicavam malícia, indolência, força passiva, deficiência intelectual e falta de energia. Parece claro, segundo Gucci, que FitzRoy começou a capturar fueguinos do grupo Alakaluf, em fevereiro de 1830, para fazer um novo tipo de escambo – a troca desses prisioneiros por um bote baleeiro que os nativos teriam roubado.
Foi apenas três meses depois que Jemmy Button, de outro grupo, os Yamana, em circunstâncias aparentemente diferentes, veio se reunir aos sequestrados, com os quais não podia se comunicar por não falarem o mesmo dialeto. Jemmy era um menino na ocasião, com 12 a 14 anos de idade e, na verdade, chamava-se Orundellico.
Nick Hazlewood reproduz o relatório de Fitz Roy do dia 11 de maio de 1830 em Savage: The Life and Times of Jemmy Button:
“ […] continuamos nossa rota, mas ao avistarmos os Estreitos fomos parados por três canoas cheias de nativos, ansiosos por fazerem escambo. Demos a eles algumas miçangas e botões em troca de alguns peixes e, sem ter premeditado, eu disse a um dos meninos em uma canoa para vir ao nosso barco e dei ao homem que estava com ele um grande e brilhante botão de madrepérola. O menino entrou no meu barco imediatamente e se sentou. Vendo que tanto ele quanto seus amigos pareciam bem contentes, toquei o barco adiante e, impelido por uma leve brisa, ele começou a navegar. Achando que essa ocorrência acidental poderia ser útil para os nativos, assim como para nós, resolvi tirar proveito dela. A canoa da qual o menino veio, remou em direção à margem […]”.
“Não há nenhuma maneira de testar a confiabilidade desse relato”, escreve Hazlewood. E prossegue: “[…] É bem improvável que os fueguinos tenham entendido o que estava prestes a acontecer a Orundellico – e se soubessem, o teriam realmente vendido por um botão? Mas qualquer que tenha sido a maneira de fazer o sequestro, FitzRoy estava ciente que se ele tinha dado, de fato, ordem aos seus homens para agarrar o menino e retê-lo contra vontade no barco, tinha cometido um sequestro pelo qual podia esperar ser severamente repreendido. Se esse foi o caso, é improvável que o admitisse em seu relatório oficial. […] Quer tenha sido trocado por seus parentes, ou agarrado pelos ingleses, a consequência para ele era a mesma: ele tinha sido sequestrado. E nesse momento crítico, quando Orundellico passou de um barco para outro, ele cruzou uma fronteira invisível. Na sua nova existência ele começaria a perder sua identidade fueguiana – suas roupas, seus hábitos e sua linguagem. Mas primeiro seus captores levaram seu nome. Enquanto a criança fueguiana era arrastada para dentro do barco, Orundellico se tornou Jemmy Button.”
Após Jemmy Button passar um ano na Inglaterra, período em que teria esquecido sua própria língua, de volta à Terra do Fogo, “ao reencontrar sua família, a mãe praticamente nem olhou para o filho pródigo. Suas irmãs também se retiraram, enquanto os irmãos rodeavam-no, observando-o em silêncio.” Charles Darwin, passageiro da segunda e mais famosa viagem do Beagle à Terra do Fogo, em 1832, descreve Button como “baixo, atarracado e gordo, mas vaidoso em relação à sua aparência; costumava sempre, usar luvas, trazia o cabelo bem aparado e preocupava-se em não sujar seus sapatos, muito bem engraxados.” (Giucci)
As referências a Jemmy Button nos anos seguintes, porém, o descrevem como “nu, magro, desgrenhado, sujo”. Para surpresa dos ingleses, teria recusado oferta de ser levado de novo à Inglaterra.
Passados outros 20 anos, Jemmy Button teria se tornado “um adulto corpulento, selvagem e desgrenhado”. Aceita vestir-se e alimentar-se no navio, dando ao comandante da escuna Allen Gardiner, William Parker Snow, a impressão de ‘um imenso babuíno vestido para a ocasião’. Contudo, ao voltar no dia seguinte, a roupa de Jemmy Button estava completamente suja de terra e, agora, ele parecia, segundo Snow, ‘mais hediondo e deplorável do que jamais imaginara’”. (A Two Years cruise off Tierra del Fuego, The Falkland Islands, Patagonia and the River Plate: A Narrative of Life in the Southern Seas, William Parker Snow, 1857. Citado por Giucci).
Convencido a “estabelecer-se por seis meses nas Ilhas Malvinas, acompanhado de uma de suas esposas e pelos três filhos”, Jemmy Button participa na “primeira etapa de uma experiência missionária que terminaria no massacre de ingleses em Wulaia, a 6 de novembro de 1859, no qual Button foi apontado como instigador da matança pelo único sobrevivente, o cozinheiro Alfred Coles, embora nada tenha sido provado em um julgamento posterior.” (Giucci)
Quando Jemmy Button morreu pouco tempo depois, “contaminado por uma das muitas epidemias que dizimavam os fueguinos”, tinha cerca de 50 anos.
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Este post foi escrito para ser publicado quinta-feira passada, 27 de outubro, quando O Botão de Pérola ainda estava em exibição no Instituto Moreira Salles do Rio. A notícia do falecimento de Dib Lutfi, ocorrido na véspera, nos levou a escrever um post dedicado a ele e adiar para hoje a retomada de O Botão de Pérola.
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